14 de jan. de 2014

No freio não

Das notícias de abrangência mundial, a do acidente do Michael Schumacher está no topo nos últimos dias. O multicampeão de Fórmula 1 caiu de cabeça nas pedras geladas. Está internado e mais não se sabe; sigilo total sobre seu real estado e sua recuperação. Quando vejo o alemão, me vem à mente o Rubens Barrichello, seu sabujo, que provavelmente encerrará a carreira ao final do ano. De 2042.

Sou dos que não considera o automobilismo esporte. Entrar no carro e pisar fundo não é exercício físico. E para os que acham que é, digo que a direção do meu Fiesta 2005 me faz suar como estivesse dentro de um cockpit apertado. Assim como a equitação só pode ser considerada esporte se for para o cavalo.

Voltando ao automobilismo. A grande escola, o nascedouro, a mumunha das pistas, dizem, se dá no Kart – Rubinho, por exemplo, foi um grande piloto nesta modalidade. É em cima daquele carrinho pequeno, com a bunda quase queimando no chão, que o sujeito pega a prática do volante, das curvas, é lá que aprende sobre a mecânica, as peças, a rebimboca da parafuseta.

Tenho um amigo, o Jair, um cinqüentão gente fina, que sempre foi fã de velocidade, daqueles de passar de 200km/h nas estradas. Segundo o próprio, é mais forte do que ele a vontade de pisar, de sentir a adrenalina – coisas que eu, por exemplo, jamais senti. Uma noite, com o pé no fundo, quase passou por cima de um motoqueiro após uma fechada de um caminhão na Dutra; o milagre que salvou o motoqueiro não deu conta de um cachorro que andava pelo acostamento. O episódio abateu Jair, que decidiu mijar toda sua adrenalina numa pista de verdade, com regras, equipamento de segurança e o escambau. Recebeu indicações de amigos, comprou um kart e se inscreveu num campeonato que já estava em andamento. Era um clubinho de pessoas que, como ele, tinham sede de velocidade e paixão por carros.

No primeiro dia, Jair chegou ao local ao lado de seu filho e se deparou com uma cena inesperada: os outros competidores dispunham de mecânicos, treinadores, puxa-sacos, torcida; um deles tinha até psicólogo. Foi bem recebido (como um bom “café-com-leite” que era), fez uma volta e se classificou para a última fila – ainda estava se adaptando ao novo “brinquedo”.

A corrida contava com mais de vinte competidores, e a intenção do Jair era chegar entre os dez primeiros. Ao largar, percebeu que, na melhor das hipóteses, teria que lutar para não ser o último colocado – o que seria uma humilhação para um “pitoto” como ele. Mirou no cara que estava à sua frente e decidiu que seu embate seria com este fulano. Na oitava volta, Jair passou o sujeito e acreditou que podia mais. Sentia a adrenalina lhe correndo as veias. Ainda concentrado em seu oponente, percebeu que dois karts em altíssima velocidade passaram voando à sua frente. Puto dentro do macacão por ter sido ultrapassado, começou então nova perseguição. Esta, muito mais violenta e pujante. Jair não quis deixar barato e se pôs a caçar os dois. Na primeira curva, uma curva aberta, os dois fizeram o natural, que era abrir por fora. Jair só viu uma alternativa para ultrapassá-los: fechou por dentro, bateu o jogou os dois carros pra fora da pista.

A sensação foi de pleno gozo quando viu, pelo retrovisor, os dois insolentes fora da prova. Nosso piloto acelerou descontrolado, como se nada pudesse lhe impedir de erguer o troféu no alto do pódio. Quando foi completar a volta, viu tremular uma bandeira azul. Seguiu, como se não fosse com ele. Ao passar onde os dois infelizes foram jogados pra fora, viu uma muvuca fazendo gestos obcenos em sua direção. Só aí percebeu que fez cagada. Passou mais uma volta e a bandeira agora era vermelha. Jair seguia em frente, sem se importar, livre para voar, ultrapassando a todos os outros competidores, com perigosíssimas manobras. Na próxima volta, o homem na linha de chegada, já no meio da pista, balançava desesperado uma enorme bandeira preta para o nosso campeão, que quase o atropelou e continuou.

Começaram a voar objetos na direção do seu kart. Os outros pilotos abandonaram a corrida, e só conseguiram parar o homem quando a própria torcida entrou na pista com o firme intuito de lhe dar uma coça. Jair, um retardatário inconformado, havia jogado pra fora o primeiro e segundo colocados da prova, comprometendo suas posições no campeonato. Saiu escoltado pela polícia e um tempo depois vendeu o kart.

Fiquei sabendo que na semana passada comprou um par de esqui.

17 de abr. de 2012

Domingo(s), Divino


Reportagem dos meus camaradas Leo Pinheiro e Adriano Pessini, no Jornal Agora. 17/04/12


Quando a Associação Atlética Anhangüera nasceu, em 1928, o futebol era diferente. O amadorismo ainda era considerado o único modelo de verdadeiro amor ao clube, e há uma década o futebol sofria um fortíssimo processo de transformação, com a passagem dos times à condição profissional. Neste cenário, os negros penetraram um espaço antes reservados aos filhos da elite, bem ao estilo Charles Miller. Em meados dos anos 10 o Brasil viu despontar um mulato de cabelo alisado: Arthur Friedenreich, o primeiro grande craque do país. Porém, jogador de futebol não era valorizado, pelo contrário. Rui Barbosa, por exemplo, em 1916, se negou a viajar no Júpiter – o único navio que ia para a Argentina - junto da delegação brasileira de futebol, que disputaria o sul-americano. O que fez o jurista, então? Mandou os “vagabundos” do foot-ball pegarem o trem.

Alguns anos depois, despontam dois negros que mudariam para sempre a pecha dos jogadores: Leônidas da Silva, que foi o Pelé antes do Pelé, e o maior zagueiro de todos os tempos: Domingos da Guia. Os dois representaram a completa transição do futebol amador ao profissional. Foram também os primeiros a “vender” sua imagem para propaganda de vários tipos de produto. Era a época da criação de um fenótipo do brasileiro, onde foram alçados à categoria de orgulho da Nação o futebol, o samba, a ginga e a miscigenação, como elementos intrínsecos ao nosso povo. Leônidas, o Diamante Negro, que alçou o futebol a uma popularidade inimaginável, deu nome até a um chocolate que ainda hoje existe.

Quando Domingos da Guia, aos 15 anos, começava sua carreira como jogador no Bangu, o Anhangüera estava nascendo. Depois passou por Flamengo, Vasco, Nacional de Montevidéu e Boca Juniors. Em 1944 chegou ao Corinthians já consagrado como o maior zagueiro que o mundo tinha visto; veio a peso de ouro, na maior contratação do futebol brasileiro até então. E foi justamente essa a época de ouro do futebol varzeano; os anos 40 e 50, em que os times de bairro revelavam os grandes craques.

Em 1945 o São Paulo Futebol Clube se sagrou campeão paulista, e a solenidade da entrega de troféus contou com a presença do prefeito Prestes Maia e de jogadores de outros times. Gabriel de Medeiros - sobre quem já falei aqui -, então presidente do Anhangüera, que havia sido convidado para a festa, ficou encarregado pelo pessoal da Barra Funda de entregar pessoalmente duas camisetas do rubro negro: uma a Leônidas da Silva, e outra a Domingos da Guia.

Impossível era chegar perto dois, tamanho assédio. Medeiros teve que escolher um dos dois craques a quem entregar a camisa: Domingos da Guia. A de Leônidas foi dada a Bauer, meio campista do São Paulo. Porém, quando foi até Domingos, este já estava saindo, entrando num carro pra ir embora. A camisa 3 voltou para o Anhangüera e foi usada nos jogos do sport por meu avô Tirone, que era beque.

Mas eis que o tempo trata de acertar o que não ficou resolvido. Domingo passado, 67 anos após este episódio, jogou pelo Anhangüera o Divino, alcunha de Ademir de Guia, monstro sagrado do futebol brasileiro, filho de Domingos da Guia. Quis o destino que Ademir fosse o maior jogador da história do Palmeiras, arqui-rival do time que seu pai jogou em São Paulo. Ademir da Guia é a síntese da humildade e da generosidade; e acredito que por isso não tenha sido titular do escrete. Desceu lá do alto do olimpo, onde reinam os deuses da bola, para jogar pelo nosso tradicional Anhangüera – que lhe rendeu homenagem aos seus 70 anos -, um clube que ainda cultua o amadorismo da época de Friedenreich e do começo da carreira de seu pai.

Livio Giosa, nobre amigo do clube, foi quem convidou o Divino. Mesmo sem saber, Livio cumpriu uma missão que Gabriel de Medeiros não conseguiu. Ao vergar a camisa rubro-negra, Ademir da Guia cravou um marco na longínqua história de 84 anos do Anhangüera. Mas o que pouquíssimos sabem – inclusive dentro do clube -, é que este episódio representa uma redenção daquele ano de 1945. Atrás dos olhos azuis de Ademir, o preto-velho Domingos vive, e também veste a camisa listrada em preto e vermelho.

11 de abr. de 2012

Os meninos em volta da fogueira*

* Trecho de uma música de Martinho da Vila, que para mim simboliza a noite inacreditável que passei cantando com o próprio.



Sempre nutri grande admiração pelo Martinho da Vila. Cresci ouvindo meus pais cantarem seus sucessos. Depois, rapazote, fui atrás de todos os seus discos como um pirata atrás da mina de ouro. Martinho faz a minha cabeça, ao lado de outros bambas da música brasileira.

Tenho vivido grandes alegrias no mundo do samba. O projeto que iniciei no Anhangüera há cinco anos me proporcionou trabalhar com muita gente do primeiro escalão. Com alguns firmei o ponto e tenho amizade. Acho, inclusive, que com a maioria deles.

E eu sempre disse: “se um dia o Martinho for ao Anhangüera, eu caio duro e morro feliz”. A expressão não é à toa. Martinho José Ferreira é o artista na concepção do termo, aquele único capaz de fazer a ponte entre passado e futuro. Minha admiração aumentou ainda mais quando eu comecei a perceber sua atividade política e humana. Um artista ciente do poder que detém nas mãos, generosas. E sabe lançar mão disso. Martinho foi um grande elo de ligação forte entre Brasil e África, entre nós e nossos ancestrais. Se aqui Martinho é Rei, em Angola também.

E a vida vai preparando essas coisas pra gente. Fui convidado a participar da festa de 90 anos do Partido Comunista do Brasil no Vivo Rio, para 3.000 pessoas, no final de semana retrasado. Após a solenidade, teria o show do Martinho – que foi excepcional, com repertório lado B escolhido a dedo. Após a festa, seguimos para o aniversário da Tininha, minha cunhada. E ela sabia que era ela e meu mano Orlando que me dariam o presente da noite.

Qual não foi minha surpresa: no restaurante, já vazio, só a nossa mesa, com cerca de 20 pessoas - eu já estava um pouco embriagado de Campari. Entre essas poucas almas, lá estava a figura ancestral, portentosa e inumana de Martinho da Vila. Após muita bebida e muito bate papo alguém puxa um samba do homem que, feliz da vida, cantou. Aí me embriaguei, evidentemente.

No vídeo que aqui publico, Martinho acabara de cantar uma música que havia gravado do João Nogueira. Eu puxo Beto Navalha, outra do João, que o Martinho gravou em 1973. Ele mal se lembrava, conforme se vê no vídeo. Depois, ele entoa Grande Amor, um samba dos mais bonitos de sua belíssima lavra.

Daí pra frente cantamos um montão. Fechamos cantando uns boleros, que a noite alta pede música triste. Só que eu fiquei mais feliz.

5 de abr. de 2012

A construção da Nação

O Brasil é, como escreveu Luiz Werneck Vianna, o lugar por excelência da revolução passiva. Aqui, diferentemente dos países da América Hispânica, não houve revolução, mas sim adiantamento por parte do Estado afim de impedi-la. Isso se deu na Independência, na Proclamação da República, e em outros episódios de importantes mudanças na política brasileira – o chamado conservar-mudando. É a revolução burguesa no Brasil, na qual nunca houvera encontro entre intelectuais e o povo.

A questão nacional esteve presente desde muito antes do século XX. Já na Independência, quando o mundo ocidental era todo influenciado pela Revolução Francesa, o Brasil cria sua primeira constituição com base no liberalismo, embora a sociedade fosse colonial. Eis aí uma chave para o entendimento da questão: o Brasil era, em seu próprio pensamento político e social, considerado atrasado – embora sendo um país novo, o que configura um paradoxo – em relação aos países mais avançados da Europa. E graças a este “atraso”, buscava, na Europa – que era o exemplo do mundo moderno – os modelos necessários à construção de uma Nação.

A diferença é que na Europa priorizaram a liberdade individual; aqui, primeiro se pensou em construir a nação para depois pensar no povo. A não-revolução da Independência brasileira já havia mostrado: o Estado é construído de cima para baixo, apartado do povo que, obviamente, não se reconhecia como sendo pertencente a um país. E esta anti-revolução aconteceu novamente em todas as rupturas que o país sofreu, sempre com a intenção única de mudar para conservar o poder.


A luta dos pensadores do Brasil era uma: o país precisava se modernizar para tornar-se contemporâneo de seu próprio tempo. A partir dos anos 20, os intelectuais buscam no passado a verdadeira identidade do Brasil, num esforço de construir uma Nação. Porém, estes intelectuais vinham de famílias oligarcas decadentes. Na intenção de manter seu status, eles migram da cultura para a política, e se julgam os detentores dos segredos da história do Brasil. Falam em nome do povo assumindo a “consciência do homem inconsciente”, se caracterizam por ter vocação para elite dirigente e, mais uma vez, constroem um sentimento de nacionalidade de cima para baixo. Assim, as idéias e práticas modernas se confinaram apenas na elite.

A construção da Nação, dessa forma, é conservadora. Ela foi concebida pelo direito, e não por um contrato social. Ou seja, não foi o povo quem a construiu, mas o Estado. A Nação brasileira era restrita somente à elite, já que, mesmo após a abolição da escravidão, os negros – que representavam três quartos da população, continuaram à margem da sociedade. O Brasil continuou sendo um grande latifúndio.

O Estado de 1930 é construído com a autoridade precedendo a liberdade. Uma república autocrática, em que a vontade do Estado se sobrepõem às vontades individuais. Cria-se o trabalhador para realizar a obra do Estado – uma ideologia conservadora em economia e autoritária em política. A modernização acontece, mas continuamos atrás da modernidade. Assim como continuamos tentando construir uma Nação. Mas para isso, é necessária uma variável historicamente ignorada pelos que construíram o Brasil: o povo.

7 de fev. de 2012

Jean Carlos, reco-meçar

* Este texto vai na intenção do irmão Roberto Domé e de Mario Giovanelli, amigo de outras vidas do querido JeanCarlo.

Sou um defensor das tradições, mesmo não sendo nostálgico, purista ou - pior! - conservador. Sou pela tradição porque é ela quem contrabalanceia as reviravoltas desse mundo cada vez mais urgente, mais tecnológico e menos pessoal. Menos pessoal nas relações comezinhas do cotidiano, do trabalho, da família. Menos respeitoso, conseqüentemente. Diametralmente, mais triste, mais carrancudo e depressivo.

Sendo assim, é preciso se apegar em algumas coisas pra não se esquecer de quem a gente é. Mas em poucas, já que a gente não pode dar conta do mundo. Eu cultuo os meus ancestrais, o chão em que nasci – em particular a Barra Funda – e as relações de verdade, cara a cara.

Graças a isso angariei grandes amizades ao longo da vida. Graças a isso, tive uma oportunidade que mais considero uma bênção: ser amigo de alguns amigos de meu pai. E é sobre um deles, especialmente, que quero falar: Giovane Carlos Margiotta, afamado na Barra Funda pela corruptela do apelido Giancarlo, ou seja, Jean.

Não quero aqui fazer qualquer tipo de esboço de personalidade do meu amigo-personagem, até porque as pessoas são mui complexas. Minha intenção é apenas a de lhe render uma singela homenagem escrevendo aqui o que apreendi do nosso convívio.

Sujeito simples, de poucos argumentos – o que o diferenciava de seu irmão Domé, que é eloqüente –, quase sem vaidade e nenhuma demonstração de arrogância em vida. Sua característica mais pujante pra mim, acima de tudo, era seu inabalável cotidiano. Jean era meticuloso, e seus dias, como num ritual, eram iguais. Há cinco anos atrás, escrevi sobre ele o seguinte: “Jean é um dos sujeitos mais metódicos que pude conhecer. Acorda, trabalha, come e dorme todos os dias religiosamente nos mesmos horários. Nunca sai a noite em dias de semana e bebe sempre nos mesmos lugares, como uma prática de louvor à monotonia.”.

Mas essa monotonia era diferente. Era animada, alegre, expansiva. Principalmente por causa de suas duas grandes paixões: A Sociedade Esportiva Palmeiras e o implacável reco-reco amassado, seu companheiro inseparável desde que era garoto. Jean talvez não tenha contribuído artisticamente como músico, e acho mesmo que não tocava reco igual o lendário Mussum, mas tem grande responsabilidade de ter incutido em mim a chama do samba – junto do Grupo Xamanóis, do qual foi um dos fundadores há quase trinta anos.

Os domingos eram sempre no Anhangüera junto dos amigos Bonitão, Bule, Gilmar, Zé Bertolozzi e outros que, com ele, tornavam nossos domingos de futebol mais divertidos. Depois, iam todos pro bar do Sinval assistir o jogo da televisão – bebendo, evidentemente.

Jean cantou pra subir anteontem, aos 55 anos, pouco antes de cumprir sua rotina de ir ao Anhangüera ver o jogo e beber com os camaradas.

A perda é grande, e pra mim há um motivo. Jean, conscientemente, talvez não soubesse, mas tinha uma coisa muito parecida comigo: a conservação da tradição, seja por idealismo – no meu caso -, seja por mania – no caso dele. O fato é que, sem ele, a Barra Funda fica menos Barra Funda, os domingos no Anhangüera ficam menos domingo, o bar do Sinval fica menos bar do Sinval, o Xamanóis fica nóis sem "xama", e o reco-reco metálico agora não tem mais graça nenhuma...

21 de set. de 2011

Tio Déto

Diziam que nós dois éramos parecidos. Não sei, talvez nunca ninguém tenha dito isso, mas eu sempre quis me parecer contigo. Enfim... Fato é que, inegavelmente, há entre nós semelhanças brutais. Uma delas é o apego à nossa história de vida e todas suas subsidiárias: pessoas, lugares, memórias – tudo com um toque de saudade, de bairrismo e, vez por outra, de nostalgia. Temos também um bom discernimento daquilo que é justo – não vou dizer “correto” ou “certo” porque aí entram questões muito mais complexas a serem discutidas. A “verdade” não deve existir e a “razão”, como disse mestre Candeia, está sempre dos dois lados -, sempre achei suas posições justas, sóbrias. Somos também, por outro lado, muito orgulhosos: fruto tanto de autoconfiança quanto de teimosia, defesa, medos, traumas, sei lá que merda!

Porém o Corinthians é o elo que nos ligou pra valer, fazendo revelar muitas das coisas que compartilhamos, que sentimos. Você tem um grande coração. Falo isso pelo que passei, pelo que vi, pelo que fizeste por mim. Só você se preocupou com o fato de eu não desfrutar dos privilégios dos meus irmãos, que sempre iam aos jogos do Palmeiras com meu pai. Pode ser coisa pequena, mas pra você não era. Nossa diferença de idade não é lá muito grande. Quando você começou a me levar aos jogos do Timão, você era um garoto de 22 ou 23 anos, mas pra mim sempre me pareceu ser um homem bem mais velho, responsável, respeitoso e um tanto reticente à expor, ainda que minimamente, qualquer intimidade e insegurança. Também sou assim.

A gente acaba, ao longo do tempo, tentando se diferenciar dos outros – daqueles mais próximos de nós. O fato de eu ser tão diferente do Angelo e você do Dornel não é meramente uma questão genética, tampouco de providência. Você me alertou, me preparou e amenizou as inapeláveis comparações que as pessoas fazem entre irmãos. Também somos parecidos nisso: “Ele é muito inteligente, mas é sem graça”. Na adolescência isso é motivo para se dar um tiro nos cornos, não?

Tirante meus pais, ninguém foi mais preocupado em conversar, orientar, aconselhar, apontar caminhos e perspectivas. Aliás, não só para comigo como também com seus outros sobrinhos. Você é o protótipo do “tiozão” – nunca foi à toa eu ter lhe chamado assim -, do cara que batalhou, que remou contra a maré, que deu certo em todos os sentidos: profissional, acadêmica, econômica e, principalmente, humanamente – e tudo isso foi muito sofrido, o que valoriza sua biografia.

E mesmo eu sendo às vezes polêmico e radical, mesmo divergindo ideologicamente em algumas questões, imagino nós, velhinhos – quando você tiver 82, terei 70 – juntos, falando do Coringão e cantando o samba do João Bosco e do Aldir Blanc que dá glória aos piratas, às mulatas e às sereias. Mas saiba que ainda te olharei com a mesma admiração e respeito. Te chamarei de “tiozão” com a mesma inocência do garoto que você levava ao Pacaembu. E que você sempre foi, é e será, para mim, uma referência imorredoura.

25 de mai. de 2011

Anhangüera dá Samba XLV

Hoje o Anhangüera dá Samba! completa quatro anos. Quatro anos!

Mês passado recebemos Kazinho, um dos grandes baluartes do samba e da noite paulistana. Pelas mãos do grande Caio Ramos - que escreveu a biografia do Germano Mathias - que conseguimos localizar o Kazinho - há anos numa casinha de um cômodo no Camargo Velho, extrema zona leste. Aos 83 anos vive sozinho, contando com a ajuda de sua única filha, e não se apresentava há coisa de 30 anos.

Taí o fator mais importante. Uma das nossas idéias, no princípio, era poder levar gente como o Kazinho para o Anhangüera dá Samba! - gente que contribuiu, que lutou, que cortou um doze. Que fez história, enfim. Essa memória deve ser conservada; é preciso ouvir os causos contados por esse (hoje) anônimo. Acho que foi, nesses termos, a edição mais importante do nosso projeto. Kazinho contou várias passagens de uma cidade que, mesmo sendo esse gigante, conservava uma caipirice que quase não se vê mais.

Começou duas semanas antes, quando levamos Kazinho ao Bar do Alemão. Lá, num bar de música, noturno, começamos a desfrutar da verve do velho. No dia do samba, a coisa pegou fogo antes, na casa do bom Paulinho Timor, que preparou uma galinhada nervosa. No Anhangüera então...

Paula Sanches, Fernando Szegeri, Chico Aguiar, Railídia e o mestre Kazinho

Pra cantar os sambas do Kazinho tem que ser iniciado. Convidamos Chico Aguiar e a Paula Sanches - ambos já foram nossos homenageados - pra dividir com o Fernando e a Rai essa honra, como se vê na foto. Cada um deles se preparou e cantou dois sambas do Kazinho - que infelizmente, por um problema de audição, não segura mais uma roda de samba. Mas Kazinho também cantou; e impresionante: não perdeu aquela divisão tão característica. Não perdeu o tom, a ginga. Que noite, que noite. Olha aí o Chico cantando uma delas:



Hoje são quatro anos. Este texto não tem a intenção de divulgar nada, já que faltam poucas horas para o samba começar no terreiro. Vamos receber um mostro: Wilson das Neves! Vai ser foda! (o palavrão às vezes se faz necessário; ele eleva ao infinito qualquer expressão)

Mês que vem eu conto como foi. Vamos ouvindo o mestre e esquentando os tamborins. Ô sorte!

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