17 de abr. de 2012

Domingo(s), Divino


Reportagem dos meus camaradas Leo Pinheiro e Adriano Pessini, no Jornal Agora. 17/04/12


Quando a Associação Atlética Anhangüera nasceu, em 1928, o futebol era diferente. O amadorismo ainda era considerado o único modelo de verdadeiro amor ao clube, e há uma década o futebol sofria um fortíssimo processo de transformação, com a passagem dos times à condição profissional. Neste cenário, os negros penetraram um espaço antes reservados aos filhos da elite, bem ao estilo Charles Miller. Em meados dos anos 10 o Brasil viu despontar um mulato de cabelo alisado: Arthur Friedenreich, o primeiro grande craque do país. Porém, jogador de futebol não era valorizado, pelo contrário. Rui Barbosa, por exemplo, em 1916, se negou a viajar no Júpiter – o único navio que ia para a Argentina - junto da delegação brasileira de futebol, que disputaria o sul-americano. O que fez o jurista, então? Mandou os “vagabundos” do foot-ball pegarem o trem.

Alguns anos depois, despontam dois negros que mudariam para sempre a pecha dos jogadores: Leônidas da Silva, que foi o Pelé antes do Pelé, e o maior zagueiro de todos os tempos: Domingos da Guia. Os dois representaram a completa transição do futebol amador ao profissional. Foram também os primeiros a “vender” sua imagem para propaganda de vários tipos de produto. Era a época da criação de um fenótipo do brasileiro, onde foram alçados à categoria de orgulho da Nação o futebol, o samba, a ginga e a miscigenação, como elementos intrínsecos ao nosso povo. Leônidas, o Diamante Negro, que alçou o futebol a uma popularidade inimaginável, deu nome até a um chocolate que ainda hoje existe.

Quando Domingos da Guia, aos 15 anos, começava sua carreira como jogador no Bangu, o Anhangüera estava nascendo. Depois passou por Flamengo, Vasco, Nacional de Montevidéu e Boca Juniors. Em 1944 chegou ao Corinthians já consagrado como o maior zagueiro que o mundo tinha visto; veio a peso de ouro, na maior contratação do futebol brasileiro até então. E foi justamente essa a época de ouro do futebol varzeano; os anos 40 e 50, em que os times de bairro revelavam os grandes craques.

Em 1945 o São Paulo Futebol Clube se sagrou campeão paulista, e a solenidade da entrega de troféus contou com a presença do prefeito Prestes Maia e de jogadores de outros times. Gabriel de Medeiros - sobre quem já falei aqui -, então presidente do Anhangüera, que havia sido convidado para a festa, ficou encarregado pelo pessoal da Barra Funda de entregar pessoalmente duas camisetas do rubro negro: uma a Leônidas da Silva, e outra a Domingos da Guia.

Impossível era chegar perto dois, tamanho assédio. Medeiros teve que escolher um dos dois craques a quem entregar a camisa: Domingos da Guia. A de Leônidas foi dada a Bauer, meio campista do São Paulo. Porém, quando foi até Domingos, este já estava saindo, entrando num carro pra ir embora. A camisa 3 voltou para o Anhangüera e foi usada nos jogos do sport por meu avô Tirone, que era beque.

Mas eis que o tempo trata de acertar o que não ficou resolvido. Domingo passado, 67 anos após este episódio, jogou pelo Anhangüera o Divino, alcunha de Ademir de Guia, monstro sagrado do futebol brasileiro, filho de Domingos da Guia. Quis o destino que Ademir fosse o maior jogador da história do Palmeiras, arqui-rival do time que seu pai jogou em São Paulo. Ademir da Guia é a síntese da humildade e da generosidade; e acredito que por isso não tenha sido titular do escrete. Desceu lá do alto do olimpo, onde reinam os deuses da bola, para jogar pelo nosso tradicional Anhangüera – que lhe rendeu homenagem aos seus 70 anos -, um clube que ainda cultua o amadorismo da época de Friedenreich e do começo da carreira de seu pai.

Livio Giosa, nobre amigo do clube, foi quem convidou o Divino. Mesmo sem saber, Livio cumpriu uma missão que Gabriel de Medeiros não conseguiu. Ao vergar a camisa rubro-negra, Ademir da Guia cravou um marco na longínqua história de 84 anos do Anhangüera. Mas o que pouquíssimos sabem – inclusive dentro do clube -, é que este episódio representa uma redenção daquele ano de 1945. Atrás dos olhos azuis de Ademir, o preto-velho Domingos vive, e também veste a camisa listrada em preto e vermelho.

11 de abr. de 2012

Os meninos em volta da fogueira*

* Trecho de uma música de Martinho da Vila, que para mim simboliza a noite inacreditável que passei cantando com o próprio.



Sempre nutri grande admiração pelo Martinho da Vila. Cresci ouvindo meus pais cantarem seus sucessos. Depois, rapazote, fui atrás de todos os seus discos como um pirata atrás da mina de ouro. Martinho faz a minha cabeça, ao lado de outros bambas da música brasileira.

Tenho vivido grandes alegrias no mundo do samba. O projeto que iniciei no Anhangüera há cinco anos me proporcionou trabalhar com muita gente do primeiro escalão. Com alguns firmei o ponto e tenho amizade. Acho, inclusive, que com a maioria deles.

E eu sempre disse: “se um dia o Martinho for ao Anhangüera, eu caio duro e morro feliz”. A expressão não é à toa. Martinho José Ferreira é o artista na concepção do termo, aquele único capaz de fazer a ponte entre passado e futuro. Minha admiração aumentou ainda mais quando eu comecei a perceber sua atividade política e humana. Um artista ciente do poder que detém nas mãos, generosas. E sabe lançar mão disso. Martinho foi um grande elo de ligação forte entre Brasil e África, entre nós e nossos ancestrais. Se aqui Martinho é Rei, em Angola também.

E a vida vai preparando essas coisas pra gente. Fui convidado a participar da festa de 90 anos do Partido Comunista do Brasil no Vivo Rio, para 3.000 pessoas, no final de semana retrasado. Após a solenidade, teria o show do Martinho – que foi excepcional, com repertório lado B escolhido a dedo. Após a festa, seguimos para o aniversário da Tininha, minha cunhada. E ela sabia que era ela e meu mano Orlando que me dariam o presente da noite.

Qual não foi minha surpresa: no restaurante, já vazio, só a nossa mesa, com cerca de 20 pessoas - eu já estava um pouco embriagado de Campari. Entre essas poucas almas, lá estava a figura ancestral, portentosa e inumana de Martinho da Vila. Após muita bebida e muito bate papo alguém puxa um samba do homem que, feliz da vida, cantou. Aí me embriaguei, evidentemente.

No vídeo que aqui publico, Martinho acabara de cantar uma música que havia gravado do João Nogueira. Eu puxo Beto Navalha, outra do João, que o Martinho gravou em 1973. Ele mal se lembrava, conforme se vê no vídeo. Depois, ele entoa Grande Amor, um samba dos mais bonitos de sua belíssima lavra.

Daí pra frente cantamos um montão. Fechamos cantando uns boleros, que a noite alta pede música triste. Só que eu fiquei mais feliz.

5 de abr. de 2012

A construção da Nação

O Brasil é, como escreveu Luiz Werneck Vianna, o lugar por excelência da revolução passiva. Aqui, diferentemente dos países da América Hispânica, não houve revolução, mas sim adiantamento por parte do Estado afim de impedi-la. Isso se deu na Independência, na Proclamação da República, e em outros episódios de importantes mudanças na política brasileira – o chamado conservar-mudando. É a revolução burguesa no Brasil, na qual nunca houvera encontro entre intelectuais e o povo.

A questão nacional esteve presente desde muito antes do século XX. Já na Independência, quando o mundo ocidental era todo influenciado pela Revolução Francesa, o Brasil cria sua primeira constituição com base no liberalismo, embora a sociedade fosse colonial. Eis aí uma chave para o entendimento da questão: o Brasil era, em seu próprio pensamento político e social, considerado atrasado – embora sendo um país novo, o que configura um paradoxo – em relação aos países mais avançados da Europa. E graças a este “atraso”, buscava, na Europa – que era o exemplo do mundo moderno – os modelos necessários à construção de uma Nação.

A diferença é que na Europa priorizaram a liberdade individual; aqui, primeiro se pensou em construir a nação para depois pensar no povo. A não-revolução da Independência brasileira já havia mostrado: o Estado é construído de cima para baixo, apartado do povo que, obviamente, não se reconhecia como sendo pertencente a um país. E esta anti-revolução aconteceu novamente em todas as rupturas que o país sofreu, sempre com a intenção única de mudar para conservar o poder.


A luta dos pensadores do Brasil era uma: o país precisava se modernizar para tornar-se contemporâneo de seu próprio tempo. A partir dos anos 20, os intelectuais buscam no passado a verdadeira identidade do Brasil, num esforço de construir uma Nação. Porém, estes intelectuais vinham de famílias oligarcas decadentes. Na intenção de manter seu status, eles migram da cultura para a política, e se julgam os detentores dos segredos da história do Brasil. Falam em nome do povo assumindo a “consciência do homem inconsciente”, se caracterizam por ter vocação para elite dirigente e, mais uma vez, constroem um sentimento de nacionalidade de cima para baixo. Assim, as idéias e práticas modernas se confinaram apenas na elite.

A construção da Nação, dessa forma, é conservadora. Ela foi concebida pelo direito, e não por um contrato social. Ou seja, não foi o povo quem a construiu, mas o Estado. A Nação brasileira era restrita somente à elite, já que, mesmo após a abolição da escravidão, os negros – que representavam três quartos da população, continuaram à margem da sociedade. O Brasil continuou sendo um grande latifúndio.

O Estado de 1930 é construído com a autoridade precedendo a liberdade. Uma república autocrática, em que a vontade do Estado se sobrepõem às vontades individuais. Cria-se o trabalhador para realizar a obra do Estado – uma ideologia conservadora em economia e autoritária em política. A modernização acontece, mas continuamos atrás da modernidade. Assim como continuamos tentando construir uma Nação. Mas para isso, é necessária uma variável historicamente ignorada pelos que construíram o Brasil: o povo.
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