10 de set. de 2010

O bom vingador

* Para Railídia Carvalho



De todos os grandes personagens que moram no inconsciente popular, o que mais me encanta é a figura de Pedro Malazartes. Da Península Ibérica, suas histórias vieram para o Brasil e se multiplicaram aos montes, principalmente nos ambientes rurais e menos urbanizados. Em contraste às histórias portuguesas, no entanto - em que Pedro aparece como um molóide que leva tudo ao pé da letra e vira motivo de chacota -, no Brasil ele é astuto, cínico, invencível, vingativo e pobre, e essas características o elevam a legítimo herói das classes menos abastadas.

Todas as histórias de Pedro Malazartes, aqui no Brasil – influenciadas pela mescla cultural com os africanos - enveredam para um lado social, em que o personagem geralmente lida com gente poderosa e mesquinha. Pedro, com sua esperteza, sempre se sai bem, e suas vitórias são marcadas irremediavelmente pela vingança. O que o faz ser um herói é justamente esta característica, tão oposta à serventia e resignação da maioria do povo.

Mestre Câmara Cascudo relatou as origens de Pedro Malazartes:

"Um casal de velhos possuía dois filhos homens, João e Pedro, este tão astucioso e vadio que o chamavam Pedro Malazartes. Como era gente pobre, o filho mais velho saiu para ganhar a vida e empregou-se numa fazenda onde o proprietário era rico e cheio de velhacarias, não pagando aos empregados porque fazia contratos impossíveis de cumprimento. João trabalhou quase um ano e voltou quase morto. O patrão tirara-lhe uma tira de couro desde o pescoço até o fim das costas e nada mais lhe dera. Pedro ficou furioso e saiu para vingar o irmão."

Importante notar que Pedro, em oposição ao irmão mais velho, não é trabalhador, nem responsável, muito menos servil. Pedro vai trabalhar para o ex-patrão de João, assinando o mesmo contrato “impossível de cumprimento”. A história se desenrola com uma série de episódios em que Pedro vinga o irmão através da astúcia, e neste “causo” o Pedro Malazartes “brasileiro” se funde ao “português”. Atendendo o contrato ao pé da letra, Pedro vai vencendo o patrão a cada missão que lhe é imposta. Por exemplo: o patrão explorador ordena que Pedro limpe todo o milharal. Pedro arranca toda a plantação e varre o terreno. A cada tarefa, o patrão vai ficando mais pobre e mais inconformado – embora, pelo contrato, não pudesse demonstrar insatisfação, correndo o risco de ter uma tira de couro arrancada de suas costas.

À medida que Pedro vai vencendo, o patrão vai apelando. Numa outra tarefa, mandou Pedro guardar a carroça de burros, com os burros, dentro de uma casa; mas sem passar pela porta! Pedro quebra a carroça, corta os burros em pedacinhos e joga tudo pela janela. Assim, Pedro vai derrotando o patrão impiedosamente, até o dia em que o patrão, por engano, mata a própria mulher pensando que era nosso herói.

O fim dessa história narra o patrão implorando a Pedro que vá embora, já que havia acabado com todo o seu poder. Pedro volta rico e, o principal, com a missão de vingança cumprida. Roberto da Matta, em “Carnavais, Malandros e Heróis”, aborda a história de Pedro Malazartes com notável proficuidade. Num dos pontos principais, chama a atenção para o fato de que Pedro não deseja ocupar o lugar do patrão explorador e poderoso, mas apenas vingar o irmão. Se o fizesse, se tornaria ele o patrão-sanguessuga.

E é aí que se nota uma grande diferença do sujeito pobre para o rico, na visão do brasileiro médio: o pobre detém qualidades intrínsecas, às quais o rico não tem acesso, como a bondade e a compaixão. Ao rico são confiadas qualidades ligadas à sua fortuna, ao que possui materialmente.

Pedro é um errante, um andarilho que está em todos os lugares. Vivendo na corda bamba, geralmente aprontando alguma pra conseguir alguma coisa pra comer. Não se rende às regras do mundo, ao trabalho formal, aos aproveitadores; Pedro Malazartes é o bom malandro, o herói franzino que não briga através de armas, mas sim pela irreverência, artimanha da malandragem que vive à margem. É, em suma, uma espécie de Zé Pelintra caipira. Um marxista não muito ortodoxo, mas marxista. Um vingador das classes dominadas, redentor da gente sofrida.

Acho mesmo, no fim e ao cabo, que o povo tem deixado de ser fã do Pedro pra passar a ser um pouco como ele. Hoje, em geral, a empregada não aceita que a patroa lhe imponha um candidato pra votar.

Há inúmeras situações em que se pode provar que Malazartes faz suas traquinagens e que resistimos. Seja no meneio de corpo de um capoeira que correu da polícia, na tacada certeira na caçapa, no perfume da menina-moça, na tradição oral e no batuque ancestral, no discurso do nosso Presidente...

2 Comentários:

Blogger Eduardo Goldenberg disse...

Monumental, Favela!

16 de setembro de 2010 às 10:18  
Blogger Unknown disse...

Um de seus melhores textos. É de antologia!!!

16 de setembro de 2010 às 10:32  

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