28 de out. de 2008

Anhangüera dá Samba XVI

Pouco antes dos Inimigos do Batente começarem a castigar o couro, reinava no Anhangüera um clima de ansiedade e realização. Era Gisa Nogueira, depois de 20 anos, se apresentando na terra da garoa. Tudo nos conformes; os músicos todos por dentro do repertório, a cerveja trincando e o povo chegando. Faltava uma coisa: o Celso, marido e violonista da Gisa, que ficara de passar o som e três músicas inéditas com o grupo antes da apresentação, que estava marcada para as zero hora - acabou atrasando uma hora. Fui buscá-lo no hotel. Como a fila no balcão de atendimento estava imensa, resolvi ligar no celular do Didu Nogueira, que também veio como convidado. Atendeu: “Favela, estamos eu e o Celso aqui no Gegê. Conhece?”.

O bar do Gegê fica na esquina da Rua Cruzeiro – a rua onde moro – com a Baronesa. Um bar antigo, ponto de encontro dos bravos resistentes do extinto Grajaú, um grande time da Barra Funda. Eu sabia que o combinado de “passar o som” iria pras cucuias. Quando cheguei, o pedaço do balcão onde os dois estavam já estava forrado de Skol. Pedi Brahma. Do outro lado do balcão, o Mané Catapano gritou pro cunhado do Gê, que estava trabalhando “Aí Alemão, o Favela que trouxe esses figuras do Rio. Só podia, é Anhangüera”. Celso já tinha até jogado no bicho com o Bonitão. Estavam em casa na Barra Funda. Szegeri ligava no meu celular, preocupado. Ficamos uma hora no buteco, com os dois não querendo chegar antes da apresentação. “Se os músicos têm o disco da Gisa e conhecem as músicas do João, então não precisa passar o som porra nenhuma”, era o que dizia o Celso. Depois de umas quatro ampolas os dois subiram pra tomar um banho e se aprumar. Fiquei no bar esperando; eles já desceriam com a Gisa – e a mulher do Didu – para a hora agá.



O terreiro aguardava lotado. Foi a Gisa entrar, recebeu palmas efusivas. Depois de um intervalo, veio a convocação e a mulher cantou, cantou muito suas músicas. E o povão acompanhando. Gisa, surpresa, confessou “não esperava por isso. Essa moçada toda cantando minhas músicas. Nunca vi.”. E deu de cantar mais; chamou o Didu e o bicho pegou. Cantaram Saldo Positivo juntos, e foi bonito demais. O ápice da noite: as lágrimas da Gisa, engasgando no Espelho, sem condições de prosseguir, chorando de emoção, repuxando muita coisa da memória, e o público em uníssono até o final. Daí um monte de gente também chorou e aplaudiu. A festa continuou, o Celso (que cabra boa-praça!) cantou além de algumas conhecidas uma música sua, “árvores do samba”, um belo samba. Não houve quem não se encantou com a presença maiúscula dessa mulher que é um doce, como diria minha avó. Muita gente, inclusive, diz que foi a maior de todas as rodas no Anhangüera. Eu também acho; na próxima sexta também vou sentir isso, e assim vai, e assim tem sido, graças aos deuses! Assistam:



Esta sexta tem mais um grande nome do samba que também não vem pra São Paulo há tempos. Dessa vez convidamos Toninho Nascimento, grande compositor que fez ínumeras músicas cantadas por intérpretes como - sintam o drama! – Clara Nunes, Elizeth Cardoso, Roberto Ribeiro, Beth Carvalho, Maria Bethânia e Elza Soares. Tem parcerias com bambas do quilate de Walter Rosa, Délcio Carvalho e Almir Guineto, além de seu maior e mais constante parceiro, o saudoso Romildo. Acompanhando-o, estará presente mais um parceiro seu: o gigante Noca da Portela, que fará novamente o chão da Barra Funda tremer. Quem esteve no Anhangüera em Maio sabe do que estou falando. Deixo o áudio de Peregrino, uma pérola, parceria desses dois que estarão sexta na nossa várzea. A gravação é de Paulinho da Viola no disco Bebadosamba, de 1996.

Até sexta!

22 de out. de 2008

Muro, murinho

Não é de bom tom brincar com coisa séria. Digo isso porque a gente vai vendo cenas terríveis, castigos horrorosos e doloridas bordoadas imaginárias daquelas que nos fazem aprender “por mal”. É prudente seguir os conselhos dos mais velhos, respeitar os 10 mandamentos e ouvir mais do que falar. É claro que, em grande parte, a gente não consegue. Mas ora! Com uma constituição que se resume à pobreza da carne e do osso é petulância demais e até patético alguém dizer que se comporta assim, no estilo “rumo à perfeição”. Cabeçadas na parede me são inerentes; e a quem não? Por isso já deixo claro que não sou – e jamais pretendi ser - o “dono da razão”.

A juventude rema contra a sabedoria e, óbvio, na contra mão da experiência. O jovem, indefectivelmente, tem arroubos de sabichão e uma natureza desprovida – até pela inocência – de medo e da noção de perigo. Quer desbravar, experimentar e se deleitar com os sabores da primeira vez. Quando a coisa é nova e desconhecida ela exerce sobre nós, pobres seres humanos, um fascínio acachapante, às vezes aterrorizante, mas um domínio que nos acorrenta uma bola de ferro no tornozelo. Daí o inexpugnável momento em que fazemos as maiores cagadas possíveis e somos colocados em nosso devido lugar.

Falei nesse negócio de jovem porque me lembro de, em criança, ser terminantemente contra uma brincadeira que julgava de mau gosto, desnecessária e perigosa. Eu, que era o único fedelho a pensar assim, no auge dos meus 9 anos, comecei aí a demonstrar os sintomas da velhice precoce que me aplaca a cada dia. Não demorarão, tenho certeza, as rugas a me tomarem toda a face – os cabelos brancos já são numerosos. Voltando à brincadeira, que prefiro classificar como falta de juízo, recordando, me vem à cabeça o Buiú, amiguinho nosso do Anhangüera, caindo no chão desmaiado, revirando os olhos e com uma baba raivosa lhe escorrendo queixo abaixo.

Chamávamos de “murinho” o desvario travestido de brincadeira. A famosa brincadeira do desmaio servia como uma espécie de batismo. Aí, analisando a vida em sociedade, concluo que atos bárbaros fazem parte da natureza humana, não é possível! Pensemos no ser adulto e em algumas doutrinas religiosas, nas gangues bandoleiras, nos exércitos de todos os tempos e lugares e até nas mumunhas políticas: quase sempre há um ritual de batismo de caráter duvidoso, violento e até funesto. O modus operandi da tal brincadeira era o seguinte: o candidato a novo membro da turma (neste caso foi o pobre Buiuzinho), após ficar num sobe e desce flexionando as pernas, era encostado com as costas no muro. Detalhe: não um muro qualquer. Tinha que ser o muro onde todos os outros moleques haviam sido batizados – saquem o ritual, coisa de gente grande. O pobre diabo, devidamente suando gelado, amedrontado, tinha que segurar a respiração por alguns segundos. Seu carrasco - o pirralho que o batizaria – com as duas mãos em seu peito, fazia força. Uma, duas, três bombadas e o inevitável desmaio.

Nunca fui “batizado”. Já pertencia à horda antes dessa cerimônia grotesca virar moda. Neste momento eu ficava geralmente de canto, sentado no meio fio, vendo, sem querer participar. Tive, invariavelmente, ímpetos de impedir o ato, todos sem sucesso algum. Resignado, vi muitos meninos desmaiarem. Nunca como o Buiú. Os outros logo se levantavam, se recuperavam do susto e saiam pulando, comemorando como um gol sua entrada na patota. O Buiú não, alguma coisa tinha dado errado. O neguinho babava a baba da tragédia e eu, sem reação, me culpei imediatamente pelo iminente falecimento do meu amiguinho; um pretinho bom de bola! Chamaram seu pai, chamaram a ambulância e o acabaram salvando o Buiú. Tomei, sem revolta, umas boas chineladas da minha mãe naquela noite; acredito que os outros moleques também. E nunca mais o “murinho” foi executado.

De uma semana pra cá, aquela imagem pavorosa do Buiú sempre me vem à cabeça quando penso no próximo domingo. Tem um monte de gente que me rodeia - a maioria, aliás -, fascinada pelo tal “desconhecido” e brincando de ser o carrasco no murinho da sociedade. E eu, novamente, vendo e sabendo que as chineladas hão de ser doloridas, sem nada fazer, sendo motivo de chacota e de incredulidade de quem baba a baba da moral e dos bons costumes. Mas hei de sobreviver, como meu amiguinho Buiú.

16 de out. de 2008

Cruz da Esperança


Domingo passado, dia 12 de Outubro, completou meio século de vida um dos times mais tradicionais da cidade. Um time pelo qual nutro demasiada simpatia. Estive lá na comemoração que começou cedinho, a convite de dois grandes amigos que figuram no hall dos maiores nomes da história do clube: Zé Augusto e Carlos Alberto Tonini, o Galo. A festa solene será amanhã, sexta feira, com um jantar dançante; buffet, música e as merecidas homenagens aos que, ao longo destes 50 anos, se dedicam com afinco à agremiação. E eu, que não me atrevo a perder um rega-bofe desses, marcarei presença!

Tudo começou na Praça Cruz da Esperança, na Casa Verde. O Chevrolet 52 do Seu Santo Bobadilha fazendo a linha até o centro, o Ford 48 de Durval Oliveira saindo dali pra Santana, e o Aníbal Pinto fazendo o trajeto pro Brás. Além deles, os irmãos Arnaldo e Leopoldo Moreira do Prado, João Pizzicato e Silvério Farina também levavam seus passageiros. O time nasceu assim; era o time dos chauffeurs de praça, batizado com o nome... da praça: Grêmio Esportivo e Recreativo Cruz da Esperança.

O primeiro mundial conquistado pelo Brasil naquele ano, na Suécia, foi o estímulo para Seu Santo ter a idéia de criar um time. Os motoristas se encontravam diariamente, após o trabalho, na Padaria Brasil. Foi lá que Seu Santo, repetindo o imortal gesto do capitão Bellini, subiu no balcão, ergueu acima da cabeça a caneca de cerveja com as duas mãos e decretou: “Ainda este ano fundarei um time. Um time que terá o nome de Cruz da Esperança e a cor da esperança. E será o maior da região!”. A adesão imediata dos colegas e dos parentes não foi suficiente para que o clube se considerasse fundado. “Esperem a data certa!” era o que dizia o Santo. Já estava tudo planejado. Para que o clube fosse consagrado e mantivesse sua genuína fé para sempre, não haveria data melhor que o dia de Nossa Senhora Aparecida, de quem era fervoroso devoto. Assim, com uma missa, foi fundado o Cruz da Esperança. Depois, festa de gente.

E foi justamente o que se deu no domingo passado. Da capela de Santa Gertrudes, em frente à entrada dos campos da aeronáutica – o campo do Cruz é um deles – saiu a procissão seguindo a imagem de Nossa Senhora até um tablado armado na área onde fica o bar do clube, ao lado do campo. E aquele espaço mundano virou uma enorme igreja. Mais de trezentas pessoas presentes; gente de todas as idades, de todas as cores, de todas camadas sociais comungando. Área essa que, todos os domingos, é palco do truco, da cerveja, do samba, das piadas e até de eventuais pancadarias.

No altar improvisado, o padre Jorjão – um senhor simpático de mais de oitenta anos, eloqüente e enérgico – rezou uma missa das mais bonitas que já presenciei. Ninguém dava um pio enquanto o padre revelava os passos de Maria mãe de Jesus e a história da imagem encontrada por pescadores, que hoje se encontra na basílica de Aparecida do Norte. Vi marmanjos chorando de soluçar, um mendigo lá longe ajoelhado pedindo a bênção e o Mauro – dono do bar na Rua Dobrada -, de pé bem ao meu lado, cair subitamente, desabar. No exato instante em que o padre falava da dedicação da Mãe ao Filho, até o calvário. Foi o sacerdote proferir a palavra “morreu”, se referindo a Cristo, e o Mauro desmoronou. Um desmaio com cara de morte, que deu ares trágicos à missa. O padre, sabendo se tratar de um arrebatamento divino, continuou o sermão, impávido. O Mauro logo acordou, com cara de quem havia recebido um sinal. Concluí que foi a alguma outra dimensão bater um papo com o Seu Santo, receber instruções para repassá-las à atual diretoria do clube, coisas desse tipo.

Mas o que mais me admira no Cruz da Esperança, além dessa fidelidade ao sagrado e dessa capacidade de tender a zero quaisquer diferenças é, principalmente, a participação das mulheres da comunidade. A força do Cruz se dá graças à participação do ilustre Departamento Feminino, que não desfruta dos domingos de futebol, já isso é “coisa de homem”. Elas ficam na retaguarda, na organização dos eventos, nos bailes e em todas as atividades sociais não esportivas. Durante a missa de domingo passado, por exemplo. Os homens do clube, todos muito bem trajados, procuravam atentar para o divino. Uns choravam de emoção, outros se prostravam perante a Imagem e outros, estacados, não perdiam uma palavra do evangelho. As mulheres do clube, enquanto isso, preparavam, incansáveis, o depois. Aposto que toda a preparação do antes também teve as mãos delas. Depois da missa teve sanduíche de salsicha, pão com manteiga, bolo, sucos, frutas de todos os tipos, café, e os sorrisos das senhoras que deram duro pra organizar tudo aquilo praquele batalhão.

A principal característica do Cruz é a capacidade de amalgamar gente. Eu, particularmente, credito este dom à data de seu aniversário, ao nome do time e à sua localização geográfica. A data católica de 12 de Outubro não deixa o cristão esquecer a fé e a caridade. O nome Cruz da Esperança sintetiza um sentimento popular; o sofrimento humano é representado pela cruz, e a confiança em coisas boas é a esperança. O bairro de Casa Verde, sendo um grande reduto negro da cidade, tratou de misturar todo mundo que é cristão e que gosta de futebol.

Em pouco tempo já tinha uma grande torcida. Torcida fanática que acompanhava o time onde quer que o Cruz jogasse. E tem, como todo time decente, um torcedor símbolo, o Cidinho. É claro que, quando a entidade cresce e ganha campeonatos, o número de adeptos também aumenta. E como a várzea não é de brincadeira, o Cruz também tinha uma torcida que, se fazia valer a fé na padroeira, fazia valer também a pancada. Passou a ser um time temido, com grandes valentes capitaneados por Maurinho, um negrinho boxeur, gente finíssima, que ainda será tema principal neste blogue. Grande figura, o Maurinho!

E como todo time grande, o Cruz da Esperança tem um rival; o lendário Vasco da Casa Verde, time mais antigo, de 1938, que dominava a região antes do alviverde nascer. O Cruz foi freguês do Vasco durante inacabáveis 19 anos. Até 1977 só dava Vasquinho. Mesmo com Basílio – ainda moleque -, o Pé de Anjo, não havia meio de bater o rival. Basílio com 14 anos já era titular do 1º quadro do Cruz - e estava no juvenil da Lusa. Dizem que muita torcida foi angariada por ele; era gente revestindo todo o alambrado pra ver o moleque jogar. Depois veio Serginho Chulapa – que jogava antes pelo rival. Os dois, mesmo na época em que eram profissionais, jogavam (quando dava) pelo alviverde da Casa Verde. E jogam até hoje!

Em 1980 veio a concessão do campo. A aeronáutica cedeu o enorme espaço com cinco campos para os clubes que estão lá até hoje: Saad, Paulista, Baruel, Pitangueira e Cruz. Volta e meia os boatos de que os clubes serão expulsos dali para a construção disso ou daquilo pipocam. Agora estão dizendo que construirão lá a Cidade do Samba, já que os campos são situados ao lado do Anhembi. Cheguei até a escrever, desgostoso, sobre isso. Mas há vinte anos corre este boato. Então não nos preocupemos - continuemos jogando nosso futebol. Junto com o campo, veio uma virada que dura até hoje. O Cruz virou algoz do Vasco. Dizem os mais fanáticos que o Vasco não ganha um jogo do Cruz há quase 30 anos. Nem jogo de veteranos, nem truco, nem palitinho, nem par ou ímpar, nada.

O Cruz da Esperança tem um tino; como eu já disse, tudo o que se faz ali junta gente, muita gente. O Jogo de Saia, por exemplo. Durante anos a fio houve este jogo no sábado que antecede a folia de Momo. Os marmanjos todos de saia e vestidinho. Claro que o Cruz não foi o pioneiro nisso; os casados e solteiros de saias é uma tradição das mais antigas no futebol. Acredito, inclusive, que o primeiro jogo de futebol no Brasil tenha sido assim. O Charles Miller com aquele bigodão usando uma roupa de bailarina, todo saltitante em campo. Acontece que no Jogo de Saias do Cruz compareciam, além dos malandros da área, vários jogadores profissionais e um morador ilustre da Casa Verde: Ademar Ferreira da Silva, nosso bicampeão olímpico. Ia imprensa acompanhar o evento. Rádio, TV, jornal. O Cruz não é brincadeira, não!

Enfim, há muito que se falar de um time com tanta história. Há grandes personagens, fabulosos causos acerca de todos esses 50 anos. E há, em mim, uma grande felicidade em ter amigos e conviver - ainda que não tanto quanto eu gostaria, já que meu Anhangüera também joga aos domingos – com o glorioso verde que te quero verde da Casa Verde. E há, mais que tudo, Esperança. Porque, enquanto houver gente de bem como o presidente Tiquinho, Sardinha, Didi, Baianinho, Tatu, Toninho, Kalú, Grillo, entre outros, fazendo parte de uma agremiação deste quilate, a tradição da várzea paulistana há de permanecer. E enquanto o espírito de comunhão – o mesmo que se faz presente nas missas de aniversário organizadas pelo Seu Inácio – pairar sobre o símbolo, o Cruz ainda será, com muito orgulho, um time de esquina. Que o digam as saudosas reuniões na Padaria Brasil, no bar do Seu Augustinho e no bar do Seu Zacarias.

Vida longa ao Cruz da Esperança!

9 de out. de 2008

Um chapéu

Tenho incontáveis razões para me orgulhar de meu pai. Mais ainda por ser, como dizem muitos dos mais chegados, o xérox, o clone, o homem “cuspido e escarrado”. São tantas as razões que não vou me utilizar da chatice de enumerar suas qualidades, e nem é preciso explicar o motivo. Digo isso porque muita gente me pergunta há anos por que não largo o futebol de vez e fico apenas com a noite, essa que me enlaçou há tempos e, conseqüentemente, comprometeu 90% das minhas atuações em campo nas manhãs de domingo – eu sempre a priorizei em detrimento do futebol; mas mesmo bêbado estava em campo. A tentativa de explicar nunca me veio. Mas ontem me peguei resgatando uma das minhas mais longínquas lembranças, e agora tenho certeza do porque de minha insistência. Lá estava eu, numa noite de sábado, andando em alguma rua do bairro com meus pais e o Angelo - o Bruno ainda era um feto. Provavelmente estávamos indo ao saudoso Michelon, restaurante na esquina da Rua do Bosque com a Anhangüera, onde antes fez história a sede social do Anhangüera. Minha mãe cochichou com o velho “Olhe, meu bem. O jeito de andar do Arthur é igualzinho ao seu!”. Fingi que não ouvi nada e comecei a reparar no meu pai. Atentei em seus passos, suas pernas andando uma após a outra, e fiquei todo prosa.

Cheguei a uma conclusão óbvia, que me fez encher o peito; se eu tinha o jeito de andar, então também herdaria, infalivelmente, sua elegância com a pelota. Nessa época meu pai estava no auge, no sport do Anhangüera. Era – ainda é -, como era seu pai, o Velho Tirone, um jogador de defesa, mas com um garbo digno de classificá-lo “zagueiro clássico” - meu avô foi apenas um “beque raçudo” e valente, com uma impulsão inumana, dizem. Era bom também no futebol de salão, tinha habilidade. Sua estréia num jogo de adultos foi justamente pelo rubro-negro, aos 14 anos. Entrou faltando dez minutos para o fim do jogo e com o placar desfavorável: 1 a 0 pro adversário. Meu avô contava, orgulhoso, sua participação na peleja, seu apoio ao filho caçula. Solicitou delicadamente ao técnico: “Ô seu puto, tira esse merda desse ponta direita e põe meu filho!”. Mimi – Vladimir, desde bebê com este apelido -, meu pai, deu duas voltas no cordão do calção, apertando-o, enquanto meu avô lhe ordenava que mostrasse o que sabia. Pisou o campo fazendo o sinal da cruz. Entrou franzino e endiabrado. No primeiro lance, deixou o lateral sentado e cruzou pro gol de empate. Cinco minutos depois fez o da virada e nunca mais saiu do time.

Eu, sabendo da história e confiando na genética, não via a hora de chegar aos 14 anos pra estrear no campo, com a gente grande. As brincadeiras de bola com a molecada na quadrinha ao lado do campo e na rua às vezes me estafavam. No três-dentro-três-fora, na linha-de-passe, no gol-a-gol, na rebatida, no bobinho, nos contras com os moleques da Rua Javaés e até batendo bola na parede, eu tentava aprimorar um fundamento que meu pai dominava com maestria: o chapéu. A dilacerante touca, o temível lençol. Quantas vezes quando menino eu vibrei, agarrado ao alambrado, quando incautos atacantes, babando, secos, tomavam desses humilhantes bonés de meu herói. Algumas vezes eram dois seguidos sem deixar a bola cair, um espetáculo. Eu e o Angelo íamos ao delírio e, soberbos, desafiávamos o Naná, o Marquinhos, o Sherra, nossos amiguinhos, com um arrogante “Quero ver teu pai fazer isso!”. Fui chamado de “filho de um burro” pelos amigos do velho apenas uma vez, quando meu pai perdeu um pênalti, coisa que não me deixou abalar. Ele podia perder uma, duas ou dez penalidades por jogo; bastava um chapéu seu e o domingo estava salvo, o jogo estava ganho, os adversários vencidos, e que se danasse o placar. Todo domingo era assim.

O tempo passou. Estreei no extra, o 2º quadro comandado pelo lendário Freitas, aos 13, como lateral direito – embora sempre tenha sido atacante. Entrei faltando cinco minutos. Uma estréia digna de nada, nem peguei na bola; bem diferente da épica estréia do meu velho. Aos 18 atingi o ápice da minha carreira futebolística, em que fiz o fantástico número de cinco gols no ano. Aos 24 eu já era um jogador em fim de carreira, barrigudo. E hoje nem sei por que ainda insisto em jogar.

Minto! Recordando, como dizia no começo do texto, eu sei. A esperança infantil ainda me é visceralmente presente. Entro em campo tomado inconscientemente de meus tempos de garoto com a cara grudada no alambrado, esperando o momento fatal, o golpe cruel e mortal que meu pai impunha elegantemente, sóbrio e impiedoso. E tento, em vão, imitá-lo. Insisto em acreditar que ainda revelarei o primor que ele desfilava. E um dia encerrarei minha carreira feliz, completo e abençoado quando, num lance tão almejado quanto impossível, eu esbandalhar um desatento como fazia meu pai. Um chapéu pra eu amarrar as chuteiras e as pendurar num fio de eletricidade numa rua da Barra Funda. Um chapéu e missão cumprida. Um chapéu.

2 de out. de 2008

Um templo ameaçado

Exibir no chapéu ou na lapela uma fita com as cores do clube mostrava que o sujeito pertencia a um clã, denotava um aspecto importantíssimo de sua identidade. Essa prática da fita, coisa dos cariocas do começo do século passado, é um bom exemplo de como as pessoas expressavam o sentimento de pertencimento a um grupo que, inclusive, é muito diferente do exercício atual de se usar a camisa do time. Isso porque as pessoas, de algum jeito, participavam do cotidiano do clube (e o clube do das pessoas), assistiam in loco seu time jogando e freqüentavam os salões e bailes do clube. Mas estamos falando de quase 100 anos atrás, muito antes de o futebol virar o negócio que virou. Mesmo assim, durante muito tempo, o amadorismo, desprovido dos sórdidos interesses pecuniários, manteve-se firme e forte no mundo do futebol. Hoje ainda resiste no brejo, na pelada de rua, na favela, na várzea. E essa resistência só se dá pelo que une os sujeitos. Não é só o futebol, são os laços de comunidade, de solidariedade e de conflito – coisas de quase família. Se isso acaba, indefectivelmente tudo vai junto.

A distinção se dava assim, este era o princípio que definia as agremiações e unia gente para além das quatro linhas. A sede do Anhangüera era viva. Todas as noites diretores, jogadores e torcedores bebiam, carteavam e, principalmente, se consideravam membros de uma mesma família. O caso do Antenor é um bom exemplo. Antenor Dias ocupa lugar cativo na história do clube. Tinha como principal característica o amor pelo rubro-negro e passou isso a frente; até hoje seu filho Valter Gordo é figura carimbada nas nossas dependências. Aos 70 anos e após ter sido presidente de 1991 a 1996, é o treineiro dos Veteranos. Desde a fundação, em 1928, Antenor esteve presente; jogou na zaga ao lado de Tirone, meu avô, durante quinze anos. Quando parou de jogar virou diretor e quando cansou virou torcedor. Até morrer.

Antenor é bom exemplo (para falar sobre essas coisas de família ou de como o clube estava no cotidiano de todos) não por causa de sua disposição para com o clube, pois era mais um no meio de tantos a se dedicar – coisa rara hoje. Estou falando é do sentimento de irmandade entre os membros do time. Para isso cito o lado profissional do Antenor. Era mecânico. Sua oficina na Garibaldi ficava, via de regra, vazia. Antenor era um sujeito enrolado. Pior, era enrolador. Ele, que era conhecidíssimo, em pouco tempo conseguiu a proeza de fazer com que ninguém do bairro levasse o carro ou o caminhão à sua mecânica. Sua especialidade era arrancar peças novas e trocar por velhas pra depois vendê-las. O pneu entrava novo, saia careca, coisas desse tipo. Costumava consertar o problema, mas seu serviço tinha essa contra-indicação. Só o pessoal do Anhangüera – os poucos que tinham veículo - nunca deixou de lhe dar serviço, pois com estes o Antenor não burlava. Eram seus “irmãos”!

Durão é outro exemplo. O maior diretor que o Anhangüera já teve, lutava com unhas e dentes pela manutenção de alguns costumes e pelo patrimônio do clube. O Velho Tirone é outro; foi ele quem plantou há 40 anos, junto com Seu Lourival, aquelas portentosas árvores. Seu Augusto cedia sua própria casa para reuniões extraordinárias. Todos eles, além de Gabriel de Medeiros, Angelo Catapano, Savério e Roberto Russo, Bartolomeu Maggi e tantos outros, com um propósito bem claro: a fidelidade à tradição e a consciência de que em algumas coisas não se mexe.

Eu afirmo há tempos que, se não recuperarmos este espírito urgentemente, cada vez mais estaremos perto do fim – infelizmente não só da várzea. O que um time varzeano precisa é de gente interessada, que goste do clube, que preserve um pouco do que era a convivência à moda antiga, sem priorizar interesses individuais. A causa em comum trata de afunilar as relações pessoais. O fulano que leva sua chuteirinha, joga e vai embora beber com seus amigos em outro lugar, sem se importar com as coisas do clube, é como o “pescador” da mesa de caxeta que vai se aventurar; se ganha a primeira fica, se perde vai embora: um aproveitador.

Enquanto mantivermos raposas vestindo nossa camisa só nos esperando adormecer, enquanto gente que não sabe picas da nossa história quiser falar mais alto e, o mais preocupante, se nos rendermos à modernização que vem aplacando tudo impiedosamente, faremos, com a boa intenção que de nada serve, tudo errado. Já nos adequamos a algumas exigências de caráter jurídico e por isso não fomos extintos com tantos outros times, graças a isso o Anhangüera é considerado um dos dez times mais organizados da cidade – mas isso nós sempre fomos, porra. A várzea ainda está aí porque manteve suas origens, e que se danem os que as consideram feias, sujas e amadoras.

A grande questão é o fenecimento de tudo o que é necessário para a sobrevivência da várzea, essa tradição tão cara. Há gente deslumbrada com os novos rumos, com a cara de limpeza e o progresso que escondem a grande sujeira que a todos vai contaminando. Nós somos um clube de várzea, temos 80 anos. Não somos uma quadra nojenta de futebol society dessas redes que também colaboram para nossa extinção.

Escrevo tudo isso para deixar aqui exposta minha repulsa à idéia maluca de assassinar nosso campo colocando nele grama sintética. Aquele chão é sagrado; é uma tremenda heresia destruí-lo, é brincar com coisa séria, é jogar no lixo o que os antigos nos confiaram. Alteremos o destino da verba que o vereador conseguiu. O Anhangüera não deve se render a essa tendência insana - uma pena que outros de tradição tenham se vendido – e muito menos servir de propaganda política. Os que estão empolgados amanhã se arrependerão. O mais feio nisso tudo, e o que mais me dói, é não preservarmos o que nos foi legado. É nossa responsabilidade valorizarmos o que temos de mais rico, de mais valoroso, e parece que está todo mundo envenenado. Mais triste ainda é não poder contar com o Tirone, o Pé de Pato, o Durão, o Seu Augusto e o Antenor pra fazer coro comigo...
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