30 de nov. de 2010

Eu, Barra Funda

Uma das características mais fortes da cultura do nosso país é a seguinte: o sentimento de pertencimento. Ao longo do tempo, porém, e à medida em que as pessoas viviam em meios cada vez mais urbanizados, a coisa se perdeu, e este “sentimento” foi relegado a uma condição menor, a uma vergonhosa resignação ou, ainda, à uma bárbara falta de vontade de “crescer” – tanto do indivíduo quanto do Estado; quem nunca ouviu coisas do tipo “isso é o Brasil” ou “É por isso que este país não vai pra frente”?

Há muito grassa por essas bandas uma subserviência de dar gosto. As elites, que botavam os filhos num navio pra estudarem na Europa fizeram um trabalho bem feito neste sentido; ficamos com a sensação de sermos irremediavelmente um povo muito abaixo, cultural e mesmo racialmente, dos povos que compõem os gloriosos países desenvolvidos: Brasil, um país de selvagens! De índios vagabundos e pretos arruaceiros.

Daí se viu os grandes centros mais “avançados”, notadamente a capital federal Rio de Janeiro e São Paulo, com suas ruas, cafés e cabarés imitando o jeito do velho mundo. Estou falando de mais de um século atrás; antes disso, desde a casa grande, o barato é o mesmo. Historicamente, as elites econômicas e intelectuais não gostam do Brasil, não se sentem brasileiras – deve ser difícil se sentir, em qualquer nível (pra quem foi abençoado por Deus com os dotes do dinheiro e do glamour), irmão de um índio. Ou de um negro.

O tempo correu. Vieram os imigrantes europeus pra tornar o país mais “branco” – eles nem sabiam disso -, veio a indústria cultural arregaçando nossas tradições mais caras, veio sopapo no capoeira e no sambista, veio o Rambo, as bandas de rock, as mega gravadoras, as insuportáveis bandanas com a bandeira norte-americana, veio o Benjamin Franklin com o time is money, a internet, a globalização. Tudo isso jogou contra o tal sentimento de pertencimento do qual eu quero tratar aqui.

Mas onde raios este sentimento conseguiu se segurar?

A resposta, pra mim, é uma. E simples: nas camadas menos favorecidas da população. Na gente pouco suscetível ao bombardeio dominante. Sei que dirão os entendidos que são justamente eles, os não-estudados, os primeiros a sofrer o bombardeio. Antes, no entanto, de nos julgarmos mais protegidos, não sejamos arrogantes - eu diria até ingênuos. Essa turma que vive à margem, nas beiradas, nas periferias e subúrbios que reinventa, que resiste, apesar das vistas grossas a que são submetidos.

Este povo que vive no meio urbano herdou* fortemente o sentimento que, no começo, pertenceu – ainda pertence - à caipirada, aos matutos descendentes dos índios que viviam no campo com o mínimo social e vital; que para sobreviver com este mínimo criou relações de parceria onde a religião era um pilar que humanizava. Que plantava, colhia, erguia a casa, caçava, comia, dançava, rezava e estabelecia relações com os do seu lugar porque sabia que precisava do outro, e que ajudar o outro era ajudar a si mesmo; porque não precisava ir além, nem achar que o de fora é melhor ou mais bonito. Esse povo que, antes de se referir à cidade, à vila ou à freguesia que pertencia, se caracterizava pelo sentimento de pertencimento ao bairro; para o caipira**, o bairro é a síntese de sua vida, é sua nação. É no bairro que ele tem tudo o quanto precisa.

Eu costumo dizer que só conheço a Barra Funda e adjacências. Hoje é aniversário da Barra Funda. Eu sou um caipira.

* um dos principais fatores constitutivos das periferias e subúrbios é o deslocamento dos indivíduos do meio rural para o urbano, no começo da industrialização.

** este “caipira” do texto é característico do interior de SP, sul de MG e norte do PR, atingindo regiões do MS e GO.

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