23 de nov. de 2007

A primeira vez num Salão da Raça

A Barra Funda, bairro essencialmente composto por negros e por imigrantes italianos e espanhóis no começo do século passado, foi, ao longo das primeiras três décadas, sofrendo um processo de expulsão dos negros ao ponto de, na década de quarenta, restarem poucos morando na região. Este processo se deu principalmente porque os negros, menos favorecidos, sofreram fortemente o impacto da valorização dos imóveis, além da então vigente "italianização" da cidade. Embora estivessem, ainda que timidamente, já inseridos no mercado formal de trabalho - o que ainda os mantinha ligados à região central - foram relegados à periferia, como Casa Verde, Vila Formosa e Cruz das Almas.

Os cordões carnavalescos, como Camisa Verde, Flor da Mocidade e Campos Elíseos, representavam, na Barra Funda, um pólo de resistência negra na cidade, em que os brancos imigrantes pouco se misturavam. Este era um relacionamento individualizado. O Camisa Verde, por exemplo, por causa de suas cores, ganhou imediatamente simpatia da colônia italiana, que torcia, nas disputas carnavalescas, para seu “representante”. Esta relação – que era alimentada pelos dirigentes do Cordão visando um bom convívio com os moradores -, porém, acabava não indo muito além. Já o Cordão do Vai-Vai da Bela Vista, bairro onde os moradores e o comércio local eram muito mais presentes e entusiasmados com o bloco, construiu uma relação bem mais próxima entre os negros componentes do cordão e os brancos moradores, fazendo inclusive, obrigatoriamente, apresentações pelo bairro antes do Carnaval.

Na década de 20 surgiram os famosos “salões da raça”, pontos de encontro dos negros advindos de todos os cantos da cidade. Estes salões, que perduraram com sucesso até a década de 50, eram freqüentados principalmente por negros jovens, para dançar, trocar conhecimentos e manter uma ligação que formava uma identidade entre estes jovens. Os salões da raça, que ficavam quase em sua totalidade no centro velho da cidade, serviram ainda como fortalecimento das relações entre negros de classes sociais diferentes, já que faziam parte da peregrinação dos Cordões no centro da cidade nos dias de Momo. Os salões da raça incitaram uma explosão de redutos negros para jovens dançarem e se divertirem e é justamente sobre um episódio num desses “bailes” negros que vamos voltar, no ano de 1965.

O informante desta passagem é meu querido amigo Antonio Carlos, o Zulu, que relatou sua primeira incursão aos tais “bailes negros”. A introdução feita é necessária para que tal processo seja entendido. O Zulu representa justamente uma parcela dos negros que foi criado em bairro branco, no caso dele nos Campos Elíseos, bairro resistente às manifestações negras, bem diferente do bom relacionamento visto na área da Vai-Vai. Viveu toda a sua infância, na década de 50, numa mansão em que Dona Maria, sua mãe, era cozinheira. Seus amiguinhos eram todos brancos. Detalhes sobre sua infância eu já abordei em outro texto.

Aos quinze anos a necessidade de conviver com os “iguais” era grande. A primeira e mais importante razão que fez com que ele buscasse um povo que com ele se identificasse foram – e isso não poderia ser mais óbvio – as recusas que sofria das meninas. Seus amigos todos já tinham dado suas esfregadas nas donzelas, menos ele. Um negro não era o perfil ideal para as filhas das madames e, por isso, nosso amigo muitas vezes era até “limado” das festinhas e bailinhos promovidos pelos patrões. As outras razões de sua necessidade também são as mais normais, como a busca por uma identidade de igualdade. Entre os negros ele não seria “diferente”.

Devido à falta de convivência no meio da negrada – é claro que tinha a família, mas quase não tinha amigos negros -, houve um estranhamento no primeiro baile que Zulu compareceu, na Freguesia do Ó, num salão indicado por um amigo branco. Foi, e foi só. Zulu não andava maltrapilho, muito pelo contrário. O filho do patrão de sua mãe usava roupas – dos melhores e mais bonitos panos – no máximo duas vezes. E tudo ficava pro negrinho. Dona Maria, mulher sabida, apoiou a idéia do filho de ir ao baile e deu, pela primeira vez, além do dinheiro do ônibus, uns trocados que pagariam no máximo três bebidas (pensava ela que seu filho ainda não bebia, aos quinze!).

Uma portinha com uma escada que levava para uma espécie de porão era a entrada. O pé-direito era baixo, mas o salão era grande, comportava coisa de 100 pessoas. Logo na entrada, um elegante Zulu foi mal-encarado por alguns elementos que o rotularam como “engomadinho”, o que causou tremores no garoto, receoso pela fama atribuída aos negros de serem rudes e briguentos – talvez a maior contribuição para essa pecha tenha sido o “Bloco dos Esfarrapados”, em que os cordões, antes do Carnaval, se encontravam apenas para violentíssimos embates físicos -, que o obrigou, já na entrada, a decidir não paquerar garota nenhuma, temendo sofrer cobrança dos rapazes da área.

Na primeira cerveja, recostado no improvisado balcão, um tímido Zulu ouviu dois caras dizendo que uma turma da pesada queria “pegar” um rapaz folgado da Barra Funda. Começou o suador e o negro ficou branco. O arrependimento bateu. “O que estou fazendo aqui?” se perguntava, visivelmente inquieto e tenso. Todos os olhares masculinos – em seus tenebrosos delírios - advertiam a bela camisa e seu impecável pisante de cromo alemão. Um coroa já meio bêbado, do outro lado do balcão, avisou: “Esses moleques acham que são malandros! Eles vão se dar mal. Estão mexendo com cobra-criada!”. Zulu, inocentemente, encheu o peito. Neste momento, pernas compridas e andar gingado desce os degraus um bamba e adentra o baile após ter surrado, na rua, os três rapazes que quiseram, em vão, impor o domínio da área e da capoeira. O sujeito, tranqüilo e risonho, pediu um vinho e puxou conversa. Zulu o conhecia de vista e sabia de sua fama e, apesar de no começo ter ficado acanhado, ao falar que era da Barra Funda ganhou o “apadrinhamento”, naquela noite, do temido gente boa.

Daí até o final do baile, mais tranqüilo e “seguro”, Zulu dançou, paquerou, bebeu e fez, como bem fazia seu padrinho, Bagunça...

7 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Olhaa, adorei uma história do Tio Zulú !!!! Putz eu gosto muito dele ...
Na maioria dos bailes e festas que tem no Anhanguera, ele vem me tirar pra dançar ...
Associei o pouco que vivo com ele à esse texto !! hehehehehehe ...
Muito booooom !!!!!

Beeeeijo Arthuuuur !!!!
Saudades Giovannellis !!!

23 de novembro de 2007 às 12:41  
Blogger Luiz Antonio Simas disse...

Ótimo!

25 de novembro de 2007 às 12:06  
Anonymous Anônimo disse...

que aula hein!!!
agora imagine esse negro que vos fala em um salão destes...

abraços.

25 de novembro de 2007 às 18:35  
Blogger Craudio disse...

Grande história, grande Zulu e grande Bagunça...

Mas o que a gente vê hoje de mané que chega chegando e não respeita o lugar, não é brincadeira. Em tempos de "modernizações" e "globalizações", esses corretivos tão cada vez mais abominados.

Mudando de assunto, escute essa voz e me diga o que acha, Favela:

http://www.sarava.mus.br/

Abraços!

26 de novembro de 2007 às 13:54  
Anonymous Anônimo disse...

ahahauahahaauhuahuhaauhauh
Adorei o comentário do Glauton.
Eu tinha algo pra comentar em mente, mas até esqueci...
huuhahuahuhahuahuhuahuahuahu

Bjs Artur, gostei do texto.
Casa Verde era periferia naquela época?????? Interessante.....

Boa semana!!!!!

26 de novembro de 2007 às 15:02  
Anonymous Anônimo disse...

Arthuca, o Zulu é foda, não é a toa que voce escreve bastante dele, curti o texto...
ahaha
abraaaçoss

26 de novembro de 2007 às 18:34  
Anonymous Anônimo disse...

Arthur sou muito feliz por ser seu Tio e Amigo, Obrigado.

27 de novembro de 2007 às 14:02  

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