2 de out. de 2008

Um templo ameaçado

Exibir no chapéu ou na lapela uma fita com as cores do clube mostrava que o sujeito pertencia a um clã, denotava um aspecto importantíssimo de sua identidade. Essa prática da fita, coisa dos cariocas do começo do século passado, é um bom exemplo de como as pessoas expressavam o sentimento de pertencimento a um grupo que, inclusive, é muito diferente do exercício atual de se usar a camisa do time. Isso porque as pessoas, de algum jeito, participavam do cotidiano do clube (e o clube do das pessoas), assistiam in loco seu time jogando e freqüentavam os salões e bailes do clube. Mas estamos falando de quase 100 anos atrás, muito antes de o futebol virar o negócio que virou. Mesmo assim, durante muito tempo, o amadorismo, desprovido dos sórdidos interesses pecuniários, manteve-se firme e forte no mundo do futebol. Hoje ainda resiste no brejo, na pelada de rua, na favela, na várzea. E essa resistência só se dá pelo que une os sujeitos. Não é só o futebol, são os laços de comunidade, de solidariedade e de conflito – coisas de quase família. Se isso acaba, indefectivelmente tudo vai junto.

A distinção se dava assim, este era o princípio que definia as agremiações e unia gente para além das quatro linhas. A sede do Anhangüera era viva. Todas as noites diretores, jogadores e torcedores bebiam, carteavam e, principalmente, se consideravam membros de uma mesma família. O caso do Antenor é um bom exemplo. Antenor Dias ocupa lugar cativo na história do clube. Tinha como principal característica o amor pelo rubro-negro e passou isso a frente; até hoje seu filho Valter Gordo é figura carimbada nas nossas dependências. Aos 70 anos e após ter sido presidente de 1991 a 1996, é o treineiro dos Veteranos. Desde a fundação, em 1928, Antenor esteve presente; jogou na zaga ao lado de Tirone, meu avô, durante quinze anos. Quando parou de jogar virou diretor e quando cansou virou torcedor. Até morrer.

Antenor é bom exemplo (para falar sobre essas coisas de família ou de como o clube estava no cotidiano de todos) não por causa de sua disposição para com o clube, pois era mais um no meio de tantos a se dedicar – coisa rara hoje. Estou falando é do sentimento de irmandade entre os membros do time. Para isso cito o lado profissional do Antenor. Era mecânico. Sua oficina na Garibaldi ficava, via de regra, vazia. Antenor era um sujeito enrolado. Pior, era enrolador. Ele, que era conhecidíssimo, em pouco tempo conseguiu a proeza de fazer com que ninguém do bairro levasse o carro ou o caminhão à sua mecânica. Sua especialidade era arrancar peças novas e trocar por velhas pra depois vendê-las. O pneu entrava novo, saia careca, coisas desse tipo. Costumava consertar o problema, mas seu serviço tinha essa contra-indicação. Só o pessoal do Anhangüera – os poucos que tinham veículo - nunca deixou de lhe dar serviço, pois com estes o Antenor não burlava. Eram seus “irmãos”!

Durão é outro exemplo. O maior diretor que o Anhangüera já teve, lutava com unhas e dentes pela manutenção de alguns costumes e pelo patrimônio do clube. O Velho Tirone é outro; foi ele quem plantou há 40 anos, junto com Seu Lourival, aquelas portentosas árvores. Seu Augusto cedia sua própria casa para reuniões extraordinárias. Todos eles, além de Gabriel de Medeiros, Angelo Catapano, Savério e Roberto Russo, Bartolomeu Maggi e tantos outros, com um propósito bem claro: a fidelidade à tradição e a consciência de que em algumas coisas não se mexe.

Eu afirmo há tempos que, se não recuperarmos este espírito urgentemente, cada vez mais estaremos perto do fim – infelizmente não só da várzea. O que um time varzeano precisa é de gente interessada, que goste do clube, que preserve um pouco do que era a convivência à moda antiga, sem priorizar interesses individuais. A causa em comum trata de afunilar as relações pessoais. O fulano que leva sua chuteirinha, joga e vai embora beber com seus amigos em outro lugar, sem se importar com as coisas do clube, é como o “pescador” da mesa de caxeta que vai se aventurar; se ganha a primeira fica, se perde vai embora: um aproveitador.

Enquanto mantivermos raposas vestindo nossa camisa só nos esperando adormecer, enquanto gente que não sabe picas da nossa história quiser falar mais alto e, o mais preocupante, se nos rendermos à modernização que vem aplacando tudo impiedosamente, faremos, com a boa intenção que de nada serve, tudo errado. Já nos adequamos a algumas exigências de caráter jurídico e por isso não fomos extintos com tantos outros times, graças a isso o Anhangüera é considerado um dos dez times mais organizados da cidade – mas isso nós sempre fomos, porra. A várzea ainda está aí porque manteve suas origens, e que se danem os que as consideram feias, sujas e amadoras.

A grande questão é o fenecimento de tudo o que é necessário para a sobrevivência da várzea, essa tradição tão cara. Há gente deslumbrada com os novos rumos, com a cara de limpeza e o progresso que escondem a grande sujeira que a todos vai contaminando. Nós somos um clube de várzea, temos 80 anos. Não somos uma quadra nojenta de futebol society dessas redes que também colaboram para nossa extinção.

Escrevo tudo isso para deixar aqui exposta minha repulsa à idéia maluca de assassinar nosso campo colocando nele grama sintética. Aquele chão é sagrado; é uma tremenda heresia destruí-lo, é brincar com coisa séria, é jogar no lixo o que os antigos nos confiaram. Alteremos o destino da verba que o vereador conseguiu. O Anhangüera não deve se render a essa tendência insana - uma pena que outros de tradição tenham se vendido – e muito menos servir de propaganda política. Os que estão empolgados amanhã se arrependerão. O mais feio nisso tudo, e o que mais me dói, é não preservarmos o que nos foi legado. É nossa responsabilidade valorizarmos o que temos de mais rico, de mais valoroso, e parece que está todo mundo envenenado. Mais triste ainda é não poder contar com o Tirone, o Pé de Pato, o Durão, o Seu Augusto e o Antenor pra fazer coro comigo...

13 Comentários:

Blogger Marquinhos disse...

Bom Favela diante desta apelo indignado, posso lhe dizer q somos poucos q sobraram pra manter nosso clube, e o brazão por qual agente luta a 80 anos e nós, a 26 anos desde qnd nascemos. Vimos nossos pais lutando por nossa varzea vivemos nesse meio a tantos anos, eu vc seus irmãos e mais alguns outros amigos de londa data temos a obrigação de mater essa luta viva na preservação do nosso Rubro Negro em q verdadeiramente ele é nossa varzea, nosso sangue, vamos mantelo com a mesma dignidade q nossos antepassados mantiveram. Estou com vc em todas suas palavras Favela e sou Associação Atletica Anhanguera ate morrer.


Abraço a todos q abracem nossa causa.....

2 de outubro de 2008 às 14:32  
Anonymous Anônimo disse...

Arthur, acho que tudo é válido para ser discutido nos dias atuais. Vc tem que pesar que de " fato ", infelizmente não estamos mais a 80 anos atrás. Ainda assim,com relação a segunda hipótese, de fato me deixa dúvidas. Imaginemos que esse dinheiro seja fruto ( e de fato é ), de campanhas politicas ok. Direcionar esta verba para outra situação do clube é ilusão Arthur. Se nós não usarmos este recurso, vc sabe mais do que eu que alguem vai usar, e entre esse "alguem" usar, eu prefiro que fique conosco. Portanto acho que deviamos sentar e discutir a fundo os prós e os contras desta, para que possamos chegar a uma conclusão mais definida.

2 de outubro de 2008 às 15:07  
Anonymous Anônimo disse...

entao Kid ... complicado isso aí! É mexer com uma história inteira de um clube! Concordo com o que vc disse, com a verba pode fazer melhorias muito mais interessantes no AAA.
Faz mais de 10 anos que ''frequento'' o anhanguera, e nunca vi que o gramado precisasse disso. Mto pelo contrário...é o charme da parada!!!
Minha opnião...tem que sentar vcs que seguram o clube e discutirem o que de fato é melhor para o Anhanguera, nao para os outros!!

aquele abraço !!!

2 de outubro de 2008 às 15:18  
Anonymous Anônimo disse...

Isso não pode acontecer, jamais!
Daqui apouco o Anhanguera vai jogar de laranja ou verde, com o argumento de que os tempos são outros? dias atuais? Modernidade e contemporaneidade de cú é rola!
Como disse, somos várzea, somos tradição e temos orgulho de ser.
Imagino chegar no Anhanguera daqui 5 anos... o Anhanguera jogando de laranja, numa grama sintética, as pessoas fazendo churrasco de carne de soja e bebendo cerveja sem álcool.

SOU CONTRA, MUITO CONTRA!!!

Abraço mano, falou tudo, abraço!

2 de outubro de 2008 às 15:39  
Blogger Craudio disse...

Favela, essas palavras são demasiadamente necessárias. Apesar de desconhecer o motivo exato do texto, tudo o que foi dito se encaixa perfeitamente em milhares de outras coisas na nossa cidade.

Nos bairros, nas famílias, nos butecos e no futebol profissional, que só é o que é por causa da várzea. A desculpa da modernidade é devastadora e descaracteriza tudo por onde passa, como bem lembrou o Daniel.

Ainda que os velhos não estejam por aqui para engrossar o coro, há muitos, muitos que concordam com cada vírgula aqui escrita, mesmo que não tenham a mesma belíssima relação uterina que é a sua com o grande Anhangüera.

No mais, história e tradição, por mais que queiram destruir, são coisas que jamais se apagarão. E isso o Anhangüera tem de sobra.

Abraços!

P.S.: ah, preciso te mandar um e-mail (além de marcar aquela gelada). Qual o endereço?

2 de outubro de 2008 às 16:26  
Blogger Arthur Tirone disse...

Marquinhos, Glauton, Daniel e Craudio: É isso! Precisamos resistir. E não adianta: alguns nunca entenderão!
Craudio, manda aí: arthur.tirone@gmail.com

2 de outubro de 2008 às 17:00  
Blogger Felipe Quintans disse...

Não sacaneia, Favela. Estão cogitando colocar grama sintética em vosso campo? Que idolatria escrota e sem sentido esse povo têm pelo moderno. Um moderno imbecil, que objetiva enterrar uma boniteza cuidada há oitenta anos. Não deixa não, irmão, qualquer coisa chama os amigos. Beijo.

2 de outubro de 2008 às 23:40  
Blogger Craudio disse...

E Favela, só para comprovar isso que estamos falando, o Corinthians acaba de colocar grama sintética no Terrão.

Triste.

4 de outubro de 2008 às 13:57  
Blogger Filipe disse...

O Terrão se rendeu, de fato.
Tentando explicar isso no meu blogue não me restou outra alternativa a não ser fazer o link do seu texto. Vi meu Vô falando nele.
Valeu, Favela!

4 de outubro de 2008 às 19:19  
Blogger Arthur Tirone disse...

Felipinho, pois é, mano. Estão cogitando. A boa notícia é que tem bastante gente aderindo este repúdio. Lutemos até o fim pelo que nos resta!
Beijo.

Filipe: A informação do Craudio só confirmou o que eu disse neste texto - e digo há um bom tempo -, que essa praga está se alastrando sem controle. Já vi teu texto lá. Valeu!

6 de outubro de 2008 às 11:12  
Anonymous Anônimo disse...

Arthur, boa noite

Na verdade o que mais me preocupa é a continuidade no processo de organização e direção do clube. As pessoas que hoje trabalham no clube, não ganham nada, muito pelo contrário pagam mensalidade, gastam o mesmo $ no bar etc..e não tem nenhum privilégio, apenas o prazer de servir um clube não esperando nada em troca...mesmo que isso custe stress e em algumas situações até de brigas familiares (com as esposas).

Não pense que é fácil cuidar da parte administrativa de um clube de várzea como o AAA..é muito difícil, hoje as contas do CDM estão em ordem as custas de muito trabalho.

Temos que pensar o que realmente queremos para o clube, o que realmente precisamos e quem serão as pessoas que darão continuidade no processo de tomada de decisões.

Temos que pensar que caso a verba seja disponibilizada podemos utilizar para construir um society (da melhor maneira Playbol) no lugar da quadra de futsalpor exemplo, porém seria um ambiente com suas próprias características, seu próprio bar, vestiário e etc...não se misturando com o clube de várzea.

Outra sugestão é construir um salão de jogos com mesa de ping-pong e sinuca pro pessoal se divertir.

Podemos fazer n coisas, mas abraço a causa de não gramar o campo..esse campo é sagrado. Sou a favor de nivelar o campo e passar o rolo, até gramar como já foi feito há uns anos, mas com grama natural e não sintética.

As eleições estão aí e temos que pensar como se constituirá a diretoria, quem está com vontade de trabalhar, porque falar é muito bonito, eu gosto do clube, eu amo o clube, mas eu quero ver trabalhar, ajudar, dar idéias, sugestões....e colocar a mão na massa, participando ativamente das decisões, festas, eventos, etc..nós sabemos bem disso, a festa de 80 anos foi prova disso, a mesma 6 dúzia trabalhando.

O AAA vai viver pra sempre....se trabalharmos pra isso.

Abs,

Angelo Tirone

7 de outubro de 2008 às 20:03  
Blogger Arthur Tirone disse...

Angelo: que o Anhangüera vai viver sempre, pode até ser. O problema é essa especulação de sintética no campo. Sou contra ela também em qualquer lugar, inclusive na quadra.

Gostei da tua idéia do salão de jogos. Aliás, a história do clube na sede da Rua do Bosque é recheada de histórias em torno de mesas de sinuca e pingue pongue. Retomemos!

E esse negócio de "quero ver quem põe a mão na massa", "não é fácil administrar", "ninguém ganha nada pra isso"... Sempre foi assim. Há 80 anos é assim. Não cobre dos outros o que é - mais que responsabilidade - nosso dever.

A nova diretoria já está formada e dela fazemos, mais uma vez, parte. Vamos reescrever a história e manter a tradição.

Beijo.

8 de outubro de 2008 às 15:18  
Anonymous Anônimo disse...

Caros amigos, sou partidario de todos com relação ao gramado,porém não podemos esquecer que, quando a Prefeitura libera uma verba,não é em espécie que chega até nós,e sim conforme o edital para licitação de alguma coisa, que é feito pela Prefeitura, e automaticamente,é a mesma Prefeitura que determina a execução do projeto ou algo similar,assim sendo não podemos interceder junto aos mesmos proibindo a conclusão do feito.

24 de outubro de 2008 às 16:49  

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