Domingo(s), Divino
Quando a Associação Atlética Anhangüera nasceu, em 1928, o futebol era diferente. O amadorismo ainda era considerado o único modelo de verdadeiro amor ao clube, e há uma década o futebol sofria um fortíssimo processo de transformação, com a passagem dos times à condição profissional. Neste cenário, os negros penetraram um espaço antes reservados aos filhos da elite, bem ao estilo Charles Miller. Em meados dos anos 10 o Brasil viu despontar um mulato de cabelo alisado: Arthur Friedenreich, o primeiro grande craque do país. Porém, jogador de futebol não era valorizado, pelo contrário. Rui Barbosa, por exemplo, em 1916, se negou a viajar no Júpiter – o único navio que ia para a Argentina - junto da delegação brasileira de futebol, que disputaria o sul-americano. O que fez o jurista, então? Mandou os “vagabundos” do foot-ball pegarem o trem.
Alguns anos depois, despontam dois negros que mudariam para sempre a pecha dos jogadores: Leônidas da Silva, que foi o Pelé antes do Pelé, e o maior zagueiro de todos os tempos: Domingos da Guia. Os dois representaram a completa transição do futebol amador ao profissional. Foram também os primeiros a “vender” sua imagem para propaganda de vários tipos de produto. Era a época da criação de um fenótipo do brasileiro, onde foram alçados à categoria de orgulho da Nação o futebol, o samba, a ginga e a miscigenação, como elementos intrínsecos ao nosso povo. Leônidas, o Diamante Negro, que alçou o futebol a uma popularidade inimaginável, deu nome até a um chocolate que ainda hoje existe.
Quando Domingos da Guia, aos 15 anos, começava sua carreira como jogador no Bangu, o Anhangüera estava nascendo. Depois passou por Flamengo, Vasco, Nacional de Montevidéu e Boca Juniors. Em 1944 chegou ao Corinthians já consagrado como o maior zagueiro que o mundo tinha visto; veio a peso de ouro, na maior contratação do futebol brasileiro até então. E foi justamente essa a época de ouro do futebol varzeano; os anos 40 e 50, em que os times de bairro revelavam os grandes craques.
Em 1945 o São Paulo Futebol Clube se sagrou campeão paulista, e a solenidade da entrega de troféus contou com a presença do prefeito Prestes Maia e de jogadores de outros times. Gabriel de Medeiros - sobre quem já falei aqui -, então presidente do Anhangüera, que havia sido convidado para a festa, ficou encarregado pelo pessoal da Barra Funda de entregar pessoalmente duas camisetas do rubro negro: uma a Leônidas da Silva, e outra a Domingos da Guia.
Impossível era chegar perto dois, tamanho assédio. Medeiros teve que escolher um dos dois craques a quem entregar a camisa: Domingos da Guia. A de Leônidas foi dada a Bauer, meio campista do São Paulo. Porém, quando foi até Domingos, este já estava saindo, entrando num carro pra ir embora. A camisa 3 voltou para o Anhangüera e foi usada nos jogos do sport por meu avô Tirone, que era beque.
Mas eis que o tempo trata de acertar o que não ficou resolvido. Domingo passado, 67 anos após este episódio, jogou pelo Anhangüera o Divino, alcunha de Ademir de Guia, monstro sagrado do futebol brasileiro, filho de Domingos da Guia. Quis o destino que Ademir fosse o maior jogador da história do Palmeiras, arqui-rival do time que seu pai jogou em São Paulo. Ademir da Guia é a síntese da humildade e da generosidade; e acredito que por isso não tenha sido titular do escrete. Desceu lá do alto do olimpo, onde reinam os deuses da bola, para jogar pelo nosso tradicional Anhangüera – que lhe rendeu homenagem aos seus 70 anos -, um clube que ainda cultua o amadorismo da época de Friedenreich e do começo da carreira de seu pai.
Livio Giosa, nobre amigo do clube, foi quem convidou o Divino. Mesmo sem saber, Livio cumpriu uma missão que Gabriel de Medeiros não conseguiu. Ao vergar a camisa rubro-negra, Ademir da Guia cravou um marco na longínqua história de 84 anos do Anhangüera. Mas o que pouquíssimos sabem – inclusive dentro do clube -, é que este episódio representa uma redenção daquele ano de 1945. Atrás dos olhos azuis de Ademir, o preto-velho Domingos vive, e também veste a camisa listrada em preto e vermelho.