29 de ago. de 2007

Entrando na surra

Considero uma frescura a orientação para pais não baterem nos filhos com a alegação de que umas tapas podem causar traumas irreversíveis e transformar a personalidade do fulano, tornando-o tímido, introspectivo e sofrer de síndrome do pânico ou de perseguição, essas doenças “mudernas”. É claro que não precisamos voltar aos tempos da vara de marmelo, do cabo de vassoura e do milho para se ajoelhar, mas às vezes um simples beliscão ou um puxão de orelha se faz necessário. Eu mesmo cansei de levar homéricos beliscões de mamãe. Era doído! Já meu pai nunca deu uma bordoada em mim e nem em meus irmãos, mas só o olhar de reprovação dele era capaz de nos fazer mijar nas calças e nos transformar rapidamente em santos.

E para fazer valer essa introdução, vou falar de alguém que eu já falei por aqui, ícone maior da gentileza, respeito em forma de gente, malandragem nata e destreza etílica impressionante, o grande Zulu. Zulu é a prova incontestável de que umas cachaporradas em casa não fazem mal, pelo contrário. As qualidades deste notável homem chancelam o que quero dizer sobre as cacetadas paternas – no caso dele maternas. Vou exemplificar dois relatos, mas antes, curtos comentários para melhor entendimento: Zulu nasceu no final da década de quarenta e foi criado apenas pela mãe. Seu pai falecera quando ele era um recém-nascido. Moravam numa “casa de família” (abominável denominação) na Rua Eduardo Prado, nos Campos Elíseos, bairro de moradia da elite branca – também ponto de encontro de malandros e bambas do samba -, em que Dona Maria, sua mãe, era a cozinheira da casa, que ainda contava com mais quatro funcionárias. Todas negras.

A molecada toda do bairro brincava na rua e era subdividida por idades. Tinha a turma dos pirralhos de seis a oito anos (da qual o Zulu fazia parte essa época), a turma dos moleques de nove até uns doze e também a dos moleques maiores, até uns quinze. O Zezinho, que tinha doze, era terror dos pivetes. Judiava, batia, irritava a pirralhada. Numa certa tarde, Zezinho e mais dois amigos amarraram num poste o Zulu e mais dois meninos de seis anos. Porém, quando Zulu estava sendo amarrado, avistou Dona Maria vindo com uma sacola de compras na direção dele. A sensação de alívio bateu. Ele via se aproximando sua redentora particular e pensava: “Minha mãe está chegando e vai me proteger. Vai pegar o Zezinho!”. Dona Maria passou batida e fingiu que não o viu. Foi pra casa. Após muito custo, Zulu conseguiu se desvencilhar das amarras e foi pra casa. Chegando lá, levou uma surra.

O problema é que o Zezinho continuava aprontando e um dia, após tanto sofrimento, a bacurizada resolveu rebelar-se e armaram um plano. O plano era extremamente complexo. Dez moleques estavam devidamente amocambados. Um atrás de um poste, três no armazém do seu Mané, três atrás de um muro, dois dentro da lata de lixo, e até dentro do bueiro tinha um escondido. Era uma bela emboscada para pegar o Zezinho. E não deu outra. Quando o Zezinho passou, uma horda furiosa de pirralhos de sete anos o atacou. Conseguiram jogá-lo no chão e arrastá-lo pelo asfalto por vários metros, o que causou terríveis e ardidas escoriações nas costas do fedelho e surpresa para os pirralhos, que viram marca de sangue do Zezinho no chão, correram pras suas casas. A mãe do Zezinho, tremenda barraqueira, queria tirar satisfação com algum responsável por aquele ato bárbaro e escolheu, justamente, a mãe do único pretinho da turma, Dona Maria. Tocou a campainha e já foi logo dizendo: “Olha aí o que o teu filho fez com o meu!”. Zulu, já se encolhendo, sabia que viria chumbo do grosso. Ia apanhar legal da mãe de novo! Dona Maria apenas respondeu: “Seu filho, que amarrou o meu filho no poste outro dia, desse tamanho, apanhou? Então agora eles estão quites!”, e botou a mulher pra correr e não bateu no Zulu!

Alguns anos se passaram. Zulu estava com doze anos quando começou a fumar. E já trabalhava também. Certo dia, dona Maricota, a maior fofoqueira do bairro, o viu tragando um cigarro. Ele sabia que daria merda. Uma semana depois, num sábado, Zulu ajudava sua mãe com as compras na quitanda da Ribeiro da Silva, quando entrou a Maricota e, sem pestanejar e para o desespero de Zulu, disparou: “Dona Maria, a senhora sabia que seu filho está fumando? Eu vi.”. Quando Zulu pensava que apanharia bonito, ouviu a resposta da mãe, que já recolhia as sacolas para ir pra casa: “Meu filho trabalha e sustenta o vício dele e a senhora não tem nada a ver com isso. Passar bem!”. A sensação de alívio foi enorme para Zulu, que viu a fofoqueira de cara no chão. Saiu da quitanda todo pomposo e saltitante. No caminho, Dona Maria o repreendeu enérgica: “Eu tenho que saber as coisas por você, não pelos outros.”. Ao chegar em casa, o latebroso fumante levou uma senhora surra!

A Dona Maria, hoje com quase noventa, sabe das coisas!

23 de ago. de 2007

Mijada no Reino de Deus

O título pode parecer herege, mas não é. O que me fez lembrar uma passagem específica foi o programa televisivo Fala que eu te escuto. Assisti um pedaço numa madrugada dessa semana, chegando da noitada. Deitei, liguei a tevê e dei uma zapeada. Dos sete canais abertos disponíveis, quatro transmitiam programas evangélicos. E eu confesso que, percebendo algumas encenações e testemunhos escandalosamente combinados, cheguei a rir sozinho.

Os pastores, missionários e bispos são, como eles mesmos se intitulam, os “homens de Deus” e dão conselhos e pregam com total autoconfiança e razão, já que falam “em nome de Deus”. Eu pasmei especificamente num outro programa com uma solução encontrada pelo R.R. Soares para um crente. O fiel, desesperado, relatou ao “santo homem” que estava com uma dúvida cruel:
- Missionário, um grande amigo meu está passando fome e, se eu ajudá-lo, não poderei dar o dízimo à Igreja. O que faço?
- O único e verdadeiro amigo é Deus. Deixe de dar o dízimo e você ficará em situação pior que esta pessoa que está passando fome.

Eu não tenho preconceito em relação a qualquer religião. Apenas os acho neo-pentelhoscostais demais, chatos e soberbos. A grande maioria deles. Além disso, o preconceito deles em relação à nossa cultura brasileira me irrita e me agride. Tudo é demonizado. O samba, os batuques, as danças, o Bumba-meu-Boi, a Folia de Reis, o carnaval, a umbanda e o candomblé, enfim, tudo o que é diferente da “palavra de Deus”. Tudo isso, pra eles, é coisa do “outro”. Vejam bem, estou me referindo a essas Igrejas que dominam a massa através da tevê e do rádio e têm, cada vez mais, feito a cabeça de tanta gente.

Mas voltando ao assunto principal, no Fala que eu te escuto estava mostrando uma cena de enxota-diabos em massa. Vários pastores tirando os Exus (assim eles se referiam aos infestos espíritos) dos corpos das pessoas dominadas pelo mal, aliás, alguns eram péssimos atores. Quando eu vi isso, não pude deixar de lembrar de uma tia da minha mãe, a Maria Imaculada, ou apenas tia Lada.

A tia Lada é uma pessoa festiva, bondosa e sempre disposta a ajudar os seus. Lembro-me das festas de família, na minha infância, em que ela sempre caía no samba batucado em panelas e baldes pelos já embriagados parentes. Como nunca teve filhos, era a tia mais festejada pelos sobrinhos e pelos filhos dos sobrinhos. Ela nos levava pra comer quebra-queixo na 25 de Março, pra passear de metrô e pelo centro da cidade, para o cinema e pra visitar velhinhos no asilo. Grandes programas! Imaginem uma mulher com sete, oito crianças no centro de São Paulo. Uma guerreira. Mas também é daquelas que, quando acha que é vítima de alguma intriga da oposição, desce do salto rapidinho e roda a baiana, o que a faz ser a campeã dos barracos na família, que logo são desfeitos e tudo fica em paz.

Há poucos anos, a Imaculada foi convidada por uma amiga para participar de um culto na Universal do Reino de Deus, símbolo maior dessas igrejas a que me refiro, que tem à sua frente edir macedo, sujeito de quem não quero falar nada aqui, senão mudo violentamente o foco do texto. Como a Lada nunca diz não a ninguém e estava de férias (trabalhava no INPS e tirava muitas férias no ano e torrava tudo em viagens, doces, doces e doces) e sem nada pra fazer naquele dia, resolveu comparecer ao tal culto. Adentrou a igreja e, discretamente, sentou-se num banco na última fila. Tudo estava tranqüilo até então. A igreja não estava lotada, embora tivesse bastante gente.

Após cinco minutos, o pastor parou a pregação e revelou em tom de profecia:

- Irmãos, temos aqui hoje uma nova irmã que finalmente cedeu após tanto sofrimento, tanta angústia e depressão. Ela sentiu a presença de Jesus e resolveu tomar a atitude que vai levá-la ao caminho da salvação! Glória a Deus!

Algumas pessoas viraram para trás e cravaram os olhos nela. Nisso, o pastor fez o sinal com a mão chamando-a e ordenou:

- Irmã. Você mesma aí no fundo, venha cá.

E a Lada, arregalando os olhos e sem graça, apontando o indicador para o próprio peito perguntava se era com ela, ao que prontamente o pastor respondeu que sim e ela, mais sem graça ainda, subiu.
De frente para o pastor, ela olhava pra baixo. O minúsculo homem era praticamente um pigmeu, e a Imaculada, do alto dos seus 1,80m, achou aquilo engraçado. O baixinho começou a desvendar os enigmas:

- Você está padecendo! Você tem insônia! Sua vida está de cabeça pra baixo!

Ele forçava a voz na sílaba tônica de cada palavra proferida e apontava o indicador pra cima, em direção à face dela, querendo fazê-la acreditar. Aquilo foi demais e ela botou a mão na boca no intuito de segurar a risada, dando algumas engasgadas. O tampinha chegou mais perto e vociferou:

- Tire a mão da boca! Jesus vai te libertar! Diga como sua vida está! Fale! – E deu um pequeno salto quando gritou o “fale!”, o que fez com que Lada tirasse a mão da boca e caísse numa incontrolável e longa gargalhada em volume altíssimo, com direito a terríveis flatulências.

- Sai demônio!! Sai. – O baixote pulava com o braço levantado para alcançar e dominar a cabeça da Lada, que começava, assim como a barriga, a doer de tanto rir.

Não precisou mais pular, pois a mulher já se dobrara e foi se abaixando até sentar no chão enquanto sua cabeça era impiedosamente esmagada pelas pequenas mãos do “Homem de Deus”.

- Espírito das trevas, aqui você não fica. Essa é filha de Jesus. Ela não agüenta mais você. Eu ordeno que saia já!

Rolando no chão, a coitada da Imaculada não suportou e se mijou inteira, fato que comprovou para o pastor e para os fiéis - que a essa altura também já gritavam “Aleluia! Aleluia!” - que ele a exorcizara (sei que só padre católico exorciza, mas aqui cabe) mesmo. E, neste momento, o mini-homem berrava extasiado com a sensação de que operara um milagre, apontando para a poça de mijo:

- Olha o cão saindo! Sai demônio! Sai demônio! – Sendo aplaudido de pé pelos fiéis, que na verdade aplaudiam Jesus.

Saiu direto para um hospital desacordada de tanto rir. Nunca mais entrou em nenhuma igreja evangélica, a sempre devota de Nossa Senhora Aparecida, Maria Imaculada.

17 de ago. de 2007

Mesa de salada

Pretendo aqui escrever algumas histórias, inaugurando assim uma série, de alguém que marcou sua passagem por onde andou de maneira única, por vários motivos que abordarei. Pessoa essa que me fará muita falta até o fim da minha linha.

Eu aprendi a gostar de histórias acompanhando, desde muito pequeno, meu avô, o Velho Tirone. Seu nome, como eu já falei aqui, era Osvaldo, na Barra Funda chamado de Tirone desde quando assumiu a braçadeira de capitão do Sport do Anhanguera, aos dezesseis anos. Este, aliás, provavelmente foi o acontecimento que marcou sua transição completa para a fase adulta, já que trabalhava desde os oito e a virgindade já havia ficado pra trás há muito tempo. Começou cedo na orgia, o Velho. De fato, o beque-capitão do Sport tinha que ser um homem respeitado. A faixa não era pra qualquer um.

O Tirone era pra lá de brabo, embora esta “qualidade” não seja o centro de minha abordagem hoje, mas sim o seu insaciável apetite. Comia demais o homem. Uma de minhas lembranças mais remotas em relação à voracidade do Tirone foi quando, num lanche vespertino, ele mandou brasa em 12 - por escrito agora - doze pães franceses, do “cascudinho” da padaria da Rua dos Italianos, que era o pão francês que ele mais gostava (seu preferido era o italiano). Estávamos acostumados a vê-lo comer sete ou oito, mas nunca doze! Mas o que eu vi não se compara ao que ouvi de seus amigos e familiares, que presenciaram cenas vikings de exibição de seu poderoso maxilar.

Como eu dizia, eu gostava de acompanhá-lo, sempre nas manhãs de Sábado, até a esquina da Rua Anhanguera com a Rua do Bosque, embaixo da antiga sede do Anhanguera, onde ele se encontrava com amigos de cinco, seis décadas. Que beleza! Eu achava aquilo fantástico e lindo demais, como ainda acho uma amizade que se mantêm uma vida inteira. Vários senhores de mais de setenta na cara lembrando as coisas dos idos tempos. E eu sacava que, quando meu avô me mandava comprar qualquer coisa na padaria era porque eles comentariam alguma coisa que ele não quisesse que eu ouvisse. Provavelmente falariam de mulheres. Dentro de casa, ele não dava corda pra esses assuntos e inclusive desligava a TV quando alguma cena de beijo lingüístico estampava a tela. Exigia respeito, o Velho, dizendo: “Isso é uma pouca vergonha!”. O que eu sei é que ele não era flor que se cheirasse neste quesito também. Mas voltemos ao seu infinito estômago.

Num Domingo após o jogo, no bar Sempre Aberto estava lá o Velho (que na época não era velho) tranqüilo, bebendo com seu irmão, o Antonio. Um estranho, conversando com outro estranho, cismou que ninguém conseguiria comer uma senhora travessa de marias-moles que ali se encontrava, sob o vidro do balcão. Começaram os dois a discutir e um deles, nervoso, exclamou que pagaria duas caixas de cervejas para o homem que comesse aquela travessa inteira. Tirone, na hora, mandou para o dono do bar: “Bota essa travessa aqui, ô Manoel!”. O cara que pagaria as cervejas, neste instante riu muito. Para entender o motivo da gargalhada, vou pormenorizar a tal travessa. Eram 42 marias-moles e não eram comuns. Elas tinham 15 cm de comprimento por 8 cm de largura e 6 cm de altura, bem consistentes, não dessas ocas industrializadas. Ele amassava as marias juntando-as de três em três e ia devorando, até “limpar” a travessa. E à medida que isso acontecia, o apostador, esfregando os olhos, não acreditava que aquilo poderia ser verdade. O Tirone acabou de comer e foi pra casa. Antonio, pra tirar um barato do cara, pediu para Ayrton, seu pequeno sobrinho, ir até a casa do homem ver o que ele estava fazendo. O pequeno Ayrton voltou com a constatação: “Tio, o tio Osvaldo tá comendo um pratão de macarrão.”.

Este episódio das marias-moles é tão famoso quanto o da monstruosa marmita do barbeiro (de quem não me lembro do nome) da Rua Garibaldi. A marmita tinha 5 andares bem amplos, que eram sumariamente devorados por um ainda matreiro adolescente Tirone, que, assim como um gato sorrateiro, esperava o barbeiro se distrair para entrar no quartinho da barbearia e mandar tudo pro bucho. Isso durou algumas semanas, até o dia em que foi descoberto e perseguido pela rua por uma navalha prontinha para degolá-lo.

Mas o ápice de sua performance foi, sem dúvida, na inesquecível mesa de salada, na sede do Anhanguera, em meados da década de 40. Era uma reunião entre os diretores do clube, regada a muita cerveja e uma enorme mesa com variadas saladas. Todos os tipos de verduras e legumes estavam ali, sobre a “tauba”. Ao subir para a sede, o homem foi comunicado que não poderia permanecer e muito menos provar os muitos sabores disponíveis, ele que era um dos que mais lutavam pelas coisas da agremiação. O sentimento de revolta foi tão grande que, perante mais de vinte homens, o Velho não teve dúvidas. Abriu a braguilha e mostrou seu portentoso instrumento reprodutor a todos, que, sabendo da força dele, não ousaram bater de frente. Porém, a coisa ficou mais feia. Era claro que ele guardaria aquele troço e iria embora, mas não. Com a mão direita segurando firme, levantou os pés pra ficar na altura ideal para um ritual que durou cerca de 3 minutos, pincelando pacientemente toda a salada, até então intacta e “arrumada”, para incredulidade dos estarrecidos diretores, que ainda presenciaram, após o ritual, o Velho não deixar nem uma folhinha de alface pra contar história...

9 de ago. de 2007

O que os olhos vêem...

Nas ruas que surgem, em sua esmagadora maioria, as mais ricas e belas manifestações culturais de um povo e é nela também que as pessoas se igualam independentemente de quaisquer diferenças que alguns tentam impingir goela abaixo. A Rua é o sinônimo de comunicação e liberdade, palco de batalhas e conquistas, de festas e comemorações, lugar de moradia e comércio. Esta abrangente introdução dará os subsídios necessários ao ponto onde quero chegar, que nada mais é o de falar de um acontecimento – na verdade dois - particular do meu último Domingo, que me enlevou de emoção.

Rápido particular: Tenho um sentimento inenarrável pela rua desde moleque, quando jogava futebol e taco na Rua Boracéia e na vila da Ribeiro de Almeida. Principalmente à noite. Gosto de andar pelas ruas à noite, e prefiro as menos movimentadas, não sei por que. Ando devagar e olho minha sombra a aumentar e encolher à medida que me aproximo do próximo poste de luz, enquanto fumo um cigarro e sussurro um samba. Acho que todos têm alguma mania que remete a algum tempo em que não viveu. Eu ando pelas ruas do meu bairro e as imagino há quase um século atrás, quando o Velho Tirone, ainda menino de calças curtas, criou com outros moleques o Flor do Bosque, primeiro time de crianças da Barra Funda, o qual as camisas foram tecidas com pano de saco de farinha pelas mãos de Dona Ana, minha bisavó. Eles brincavam ali na rua onde meu pai brincou depois de 40 anos e onde eu brinquei depois de 70. Encantam-me as ruas estreitas de paralelepípedo, com postes de luz amarela. Mas, muito mais que isso, me encantam as surpresas que acontecem, como a de domingo.

Todos sabem, aos Domingos, para mim, o futebol no Anhanguera é sagrado. Neste último foi difícil me levantar devido ao embriagante Sábado no necessário Ó do Borogodó. Perdi a carona de meu pai e fui a pé. O clube fica a sete quadras de casa, coisa de dez, quinze minutos andando. Demorei meia hora para chegar e explico.

Após atravessar a Avenida Rudge, vi andando em minha direção o Didi. O Didi é um homem na faixa dos 60 anos, bem preto, careca e com uma grande barba branca e nenhum dente na boca. Estava com jornais por baixo da mesma roupa maltrapilha que usa há anos. Banho ele quase não toma. Cachaça sim, mistura essa que lhe confere um forte odor. Este sujeito faz parte do cotidiano da região. Há anos ele transita por ali e aos Domingos assiste ao jogo dos veteranos do Anhanguera e depois atravessa a ponte da Casa Verde para torcer pelo Cruz da Esperança. Na infância, antes de ser um errante solitário, foi amigo de muita gente ali. Tem família, mas sabe-se lá por qual motivo preferiu viver na rua, perambulando. Nunca pede dinheiro. Ganha a cachaça que consome, assim como o alimento.

Encontrei-o e de longe perguntei quanto havia sido o placar dos veteranos e, quando nos aproximamos, conversamos por uns 5 minutos, tempo suficiente para causar arrepios nos transeuntes. Ele, gesticulando muito e falando alto, me contava sobre um jogo de bicho que rachou com o Bonitão quando passaram a pé dois rapazes da minha idade olhando com olhos de quem não acredita no que está vendo (afinal, como é que pode um branquinho de banho tomado batendo papo com um maloqueiro preto e sujo daquele?). Passaram e, comentando um com o outro, riram, ainda não acreditando. Pouco depois percebi que uma moça que vinha com uma criança desistiu de atravessar a rua porque eu estava ao lado dele, que continuava, entusiasmado, me contando da águia que deu no terceiro prêmio. Dentro de um carro, notei um agito e pessoas apontando para nós. Uma senhora me olhou com olhos esbugalhados, provavelmente pensando “Será que esse menino está sendo assaltado ou está drogado?”. Quando me despedi dizendo que estava atrasado, disse-me ele: “Ô menino, valeu hein! Vai na fé. Obrigado!”, certamente agradecendo aqueles minutos de atenção e de olho no olho. Eu fui e ele ficou gritando pra mim, até eu sumir: “Joga na águia!! Joga na águia!”.

Mais a frente, na esquina da Sérgio Tomaz com a Neves de Carvalho, um grupo de moradores de rua - uns dez - sempre se reúne ali aos Domingos de manhã. E como o Bruno e eu quase sempre vamos a pé, talvez sejamos os únicos a andar pela calçada naqueles três, quatro metros que eles ocupam com garrafas de cachaça, panelas, esteiras e jornais velhos. O nosso simples “Bom dia, senhores!” é o suficiente para uma euforia tomar conta deles e entre as respostas de “Bom dia” vem uns: “Aí, faz um gol lá pra gente!” ou “Tem que ganhar hoje, hein!”. Eles presumem que vamos jogar vendo as chuteiras que carregamos.

Passei quase correndo, temendo me atrasar e ficar no banco, e mandei o rotineiro “Bom dia, senhores!”, e vem uma resposta em meio ao burburinho de “bons dias”:

- Hei! Peraí.
Parei e voltei. Era um rapaz novo, de uns 30. Disse que era o último Domingo dele por essas bandas, pois tinha conseguido dinheiro da passagem pra cidade dele no interior mineiro.
- Come um pedaço, aí. – Tinham numa pequena grelha alguns pedaços de carne que não davam nem pro cheiro pra um homem com fome.
- É, nós estamos comemorando a partida dele. Pega um pedaço e toma uma pinga. – Outro disse.
- Não, muito obrigado, eu preciso ir, senão vou esquentar o banco! – Repliquei ofegante.
- E teu irmão? Não vai jogar hoje?
- Ele já está lá.
- Então vai lá e faz um gol pra gente!

Parece coisa pouca e talvez eu nunca consiga expressar o que aquilo me tocou n´alma. A gentileza daqueles homens me comoveu. Ah, a arte de dividir...

2 de ago. de 2007

Anhanguera dá Samba III

É com muito orgulho que anuncio a terceira edição do projeto Anhanguera dá Samba, dia 17 de Agosto. Sim, porque da primeira para a segunda, senti uma tremenda evolução no quesito organização. Mas não é o tipo de organização que remete às burocracias metódicas e à obediência aos manuais, essa coisa típica do trabalho, uma tremenda chatice que nada tem a ver com o samba, que deve preservar pela pessoalidade e pelo improviso, tanto na roda como nas coisas ao redor dela. Regrar uma festa que tem samba não condiz com a proposta e com certeza a festa seria – perdoem a expressão – uma bosta. Digo da organização no sentido de reunir gente em prol de um projeto. O troço está tomando corpo, sendo comentado e disseminado e ganhando muitos adeptos que querem, de alguma maneira, contribuir. Gostaria de citar algumas pessoas que tem colaborado muito para a afirmação do projeto, mas não vou citar ningúem agora porque isso merecerá um texto exclusivo.

No dia 29 de Junho recebemos a grande figura do Germano Mathias e, assim como o mestre Wilson Moreira, o homem arrebentou. Dono de uma malandragem nata e com um invejável repertório de piadas – a maioria pornográfica – ele permaneceu na roda por muito mais tempo que o previsto. Como uma imagem vale muito mais, aí vai a chegada do Catedrático, algumas brincadeiras logo de cara, sua ótima impressão do projeto e do espaço e o primeiro samba cantado, de autoria do grande Caio, que intermediou a presença do Germano no Anhanguera.



Para a próxima edição, a convidada especial é a Fabiana Cozza, excepcional intérprete que, além de cantar de maneira singular, simplesmente domina e hipnotiza todo o ambiente que está sob o encanto de sua potente voz. Ouçam aqui a sublime interpretação de O Samba é meu Dom, magistral música de Wilson das Neves e Paulo Cesar Pinheiro.

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Até o dia 17.
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