Os monstros da Itaboca
A história do Bom Retiro lhe confere, seguramente, o título de bairro mais cosmopolita de São Paulo. Das várias chácaras que no século XIX serviam de resorts para famílias abastadas (incluindo a chácara do Bom Retiro, que deu nome ao bairro) até a predominância atual dos coreanos, foram várias as colônias que se estabeleceram no pedaço. Assim como todos os outros bairros da região, a inauguração das estradas de ferro pela São Paulo Railway foi decisiva para o desenvolvimento do Bom Retiro. Indústrias e pequenos depósitos se instalaram, assim como os muitos imigrantes. Os primeiros a chegar foram os italianos, que moravam em cortiços; abriram pequenas sapatarias e serrarias, mas quem mandava no comércio local eram os portugueses, turcos e libaneses. Depois, na década de 20, vieram os judeus da Rússia, Polônia e todas as outras adjacências e, em poucos anos, se tornariam maioria esmagadora. O bairro operário das grandes olarias do começo do século aos poucos foi se transformando pólo da indústria têxtil e um enorme centro comercial; a Rua dos Imigrantes (hoje José Paulino) fervia.
Colado aos varzeanos Barra Funda e Bom Retiro fica situado o bairro de Campos Elíseos, reduto de alta sociedade. No final do século XIX os magnatas dos Campos Elíseos ficaram preocupadíssimos quando foi aberto um canal, por baixo da linha do trem, que ligou seu nobre bairro (Alameda Nothman) ao operário Bom Retiro (Rua Silva Pinto), justamente numa fase em que uma política de higienização era prioridade na cidade. Com isso, em 1905, sobe o prédio da Escola Livre de Farmácia na Rua Três Rios, onde hoje é a Oficina Cultural Oswald de Andrade e, na Rua Tenente Pena, o Serviço Sanitário do Estado instalou o famoso Desinfectório. Com a peste bubônica, a malária e diversas febres à solta, este órgão foi incumbido de desinfetar tudo o que fosse suspeito. Residências, fabriquetas, butecos; bastava alguém caguetar um local contaminado para as jardineiras encostarem. A presença dos técnicos desinfetadores causava verdadeiro pânico nos transeuntes e moradores locais; os contaminados, e até os que demonstravam um sintoma qualquer eram levados para o Araçá, no Hospital de Isolamento, onde ficavam trancafiados a sete chaves. O prédio do Desinfectório Central virou um terror; durante anos foi considerado um lugar macabro; as pessoas evitavam até passar em frente.
Em meio a todo o processo de expansão e progresso do Bom Retiro, com comerciantes, operários e bodegas mil, o bairro notabilizou-se por ser, durante quase toda a primeira metade do século passado, o maior centro de jogatinas e prostíbulos da cidade. A Rua Itaboca (hoje Professor Cesare Lombroso), com o paredão da ferrovia ao lado, era bem escondida; parecia ter sido projetada para ser a capital da sacanagem. Cem metros de rua concentravam a quantidade de putas que lotam a Rua Augusta no corrente. Com o tremendo fervor da libertinagem, lá pelos anos 30 o furdunço invadiu também uma paralela, a Rua Aymorés. Essas duas ruas representam um dos maiores centros históricos da boemia mundial de todos os tempos e foram palco, numa noite de 1938, de uma balbúrdia bíblica. Neste ano, dois grandes torneios foram disputados: a Copa do Mundo da França, que sagrou a Itália bicampeã; e o extinto Torneio Monstro, o mais competitivo da história da várzea paulistana, vencido pelo Anhanguera.
O Torneio Monstro, temível até no nome, era o fino do futebol amador; só esquadrão. Barraca, goleiro do Anhanguera, garantiu o título defendendo um pênalti. A solene comemoração do título, um dos mais importantes da história do clube, foi justamente na Rua Itaboca, naquela noite de sábado. A comitiva anhanguerista chegou, liderada pelo próprio Barraca, à rua da perdição soltando fogos e empunhando garrafas de todas as categorias com mais de 40 homens; todos os jogadores, comissão técnica e alguns torcedores. A Itaboca era uma rua democrática - turcos, alemães, judeus, italianos e uns poucos negros se esbaldavam ali – e perigosa, pois a jogatina (principalmente o pôquer e ronda) era pesada.
A patuscada já seria inesquecível, mas havia de ser antológica devido à surpresa que se seguiu. O então prefeito Prestes Maia, cedendo às reclamações dos moradores da Rua dos Timbiras, no centro da cidade, ordenou à polícia dar fim na prostituição da área. A justa foi de uma praticidade tremenda. Na mesma madrugada, sem aviso prévio, botaram as donzelas nos camburões e despejaram todas – dizem que mais de 50 – na Itaboca; confinando a partir de então todas no Bom Retiro. A cena, presenciada pelos campeões do Anhanguera, foi inacreditável; mulheres eram trazidas em camburões e se juntavam às que já eram do lugar. O auge da noite se deu com nossos atletas valsando no meio da rua com cabrochas nuas e com uma rapariga revelando publicamente a fimose de um judeu.
Aquela farra não acabaria. “Se nem a polícia fez o serviço de nos despachar, quem faria?” era mais um motivo de festejo. Porém, o que ninguém esperava aconteceu; às quatro da madrugada encostaram várias “barcas” do Desinfectório. Durante anos suspeitou-se que um vizinho que lá trabalhava tratou de acabar com a depravação. Os técnicos da saúde - escoltados por leões de chácara armados - recolheram dois bêbados e, na base da força, anotaram nome e documento de uma meia dúzia de incautos; ação suficiente para acabar com a festa. Ser levado como “contaminado” naqueles dias era pior que amargar xadrez por atentado ao pudor. Palhinha, nosso center-alfo, que já havia sido guardado no Hospital de Isolamento anos antes e sabia que a coisa era séria, coordenou a fuga dos campeões pela linha do trem até a porteira da Rua Anhanguera.
Colado aos varzeanos Barra Funda e Bom Retiro fica situado o bairro de Campos Elíseos, reduto de alta sociedade. No final do século XIX os magnatas dos Campos Elíseos ficaram preocupadíssimos quando foi aberto um canal, por baixo da linha do trem, que ligou seu nobre bairro (Alameda Nothman) ao operário Bom Retiro (Rua Silva Pinto), justamente numa fase em que uma política de higienização era prioridade na cidade. Com isso, em 1905, sobe o prédio da Escola Livre de Farmácia na Rua Três Rios, onde hoje é a Oficina Cultural Oswald de Andrade e, na Rua Tenente Pena, o Serviço Sanitário do Estado instalou o famoso Desinfectório. Com a peste bubônica, a malária e diversas febres à solta, este órgão foi incumbido de desinfetar tudo o que fosse suspeito. Residências, fabriquetas, butecos; bastava alguém caguetar um local contaminado para as jardineiras encostarem. A presença dos técnicos desinfetadores causava verdadeiro pânico nos transeuntes e moradores locais; os contaminados, e até os que demonstravam um sintoma qualquer eram levados para o Araçá, no Hospital de Isolamento, onde ficavam trancafiados a sete chaves. O prédio do Desinfectório Central virou um terror; durante anos foi considerado um lugar macabro; as pessoas evitavam até passar em frente.
Em meio a todo o processo de expansão e progresso do Bom Retiro, com comerciantes, operários e bodegas mil, o bairro notabilizou-se por ser, durante quase toda a primeira metade do século passado, o maior centro de jogatinas e prostíbulos da cidade. A Rua Itaboca (hoje Professor Cesare Lombroso), com o paredão da ferrovia ao lado, era bem escondida; parecia ter sido projetada para ser a capital da sacanagem. Cem metros de rua concentravam a quantidade de putas que lotam a Rua Augusta no corrente. Com o tremendo fervor da libertinagem, lá pelos anos 30 o furdunço invadiu também uma paralela, a Rua Aymorés. Essas duas ruas representam um dos maiores centros históricos da boemia mundial de todos os tempos e foram palco, numa noite de 1938, de uma balbúrdia bíblica. Neste ano, dois grandes torneios foram disputados: a Copa do Mundo da França, que sagrou a Itália bicampeã; e o extinto Torneio Monstro, o mais competitivo da história da várzea paulistana, vencido pelo Anhanguera.
O Torneio Monstro, temível até no nome, era o fino do futebol amador; só esquadrão. Barraca, goleiro do Anhanguera, garantiu o título defendendo um pênalti. A solene comemoração do título, um dos mais importantes da história do clube, foi justamente na Rua Itaboca, naquela noite de sábado. A comitiva anhanguerista chegou, liderada pelo próprio Barraca, à rua da perdição soltando fogos e empunhando garrafas de todas as categorias com mais de 40 homens; todos os jogadores, comissão técnica e alguns torcedores. A Itaboca era uma rua democrática - turcos, alemães, judeus, italianos e uns poucos negros se esbaldavam ali – e perigosa, pois a jogatina (principalmente o pôquer e ronda) era pesada.
A patuscada já seria inesquecível, mas havia de ser antológica devido à surpresa que se seguiu. O então prefeito Prestes Maia, cedendo às reclamações dos moradores da Rua dos Timbiras, no centro da cidade, ordenou à polícia dar fim na prostituição da área. A justa foi de uma praticidade tremenda. Na mesma madrugada, sem aviso prévio, botaram as donzelas nos camburões e despejaram todas – dizem que mais de 50 – na Itaboca; confinando a partir de então todas no Bom Retiro. A cena, presenciada pelos campeões do Anhanguera, foi inacreditável; mulheres eram trazidas em camburões e se juntavam às que já eram do lugar. O auge da noite se deu com nossos atletas valsando no meio da rua com cabrochas nuas e com uma rapariga revelando publicamente a fimose de um judeu.
Aquela farra não acabaria. “Se nem a polícia fez o serviço de nos despachar, quem faria?” era mais um motivo de festejo. Porém, o que ninguém esperava aconteceu; às quatro da madrugada encostaram várias “barcas” do Desinfectório. Durante anos suspeitou-se que um vizinho que lá trabalhava tratou de acabar com a depravação. Os técnicos da saúde - escoltados por leões de chácara armados - recolheram dois bêbados e, na base da força, anotaram nome e documento de uma meia dúzia de incautos; ação suficiente para acabar com a festa. Ser levado como “contaminado” naqueles dias era pior que amargar xadrez por atentado ao pudor. Palhinha, nosso center-alfo, que já havia sido guardado no Hospital de Isolamento anos antes e sabia que a coisa era séria, coordenou a fuga dos campeões pela linha do trem até a porteira da Rua Anhanguera.
Muitos velhos afirmam que, durante anos a fio, o troféu do Torneio Monstro do longínquo 1938 guardou o perfume de alfazema e as marcas de batom das moças da Itaboca.
6 Comentários:
Sensacional o texto Cabra....muito bom ? Mas agora me conte: de onde saíram todas essas informações ?
Estou bem curioso.
Abs,
Angelo
Que bela relíquia!
E o cartaz denuncia os bons tempos, em que a alegria dada pelos "craks" na área era da boa.
Abraço!
Meu velho, texto maiúsculo, com um último parágrafo primoroso.
Fala Arthur
Muito bom o Texto
Primeiro pela história do Bom Retiro que eu não conhecia, um bairro onde eu não nasci mas fui criado lá
E segundo pela farra do time do AAA
Precisamos ganhar um titulo logo
O AAA precisa de um titulo do tamanho de sua grandeza
Abraço
Ava
Favela, tu és um belo dum patife. "Dois grandes torneios" em 38 foi demais...
Agora, perguntinha: achas que vovô passeava de vez em quando pela Itaboca???
Tens alguma dúvida, ó bom Szegeri?
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