31 de mar. de 2009

O grande clássico - Parte V

Saverio Russo ficou perplexo quando, aos dez minutos do segundo tempo, Barthô virou-se para o banco de reservas e fez um sinal com a mão o chamando. Os dois fundadores do Anhangüera estavam brigados desde o jogo contra a Portuguesinha que acabou rendendo o épico afastamento do agora técnico Barthô.

O jogo corria com pouca bola rolando e o cacete comendo solto. De acordo com as regras do festival só poderia ocorrer substituição se houvesse contusão séria. Se o juiz achasse que algum jogador pudesse continuar, mesmo estropiado, era dele a sentença. A essa altura o rubro-negro já jogava com dois homens a menos. Guimarães, o center-half (o que hoje seria – mais ou menos – o médio volante) sofrera uma torção no tornozelo no começo da partida e ficou fazendo número na extrema direita. Pirica, que substituía Barthô na função de matador tomou um pontapé daqueles de cima a baixo e, sem poder andar, pediu a substituição. O juizão Clemente disse que era frescura e o Pirica foi estancar na extrema esquerda.

A situação estava preta. O jogo virou com o Carlos Gomes na frente, um a zero, num gol de pênalti. A penalidade, “absurdamentte marcada” conforme registra a ata de reunião na semana seguinte, se deu quando o atacante driblou Zezinho na entrada da área. Sem ter pra quem passar a bola e rodeado de adversários, tentou fazer uma jogada de efeito. Acabou dando com o calcanhar na própria perna e caiu. A torcida riu da cena patética! Só o juiz larápio que não; pênalti!

Apesar da situação adversa o time do Anhangüera tinha Lobo, um meia esquerda de passes refinados e Sá, um veloz ponta-esquerda que estava jogando de center-forward desde que Pirica foi fazer número na sua posição. Os dois estavam inspiradíssimos, fazendo tabelinhas de costurar qualquer zaga, enquanto os outros seis jogadores corriam barbaridade pra suprir os dois que estavam baqueados.

No começo do segundo tempo, Grecco deu um rabo de arraia num incauto atacante deles. Houve empurra-empurra. Clemente autorizou a substituição do jogador do Carlos Gomes, que nem se machucou. Consta que o malandro simulou contusão porque Grecco, um cavalo, estava em seu encalço o jogo inteiro. A autorização da substituição causou revolta na torcida rubro-negra. Ficou nítido que Clemente estava disposto a fazer de tudo para que o Anhangüera perdesse, e o jogo ficou mais nervoso ainda.

Quando Barthô chamou Saverio para entrar em campo só se ouviam os urros de Sá. Numa jogada, aos dez minutos do segundo tempo, Sá entrou na área e sofreu uma falta criminosa, que deu em fratura exposta. Um dos quatro carros que haviam levado os jogadores o encaminhou direto para a Santa Casa, onde ficou internado. Clemente, dessa vez, não tinha o que fazer. Marcou a penalidade e autorizou a substituição. O espanto de Saverio é que o natural seria a entrada de Felício, o melhor entre os reservas. Mas Barthô preferiu reatar com seu amigão Saverio Russo, abrindo mão de uma já inesperada vitória.

O Anhangüera já estava morto em campo, os oito que agüentavam correr já quase não conseguiam dar mais um pique de três metros. O time recuou e sofreu um bombardeio até o fim do jogo. Em ata consta que “Laurino demonstrou atuacção brilhantte, pegando acrocbaticamente todas as investiddas do adverssário”.

Saverio era, originalmente, um jogador de contenção, fraco tecnicamente. Na meia cancha, naqueles vinte e cinco minutos que restavam de jogo quando entrou, deu sua vida, dando até a cara pro inimigo chutar. O Anhangüera estava sem ataque. Pirica e Guimarães continuavam em campo, mas eram duas estátuas, cada um em um extremo. E o pior: com a entrada de Saverio, o rubro negro ficou sem referência lá na frente. Imagino a essa altura que a diretoria inteira, a torcida e os jogadores pensavam “ah, se o Barthô estivesse em campo”.

Mesmo assim o time do Carlos Gomes não conseguiu cavar outra falta máxima. Fez-se um paredão de vermelhos e pretos à frente da muralha que foi o Laurino. Até que Clemente viu – e mais uma vez só ele viu! – uma falta na entrada da área, daquelas perigosíssimas. Todo mundo foi reclamar, inclusive Barthô, que entrou em campo pra tirar satisfação com Clemente, o principal articulador de sua suspensão. Segundo Barthô, Clemente disse a ele que “sua directoria não deu valor ao meu trabalho, me trattaram como um ratto. O Anhangüera só ganha estte jogo se eu morrer!”.

(Continua)

27 de mar. de 2009

O grande clássico - Parte IV

No sábado pela manhã, um dia antes do jogo, o extrema-esquerda Sá encontrou o presidente e perguntou, cheio de dedos, o por quê da teimosia da diretoria no caso Barthô. A torcida do Carlos Gomes já estava cantando a vitória pelo bairro. Sr. Antonio revelou que gostaria de isentá-lo da punição, mas a força das palavras de Miguel Clemente, o diretor esportivo, ludibriara a maioria dos diretores que lhe aplicaram a suspensão e que, infelizmente, não poderia mais voltar atrás. Mas, com um sorriso enigmático, assegurou ao atleta que o craque estaria em campo.

Clemente não topava com Barthô. Achava que o forward não respeitava suas decisões. E era verdade; quem escalava o time era Clemente, mas Barthô comandava dentro de campo, dizia o que cada um devia fazer e não dava ouvidos às instruções do treinador. Tal conduta era seguida pelos outros atletas, que viam em Barthô a figura de um líder.

A escalação definida na reunião da sexta feira, no entanto, mexeu com os brios de Miguel Clemente, já que não foi autorizado a escalar sozinho a equipe para o festival. Para um jogo de tamanha importância foi determinado que houvesse votação para cada posição. O homem, ferido, sentiu-se desprestigiado, tolhido, amputado. Alegou, aos berros, que dava o sangue pela agremiação e deveria ter total autonomia na escalação da equipe. Não foi atendido e entregou o cargo de diretor esportivo, não sem antes xingar os presentes e suas gerações passadas. Deixou a reunião antes de terminada, abrindo alas na horda que esperava pelo resultado do lado de fora na base da cotovelada. Rompeu abruptamente com o Anhangüera por um ano.

O festival foi no campo do Palmeiras (não o verde e branco de Parque Antártica, que na época ainda era Palestra Itália), um time extinto há décadas. O Anhangüera contratou quatro carros para levar os atletas. O Domingo estava bonito, ensolarado. Na pequena arquibancada de madeira, a grande e fiel torcida do Carlos Gomes, com seus baderneiros devidamente ouriçados, entoava uma marchinha composta um dia antes: “Deixou o time na mão / O Carlos Gomes já ganhô / Só de pensar no nosso esquadrão / Teve diarréia, o Barthô!”. Barthô era alvo dos adversários; apesar de ainda ter vários amigos por lá, era considerado traidor pelos mais fanáticos. Em meio à torcida feminina do Anhangüera, do outro lado do campo, ele ria da música.

Surpreendentemente Barthô levantou-se da arquibancada e rumou para o vestiário minutos antes do jogo. Começou o burburinho, “Barthô vai jogar!”, o que causou nova esperança à torcida rubro-negra e muita preocupação pro adversário. Os times entraram em campo. O Carlos Gomes F.C. ostentava as cores da Bandeira Nacional: camisa verde, calção amarelo e meias azuis. O Anhangüera de camisas com listras horizontais em preto e vermelho, calção preto e meias pretas. A torcida deles, em número muito maior, urrava. Era, sempre foi, uma torcida violentíssima que fazia valer a força do grito e do muque. Já a do Anhangüera – acreditem, naqueles tempos do começo do clube era assim! -, era comportada e cheias de moças.

Barthô, o maior jogador da região, entrou em campo! Lá estava ele, mas de terno, gravata e chapéu. Após a deselegante saída de Clemente, a diretoria resolveu que quem o substituiria, até escolher outro nome, seria Barthô. Foi uma maneira de prestigiar o craque e amenizar a dor da torcida. Mesmo suspenso do campo de jogo, ele estaria com os outros no jogo mais importante da curta história da agremiação. Foi um alento.

Surpresa pouca é bobagem! A maior surpresa se deu quando entrou em campo o homem de preto. Ninguém acreditava no que via. Era Miguel Clemente, o enérgico ex-diretor esportivo quem apitaria o jogo. Clemente também era membro do Partido Democrático da Barra Funda, que estava organizando o festival. Um dia antes do jogo o homem, magoado e vingativo, fez uma manobra dentro do partido e tascou o apito pra si. Sua atuação como juiz seria um dos maiores descaros já vistos num jogo de foot-ball.

(Continua)

25 de mar. de 2009

Anhangüera dá Samba XXI

Na última roda de samba que os Inimigos do Batente comandaram na Barra Funda (sim, dentro do Anhangüera é Barra Funda, independentemente do endereço ser no bairro do Bom Retiro), a noite estava quentíssima e fez com que os estoques da gelada se esvaíssem rapidamente, e eu tive que sair ligeiro às compras; ossos do ofício... Aliás, pela primeira vez de um ano pra cá não choveu na última sexta do mês. Um milagre!


Carmen Queiroz se apresentou mês passado. Com sutileza, desfiou um repertório clássico, passeando tranqüilamente pelo samba, desde os tempos áureos do rádio até Clara e João. Foi de emocionar. Uma senhora me puxou pelo braço e, com os olhos arregalados e mãos trêmulas, perguntou se era eu o Favela. “Sim, senhora”, respondi preocupado. E ela: “Quem é essa mulher? Que samba é esse, menino? Meus parabéns, isso aqui é melhor lugar do mundo!”. Contou-me, a perplexa dona, que caiu no Anhangüera após ver num jornal a programação daquele dia. Não tenho dúvidas de que a simpática e atônita sexagenária estará lá novamente, depois de amanhã. Clique no play para assistir Carmen Queiroz em ação. O vídeo é tosco, mas é o que nossa humilde estrutura proporciona; a várzea é assim!

A vigésima primeira edição do samba no Anhangüera é essa sexta. O convidado especial é carioca da "Boca do Mato" Murilão, renomado compositor, um dos primeiros parceiros de Martinho da Vila. Tem composições suas gravadas por Almir Guineto, Martinho, Quinteto em Branco e Preto e outros grandes intérpretes. Murilão é partideiro nato, dono de uma voz ancestral, forte como um trovão. Respeitado em todas as rodas de samba do Brasil, Murilão é quem preparava o famoso caldo de mocotó na Contemporânea; atualmente participa do Pagode da Berinjela da Dona Teresa, na Vila Santa Maria. E não há um samba nos sete cantos do país em que não ecoam seus versos mais famosos - a música Minha Fé -, gravados por Zeca Pagodinho: "Valei-me meu Pai, Atotô Obaluaê!".

Deixo o áudio de uma de suas composições - em parceria com Luverci Ernesto -, Mãe África, gravada pelo Quinteto em Branco e Preto no disco Riqueza do Brasil, no ano de 2.000.

Até Sexta!

17 de mar. de 2009

O grande clássico - Parte III

A suspensão de Bartholomeo Maggi foi o acontecimento de maior impacto no bairro após a construção dos trilhos da São Paulo Railway e, por isso, merece um capítulo à parte. Foi determinada uma semana antes da visita do Sr. Baddini propondo a partida entre Anhangüera e Carlos Gomes. O presidente Antonio Vignola consultou o diretor de esportes Miguel Clemente; este não deu outra opção se não a suspensão, que acabou sendo aprovada por todos os outros presentes. Clemente argumentou que o réu “não poderia ter uma justificação plausível praticando essa falta, por ser um dos mais antigos sócios, e um dos primeiros fundadores desta Agremiação”. Na mesma noite, enquanto era julgado, Barthô encontrava-se na sede jogando pingue-pongue.

O presidente, que era um homem ponderado, resolveu convocar Barthô, ali ao lado na sala de jogos, a se explicar. Em ata, consta: “Interrogado pelo Sr. Presidente respondeu o Sr. Barthô que, se praticou semelhante acto, o qual não é de seu costume, foi justamente por têr dias antes discutido com o Sr. Saverio Russo, também nosso jogador do 1º quadro de foot-ball, o qual promettera se caso não actuasse no 1º quadro preparar uma decepção no campo, decepção esta que constava de tirar as camisas de foot-ball do corpo de alguns de seus companheiros inadimplentes e mais algumas criancices de um esportista indisciplinado”. E completou, o Barthô: “Se tal falta cometi condenem-me, pois mereço as maiores das penas, mas scientes fiquem os Srs. Directores que se isso não fizesse, a promessa do Sr. Saverio seria cumprida no campo de foot-ball. Salvei-os de uma decepção!”.

Mui delicadamente Barthô se despediu dos diretores e voltou à sala de jogos. Mas suas belas palavras, seu carisma e, mais que tudo, seu futebol, não o salvaram do gancho de 30 dias imposto pela irrevogável diretoria. Ficaria restrito somente ao pingue-pongue e aos bailes neste período. Mas tudo isso não sem antes haver discórdia após sua saída da secretaria. O poderoso Matheus Sabatine, que era o tesoureiro e o mais velho membro da diretoria, ficou ao seu lado. Contra Saverio Russo, queixou-se o velho que o referido rapaz teve a ousadia de exigir os talões de recibo que se encontravam em seu poder para checar os sócios devedores - Saverio fazia de tudo para entrar em campo. Sr. Matheus foi voto vencido: Barthô suspenso!

Na semana do convite para o festival (a reunião foi na segunda-feira, dia 22), uma verdadeira operação de guerra foi formada na Barra Funda. Entre torcedores, sócios e simpatizantes, a meta era que Barthô estivesse em campo. O único assunto da semana foi a volta do craque, e chegaram a escrever seu nome em vários muros. Com ele, teríamos alguma chance de vencer. O time do Carlos Gomes era o melhor da região há anos. Foi convocada outra reunião, extraordinariamente, para a sexta-feira dia 26, esta para definir o time que iria para o importante jogo.

Apesar de serem discutidos temas de menor importância, todos os diretores sabiam para que servia aquela reunião. Lá pelas tantas, foi abordado o tema “Barthô”. Uma carta do réu foi lida em voz alta: “Exmo. Sr. Presidente e demais directores da A.A.Anhangüera: Eu, abaixo assignado, por intermédio do presente, venho respeitosamente pedir à V.V.S.S. o cancellamento da pena que me foi imposta por essa digna Directoria. Se tal pedido arrojo-me a fazel-o é simplesmente ao grande interesse que voto ao Club, e demais ao grande desejo de tomar parte no memorável jogo a realizar-se Domingo próximo, e lembrando a V.V.S.S. que se soffro a pena que me foi imposta, foi unicamente para salval-os de uma decepção emprehendida por um dos nossos consócios.
Esperando ser attendido aos meus rogos por essa digna e respeitável Directoria, subscrevo-me com alta estima e consideração. Bartholomeo Maggi
.”.

A seguir foram lidas, com muita atenção, duas outras cartas entregues por um emissário que bateu à porta. Uma delas assinada pela maioria dos sócios, todos sabendo da necessidade do craque estar em campo e pedindo o perdão a ele. A outra carta era das simpáticas fãs. Mais de cem assinaturas, das moças todas, imploravam a presença do belo. Do lado de fora da sede, a diretoria era pressionada por gritos e paneladas de um monte de gente.

Pelo que tenho em mão, não houve outra reunião, em nenhuma época, mais longa que esta, terminada às 2h00 de Sábado e com a escalação definitiva para o prélio: Laurino; Zezinho e Grecco; Lário, Guimarães e Dedé; Tinho, Brignoli, Pirica; Lobo e Sá. No banco estariam Adelino Silva, Saverio Russo, Adelino Arruda, Alberto Cassari e Felício. Os diretores Luiz Tamburro e o velho Matheus tentaram, mas o convicto diretor esportivo Miguel Clemente convenceu a maioria de que, se voltassem atrás, perderiam o moral. Não obstante, todos eles sabiam que tão adverso quanto perder o moral era perder Barthô para o jogo...

(Continua)

13 de mar. de 2009

O grande clássico - Parte II

Já no ano de sua fundação, conforme afirmei na primeira parte, o Anhangüera crescia de uma maneira assustadora. A competente, séria e enérgica diretoria arrebanhava, a cada semana, dez, vinte novos associados entre homens e mulheres. Os bailes e matinées semanais ganhavam notoriedade contando com a presença de políticos, donos de fabriquetas, comerciantes, músicos e a gente do bairro; era um ambiente seguro, de respeito, em que as famílias vinham completas, incluindo aí as donzelas mais disputadas da região.

Os membros da diretoria desfrutavam de grande prestígio já que tinham bom relacionamento com os homens da prefeitura, o que poderia angariar benfeitorias para todo o bairro. Mas o futebol é que era o negócio; a época romântica da bola! Os jogadores gozavam de um status de celebridade. As damas que iam aos bailes – acompanhadas das mães, evidentemente – também começaram a freqüentar os jogos da agremiação. Barthô alcançara seu objetivo. Era o center-forward, capitão, melhor jogador e o galã do esquadrão rubro negro, um time que não era apenas um time, como o Carlos Gomes, mas uma sociedade.

Barthô foi o Leônidas da Barra Funda no que se refere à popularidade. Onde o rapaz estava tinha gente ao redor, principalmente meninas. O italianinho, aprovado unanimemente pelas mães das moças, era disputado à tapa. Na torcida, lenços de todos os tipos e gritos histéricos tinham apenas uma direção: Barthô. E o puto resolvia, foi o maior artilheiro da primeira década do clube. Resumia-se ao campo, ao baile e à fama, o Barthô, bem diferente do incansável parceiro Saverio Russo.

Saverio, assim como Barthô, na época da fundação não era diretor, mas se matava pela agremiação – até morrer na década de 70. No baile, enquanto os jogadores Barthô, Lário, Pirica e Sá se esbaldavam na festa, Saverio ajudava na porta, no salão ou no bar. Mas o campo era seu objetivo, queria jogar. Por causa disso, num jogo contra a Portuguesa E.C., pouco menos de um mês antes do histórico clássico contra o Carlos Gomes, causou um fuzuê numa partida em que fora escalado no banco de reservas. E sua briga foi justamente com Barthô; desavença que balançaria a amizade entre os dois.

Havia, nos estatutos da agremiação, uma cláusula que definia que o associado que não estivesse em dia com clube não poderia jogar nem freqüentar a sede social. Pois no jogo contra a Portuguesinha Saverio foi preterido. Em seu lugar jogou Marciano Queiroz, um cara bom de bola, camarada de Barthô, mas que não honrava com os cofres do clube. Saverio, ao ver que esquentaria o banco, deu esporro nos diretores e foi censurado, tendo direito de defesa na próxima reunião de diretoria.

Um breve parêntese: a censura era um aviso; uma chance que a diretoria dava ao associado. Caso o mesmo não se defendesse em reunião, era automaticamente suspenso. A censura era para casos menores, diferentemente da suspensão ou da exclusão do sócio.

Saverio compareceu à reunião e meteu a boca no trombone! Além de ratificar o “descompromisso” de alguns jogadores que não estavam em dia, disse que havia, entre uns e outros atletas, o plano de tornar o Anhangüera um clube profissional, o que causou revolta na diretoria, que se manifestou em nota: “Quanto à sua discussão com o Sr. Barthô, disse ser exata, pois que elle, Saverio, era alvo da direcção esportiva toda a vez que escalavam o 1º quadro. Aliás, não poderá ser admissível menosprezar tão esforçado sócio e fundador para amparar forasteiros que aqui se alojam procurando impor o profissionalismo para a provável decadência de nossa novel e progressiva sociedade”. Saverio foi perdoado. O ataque de nervos que promovera estava justificado.

Após o jogo contra a Portuguesinha e a discussão com Saverio por causa da escalação do time, Barthô decidiu pôr panos quentes e ficou dois domingos sem dar as caras no clube. Foi convidado a disputar um mini torneio por um time de Santos. Mas envergar a camisa de outra agremiação era falta considerada gravíssima pelos estatutos e Barthô foi suspenso de participar de qualquer jogo do clube, reservando-se o direito de freqüentar a sede social, em reunião de diretoria do dia 15 de Outubro; 30 dias de gancho! O craque do Anhangüera não jogaria o glorioso festival contra o Carlos Gomes.

(Continua)

11 de mar. de 2009

O grande clássico - Parte I

Nessas terras brejeiras da Barra Funda, há muito revestidas por inúmeras camadas de asfalto, já não se vê mais os bailes de outrora, os carroções de burro, as alfaiatarias e os cordões carnavalescos. Resta ainda, para nosso bem, a maior das tradições; o futebol varzeano, já tão combalido, tão relutante, tão teimoso. Daqui da sacada do sobrado da casa de meu pai na Rua Cruzeiro quase esquina com a Lusitana (hoje Norma Pieruccini Giannotti) não consigo mais ver os oito campos que veria há quarenta anos. Dentre eles o do extinto Carlos Gomes, onde hoje funciona um Sacolão Municipal.

A Associação Atlética Anhangüera é uma dissidência do finado Carlos Gomes. Foi o maior clássico, a maior rivalidade que já se viu por estas plagas! Entre as duas agremiações aconteceram apenas dois embates – e nenhum chegou ao final da peleja. O segundo jogo, em 1947, resultou na epopéia “O Tirone e os Cabeleira”, que escrevi ano passado, em cinco partes. Neste arrazoado falarei sobre o primeiro clássico.

Como o jogo foi realizado há mais de oitenta anos, não há uma só testemunha viva para contar a história há minimamente vinte anos. Não havia registros do prélio em lugar algum, o que lançava o jogo definitivamente no lodo do esquecimento. Meu avô, que na época era um infante, sempre ouvira falar que o Anhangüera venceu, mas havia quem afirmasse ter empatado.

Eis que, há um mês, Pepe, nosso meia esquerda do segundo quadro encontra, num velho baú de sua casa, um pequeno livro de atas de reunião dos primórdios da sociedade rubro negra. Pepe é a terceira geração de anhangüeristas da família de fina linhagem. Seu avô, Saverio Russo, foi um dos fundadores da agremiação. Seu pai, Roberto Russo, foi, é, e será sempre, nosso presidente de honra. Nosso CDC (Clube da Comunidade), ou seja, a praça de esportes do Anhangüera, leva seu nome. Durante vinte e seis anos ininterruptos sendo presidente, nas décadas de 60, 70 e começo de 80, Robertinho foi a figura que mais lutou pela agremiação nos últimos cinqüenta anos. Tinha entrada livre na Câmara dos Vereadores e, graças a este bom relacionamento, nosso campo não sucumbiu há muitos anos. Se hoje batemos nossa bolinha, jogamos nosso truco e temos uma praça esportiva de respeito é porque, em 1970, Robertinho, com mãos de ferro, foi quem a logrou. O Presidente cantou pra subir há doze anos.

Mas para se abordar o grande clássico é preciso voltar no tempo, antes mesmo da fundação do Anhangüera, no primeiro dia de 1.928. A famosa dissidência do Carlos Gomes que levou ao nascimento do Anhangüera pode ser creditada a duas figuras: Bartholomeo Maggi, o Barthô, e Saverio Russo. Eram, os dois, jogadores, com uma diferença: Barthô era craque, o maior jogador das bandas na época; e Saverio era meia boca. O motivo que os levou a fundar uma nova agremiação se distinguiam. Saverio queria um time para jogar já que não tinha bola pra jogar nos times da região. Barthô, por sua vez, era o grande nome do time do Carlos Gomes e o rapaz mais formoso do bairro, com mil donzelas a seus pés. O problema é que o Carlos Gomes era uma agremiação exclusivamente futebolística e, não tendo nenhum aparato social, só tinha macho.

Como eram os dois jovens, precisariam de gente mais experiente para a missão e, se aproveitando de uma confusão entre a diretoria do Carlos Gomes, convenceram dois diretores, os irmãos Antonio e Miguel Vignola, grandes bailarinos, a fundarem uma agremiação que prezasse, além do football, os bailes.

No final de 1.927 já estava tudo preparado para fundação. Antonio e Miguel Vignola convocaram para a diretoria nomes de respeito no bairro como Miguel Clemente, Francisco Portella, Jerônimo Caetano Ferro, Adolpho Lascher, João Cidro, Antonio Chieregatti, João Gianotti, Luiz Tamburro, Antonio T. de Carvalho, Ezio Marchetti, Armando Lima, Miguel Satriani, Delphim da Silva e o poderoso Matheus Sabatine.

No final de 1.928, ano da fundação, o Anhangüera tinha mais de duzentos associados, ultrapassando em números o tradicional Carlos Gomes. E o pior: o craque Barthô, que causara a dissidência, vestia a camisa rubro negra.

No dia 22 de Outubro deste ano realizava-se uma reunião de diretoria do Anhangüera na primeira sede, à Rua do Córrego, nº. 5 quando, já no final, entra na secretaria o Sr. José Paulo Baddini, dono de pequenas fábricas. Um homem influente, politizado. Já era associado do clube, apenas freqüentando os bailes. Veio com uma missão: convidar, em nome do Partido Democrático da Barra Funda, o Anhangüera a participar do festival promovido pelo partido, justamente contra o Carlos Gomes F.C.

A princípio toda a diretoria foi contra, mas como dizer não ao Sr. Baddini? Antonio Vignola, nosso presidente, resolveu enviar uma comissão à sede do Partido com o único fim de aceitar o convite. Estava marcado o prélio!

Os fundadores em moldura da década de 30.

(Continua)

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