19 de set. de 2008

Convocação neg(r)ada

Muita gente me pergunta por que falo tanto de Antonio Carlos Apolinário, o Zulu. Querem saber quais os motivos que me fazem lhe dedicar tanta atenção. Minha resposta, a mais óbvia possível, é direta; porque o negro é meu amigo. Há, no entanto, algumas ressalvas. Zulu é amigo de meu pai há quarenta anos. Lembro-me com cinco, seis anos, batendo bola com meu gêmeo, o Angelo, já estafados, sujos de barro, apenas esperando meu pai terminar o bate papo com aquele negrão carinhoso para irmos embora. Éramos sempre os últimos a deixar o Anhangüera. Zulu era o dono do bar do clube. Meu pai - como eu faço hoje -, após jogar futebol e depois caxeta, se deixava levar por essa coisa que sou apaixonado; o balcão de um bar e um homem do quilate do Zulu sendo seu amigo, relembrando histórias e bebendo, como sempre. Sendo Zulu amigo de meu pai e me vendo crescer, ficou tudo mais fácil. Para ter carinho por mim estavam dispensadas todas as apresentações.

Foi na minha adolescência que comecei a sacar o proceder do homem. Zulu é daqueles que falam apenas o necessário, o que não significa que não gosta de falar. Eu, por exemplo, já virei incontáveis noites em sua companhia, fazendo o que meu pai fazia nas tardes de sábado quando eu era um fedelho. A questão é que Zulu não joga conversa fora. Exigente demais, a ponto de ser considerado por muitos – e faz questão! - um chato, o crioulo fica extremamente mal humorado se o papo fica “esquisito” e não hesita em ignorar solenemente um verdadeiro chato. Faz questão, na verdade, de falar das coisas que realmente importam – pra bom entendedor... Foi com ele que aprendi, entre muitas outras lições, que o ato de vadiar e de beber é coisa das mais sérias.

Como disse meu mano Bruno Ribeiro, as pessoas e as coisas orbitam ao seu redor. No Cruz da Esperança, por exemplo, havia festa todos os anos no Dia das Crianças; mais de mil infantes se faziam presentes para receber presentes. Era festa de gente, como todas as que o tradicional time organiza. Numa dessas, há uns quinze anos, o Basílio conseguiu, junto a um comandante da área, um helicóptero que partiria do Campo de Marte, ali pertinho, até o campo do Cruz levando pela primeira vez ninguém menos que o Papai Noel. O único Papai Noel preto da história. O bom velhinho, no entanto, teria que voar. Tomou coragem, mas tomou antes uma garrafa de cana pura. O nada convencional velho de vermelho, além da pele preta, estava devidamente trançando as pernas ao descer do helicóptero. Eu vi a cena; estava lá no meio daquela criançada. A molecada, quando liberada, se transformou numa horda furiosa e correu na direção do alcoolizado Noel. Os dois primeiros que pularam em seu colo o derrubaram e se formou uma montanha de crianças sobre o homem; seu saco foi saqueado sem dó. Eu credito, sem a menor sombra de dúvida, a insana atitude da molecada ao simples fato de não perceberem que se tratava do Zulu. O polar velhote não lhes dizia respeito algum, diferentemente do querido “Tio Zulu”.

Mas é no bar que Zulu atinge seu ápice. Este é o ambiente que o faz sangrar sapiência, que se faz necessária sua intervenção, sua bênção ou sua ira. Num caso clássico, há quase trinta anos, Zulu impôs seu respeito em uma resposta a Agostino Tomaselli, sujeito já afamado como um dos mais valentes da região. Eram colegas, e continuaram sendo após um curto período em que Agostino o acusou, injustamente, de negligência neste fatídico episódio. Vamos aos fatos. Houve um período em que, no Anhangüera, toda semana o pau comia durante os jogos. Cyborguinho, Tomaselli e principalmente Waldir, o Diabo, demonstrando a maior falta de respeito para com os visitantes, com ou sem motivo tratavam de arranjar uma briga com o time adversário. Enquanto a bola rolava, Zulu, Fofo, Zêpo, Betinho, Tatinha e mais alguns vagais ficavam bebendo e assistindo ao jogo que fatalmente acabava em pancadaria. Como o Anhangüera jogava em casa, com torcida, ficava fácil a coisa e os adversários indubitavelmente apanhavam. Um dia o Zulu cansou de apartar e decidiu dar um tempo; começou a beber aos domingos no tranqüilo bar da esquina Barra do Tibagi - Visconde de Taunay. Todos os que bebiam com ele no Anhangüera, evidentemente, o acompanharam. Passou um mês, passaram dois... E vida que segue. Em um desses domingos no buteco um carro deu um cavalo de pau na porta do bar; era o Tomaselli gritando, apavorado, e convocando a turma a ir imediatamente ao Anhangüera.

Aconteceu o que Zulu sabia que mais hora, menos hora aconteceria. Um time escaldado, sabendo da então nebulosa fama do rubro negro, lotou um caminhão e foi disposto a não abaixar a cabeça; o couro comeu com prejuízo dos grandes pro Anhangüera, pela primeira vez em número menor de baderneiros. Tomaselli imaginou que a turma do Zulu estivesse no buteco e que dariam uma boa ajuda; o Fofo era forte pra burro, o Betinho e mais uns dois eram bons de briga, e o Tatinha, o Zulu e o Zêpo pelo menos ajudariam a botar panos quentes. No mesmo instante da solicitação escandalosa do Tomaselli, alegando que “Fodeu, vamos pro campo que o bicho tá pegando!”, todo mundo se levantou esbaforido, menos o Zulu que gritou um estrondoso “Pára! Ninguém sai daqui!”. O bar calou e todos voltaram os olhos assustados para o homem que, sentado em seu trono e bebendo sua cachaça, deliberou:

- Todos os Domingos vocês batem nos caras e nunca nos convidaram a participar. Hoje, pra apanhar, você quer que a gente vá? Ninguém vai sair daqui. E você nem deveria ter vindo enquanto teus amigos estão lá. Volte logo pro campo pra apanhar junto deles.

A partir daí paz voltou a reinar e os domingos foram tranqüilos no Anhangüera. Do jeito que o Rei mandou.

9 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Sensacional Cabra...melhor impossível !!!
o Zula merece todas as honras possíveis.

Abs,

Angelo

19 de setembro de 2008 às 14:13  
Blogger Felipe Quintans disse...

Muito bacana isso. Dividir balcão com os amigos de seu pai. Já fiz isso também com os amigos do meu. Não é emocionante quando ele começa a desenterrar os momentos vividos com seu pai? Acho muito foda isso, é impagável ter um amigo desses. Beijo.

19 de setembro de 2008 às 15:41  
Anonymous Anônimo disse...

Que legal essa história ...
shaushuahusa adorei. Tio Zulú, personalidade fantástica.
Imagino a cara do tio Agustinho nessa hora !! HAHAHAHAAHA.

Beijo Tutuca, sexta tô lá !!!!!!!

19 de setembro de 2008 às 15:49  
Blogger Arthur Tirone disse...

Angelo: Apenas contei mais uma dele, e ainda virão muitas outras!

Felipinho: É isso, mano. Eu constantemente estou junto dos amigos do meu pai. Muitos deles, inclusive, tornaram-se meus amigos e, independente do meu pai, bebemos juntos. Mas que é emocionante quando desenterram as histórias, isso é.
Beijo, irmãozinho!

Carol: Só o Zulu pra dar uma dessa! Ninguém mais teria essa moral. Beijo e até sexta!

19 de setembro de 2008 às 16:13  
Anonymous Anônimo disse...

As histórias do Zulu são as melhores!!
Sem palavras ...

abraços !!!

19 de setembro de 2008 às 17:33  
Blogger Ary Marcos disse...

Quando conheci o Zulu, no primeiro domingo que fui ao Anhanguera, fiquei sabendo depois que ele pensava que eu era um desses chatos que grudou no Favela. Fui apresentado a esta pessoa e em poucos minutos de conversa e alguns copos começei a perceber a figura humana e interessannte que acabara de conhecer. Vida longa a ti meu camarada Zulu.

19 de setembro de 2008 às 19:00  
Anonymous Anônimo disse...

E ai arhur
Tudo bom?
Mto legal essa história
Queria ter visto o Zulú de Papai Noel bêbado hahahahahahahaah
O Zulú é uma personalidade rara nesse mundo, é um senhor de alma jovem e coração bom
Abraço Zulú e Arthur

22 de setembro de 2008 às 10:52  
Blogger Marquinhos disse...

Nossa favela só poderia ter vindo do zulu essa de nimguem sai da mesa... Bom mas na verdade eu gostei mesmo foi do alcolizado noél me lembro mto bem dessa passagem foi uma coisa inesquecível e engraçada o que mais poderiamos esperar do nosso grande amigo zulu de anos de convivencia só aprendizado abraço até sexta...

23 de setembro de 2008 às 17:19  
Blogger Arthur Tirone disse...

Acabo de receber uma ligação de Agostino Tomaselli contando sua versão e solicitando delicadamenete que eu a escrevesse aqui, já que não sabe utilizar a caixa de comentários. Palavras do cana-dura (seu apelido na civil):

"Apesar de os "bundas-mole" não terem me acompanhado ao campo, o pessoal do Anhangüera não apanhou neste dia porque eu voltei e, na única vez na História, fui obrigado a acabar com a valentia dos adversários dando dois pipocos pro alto. Pergunte ao Cabeção e ao teu pai!"

Não é preciso perguntar, chefe. Aliás nem foi essa a questão que abordei no texto. Mas, de qualquer maneira, taí sua declaração.
Abraço.

25 de setembro de 2008 às 16:43  

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