20 de mai. de 2008

Um homem bonito

Eu tinha 16 anos e estudava no curso de Edificações da Escola Técnica Federal. Lá, com a mulherada, modéstia às favas, me dei bem; graças a meu gêmeo, o Angelo, que lá também estudava. Não, em verdade graças à Nelma, que o laçou naquela época acabando muito precocemente com suas farras, abrindo uma “avenida” pra eu deitar e rolar. Antes da Federal, só pra coisa ficar mais compreensível, estudamos num colégio de freiras na Três Rios, no Bom Retiro, o Colégio de Santa Inês, onde firmei amizades que até hoje mantenho. Lá no Santa Inês eu não passava de um adolescente normal. Já Angelo, meu gêmeo, era o galã da escola, do clube, do bairro, das primas, das filhas dos amigos do pai e quase da televisão.

Aos quinze, o rapaz, após fazer a rapa nas mulheres mais lindas da escola, deixando o segundo e terceiro escalões pra mim, se convenceu de que era mesmo extraordinariamente formoso e que as prisões que sofrera na última quermesse – das quais só era libertado beijando as fãs - eram muito pouco pra sua promissora carreira (era demais; eu, quando recebia, com sorte, uma cartinha de alguma menina, era humilhado pelo meu próprio irmão gêmeo, que saía das quermesses com pilhas de declarações de amor escritas em papéis de todos os tipos, dos floridos até os de pão). Foi então que numa certa tarde, voltando da escola, sentou-se ao seu lado uma menina que devia ter uns dezoito, três a mais que o belo. A moça, uma tentação para um Angelo que ainda não conhecia os meandros íntimos femininos, exibia coxas colossais expostas por um microshort jeans que deixava suas abundantes carnes maliciosamente encostarem nas pernas do menino-moço que, com o coração a quase saindo pela boca, teve a certeza que se tratava da Solange de Nelson Rodrigues aparecendo pra ele, tal qual Maitê Proença acabara de interpretar num dos episódios dominicais de “A vida como ela é...”, no Fantástico. Pediu-lhe emprestada uma caneta e, quando o já intimidado preparava-se para saltar no ponto da Rua dos Americanos, ela entregou-lhe o papel com um número de telefone; era a prova de que sua beleza suscitava a admiração alheia.

Não recordo o nome dela, mas sei que ela fazia parte de um grupo musical chamado A Patotinha, junto com outras três que regulavam idade com ela. Uma espécie de Banana Split da segunda divisão. Minha mãe, quando a conheceu, ficou horrorizada; foi contra no mesmo instante e fazia apelos ao meu pai:

- Mas meu bem, essa menina não tem uma cara boa. Veja essas roupas, ela anda pelada! Além disso, é muito mais velha que o Angelo.

E o barqueiro, esboçando um sorriso orgulhoso:

- Denize, deixa o moleque molhar o biscoito!

- Ah, não dá pra falar com você! Eu queria ver se você tivesse uma filha, seu machista!

- Deus sabe o que faz, né? – Tirando um barato da cara de mamãe, que ficava de mãos atadas; apenas falava duzentas vezes por dia para o Angelo usar camisinha, além de insistir para que ele arranjasse uma menina menos vulgar.

Fato que meu irmão desfrutou pouquíssimo tempo da Patotinha – ela acabou reatando com um ex -, porém tempo suficiente para ela convencê-lo de que deveria fazer testes para fotografia; não podia jogar fora sua fotogenia. Ela, que vivia no mundo artístico, ainda que fazendo apresentações de quinta categoria, pelo menos já tinha até gravado um disco e ganhado uma grana boa em “ensaios”. Coisa muito suspeita! Outro fato é que uma das Patotinhas era uma ruiva linda, de uns vinte, que tentei sem sucesso alguma coisa, mas só porque não me atentei. Não tive reação quando ela, depois de nem falar comigo direito, discretamente disse “ai, queria um cobertor de orelha!”. Eu, carregado de inocência, pensei “Mas que porra! Está um baita calor”; logo depois saí de casa e fui pro Bar do Sinval pensando que ela me achou um fedelho. Depois desse dia o Angelo chegou à conclusão que poderia mesmo ganhar uns caraminguás tirando fotos para capas de cadernos escolares entre outras coisas do tipo.

Convenceu minha mãe e foi fazer o tal teste pra modelo fotográfico, sem que papai soubesse (quando eu soube, o chamei de viadinho durante um mês). Porém o fotógrafo, após chamá-lo de “docinho”, mandou-o abraçar uma árvore e fazer caras e bocas. Pra que? Meu mano mandou-o pra putaquepariu e desistiu da carreira artística. Aliás, posso afirmar que, artisticamente, o Angelo foi tão longe quanto eu, e fomos juntos! Tínhamos menos de um ano de idade. Papai e mamãe – que estavam num miserê, fodidos - resolveram nos inscrever numa seleção para uma propaganda de fraldas na TV. Estavam selecionando gêmeos, que beleza! O único problema é que Angelo é moreno e eu branco e ele era muito menor que eu, de modo que até hoje não parecemos nem ser primos de terceiro grau. Foi uma grande injustiça não termos estrelado aquela propaganda... Dois anos mais tarde, já com dezessete, na noite em que tomei o maior porre da minha vida – em que amanheci no HC -, Angelo começou a namorar a Nelma, a mulher que foi capaz de uma das maiores provas de amor da História, para alívio da mamãe, que foi só apoio: “Essa sim, meu filho. Essa é de família. Pra casar, viu?”.

Eu, que cresci com este que sempre fez parte da minha vida, incluindo aí os oito meses de gestação, afirmo que compreendi o que é dividir, desde o peito da mãe, com ele. Aprendi com ele a orgulhar-me do que nossos pais esforçavam-se para nos oferecer, como naquela vez no Santa Inês, quando tínhamos onze anos e éramos os mais duros do colégio; os únicos da escola inteira – tinha o Giggio também, um neguinho da favelinha da Rua Matarazzo que era filho de uma faxineira e tinha bolsa de estudos -, que moravam numa casa alugada, em cima de um buteco na Rua Sólon. Quando tocava o sinal de intervalo de uma aula pra outra eu tinha que trocar os livros com o Angelo na classe ao lado. A professora de Matemática saía da minha sala e ia pra dele; eu tinha que entregar-lhe o livro e pegar com ele o de Geografia, por exemplo. Certo dia ele socou um coreano filhodaputa que rindo, me apontou: “pobre, vai trocar o livro!”. Eu, que nunca disse isso à mãe na época, morri de vergonha e o Angelo depois me disse que “vergonha era roubar e não conseguir carregar”, sabedoria popular que a Dona Riva, nossa bisa, sempre citava. Por fim, graças ao Angelo, uma história está sendo escrita, recuperada, eternizada. Sim, porque se me motivei a contar aqui as coisas do bairro e dos meus anônimos, é porque um dia o meu irmão acordou e decretou “vou reescrever a história do Anhanguera” e isso tem uma importância que ainda não imaginamos a dimensão, ainda que seja só pra nós dois.

O homem que nasceu comigo casar-se-á sábado próximo, com direito à porra toda que uma cerimônia tradicional exige. Este texto não serve como convite a nenhum dos meus parcos leitores. Apenas saúdo e brindo, com todas as honras merecidas, o casório de alguém que amo. Um homem, pra mim, bonito além do que os olhos são capazes de ver.


PS: Noivos, apesar da minha displicência, prometo que compro o presente antes do casamento!

20 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Angelo, Nelma: FELICIDADES!!!

Pena que já tenho um compromisso no sábado...

20 de maio de 2008 às 15:53  
Anonymous Anônimo disse...

Nossa que homenagem linda Arthuco !
Adorei !!!!!!!
Beijocas

20 de maio de 2008 às 17:31  
Anonymous Anônimo disse...

Com toda sinceridade, chorei ao ler o texto, de orgulho de dois irmãos maravilhosos que tenho...

E sábado eu não quero nem ver.

Beijo.

Bruno Tirone

20 de maio de 2008 às 17:48  
Anonymous Anônimo disse...

Arthur, boa noite !

Já te disse que não consigo responder com palavras o que sigficou pra mim esse texto, a sensação é indescritível, nosso amor começou bem antes de nascermos e com certeza deve perdurar até um de nós partir pra junto do vô e da vó.

Quando vc disse domingo que uma música é melhor que qualquer presente eu pensei: "esse é o Cabra...que miguezão", mas após ler esse texto chego a conclusão que não existe nada melhor que isso: amor, amizade, carinho, cumplicidade.

Cabra, paro por aqui por que palavras não são meu forte..prefiro te dar um puta beijo e abraço.

T AMO

Angelo

20 de maio de 2008 às 22:03  
Blogger Unknown disse...

Ótimo texto... Parabéns ao Ângelo (casou antes q eu...rs). E uma pergunta ao Arthur...se Ângelo casa no próximo sábado, teremos Anhanguera dá Samba na próxima sexta?

Abração
Bertolozzi

20 de maio de 2008 às 23:36  
Anonymous Anônimo disse...

ê Favela, com um irmão tão certinho, você foi sair um maloqueiro de quinta categoria, hein? uhauhauhauhauhahu

Abração

21 de maio de 2008 às 08:38  
Anonymous Anônimo disse...

bonito mano, estou emocionado... vai ser uma choradeira esse casório...

Um brinde aos noivos!!!

21 de maio de 2008 às 10:08  
Anonymous Anônimo disse...

Artú,

Como sempre comentamos qdo vc não está por perto (rsrs), você é diferente de nós Tirones (is) qdo o assunto é demonstração de afeto. Entretanto, o seu texo acabou de revelar (embora já imaginávamos isso) que no quesito sentimento você é igualzinho a todos nós.
Parabéns pelo belo texto!!!

Ah! Sabadão aquele altar vai parecer um rio de tanto que vai ter choradeira.

bjo do Adri

21 de maio de 2008 às 12:43  
Blogger Arthur Tirone disse...

Gente: Obrigado pelos elogios, mas chega de viadagem. Homem não chora, porra!

21 de maio de 2008 às 12:57  
Blogger Szegeri disse...

Testemunho para Denize: o Arthur (pra mãe não tem essa de "Favela") não atrasou por causa de vagabundagem, não. No momento dos vossos telefonemas desesperados (pelos quais tive que "ouvir", da patroa, o fim de semana inteiro...), o menino, aos prantos, tentava controlar a emoção, repetindo para mim e para o embevecido e incrédulo Almeida: "O homem que passou nove meses abraçado comigo está casando..." E chorava, o pobre.

Beijo e parabéns a todo o clã Tirone pelas efemérides esponsais. Beijo grande ao Ângelo e à Nelma! Que os Orixás abençoem o vosso caminho! Paz, ventura e prosperidade para vocês e toda a descendência! Axé!

21 de maio de 2008 às 12:58  
Blogger Felipe Quintans disse...

Aqui de longe consigo perceber que este sentimento de vocês é profundo demais. Esses contos relatados por você nos dão a idéia de uma bonita história de família. Tenho passagens parecidas na minha também. Temos sorte de podermos sentir este amor pelos nossos queridos mais próximos.

Texto bacana mesmo.

Mande um abraço para o pessoal aí.

21 de maio de 2008 às 13:24  
Blogger Arthur Tirone disse...

Fábio: O Anhanguera dá Samba! é na sexta dia 30/05. Espero você lá! Abraço.

Szegeri: Foram oito meses abraçados. Hei de postar ainda, por aqui, uma foto de mamãe já nos oito, quase a ponto de explodir e sem conseguir, "enlaçando" a barriga, juntar uma mão à outra. No mais, sabes que minha família é também tua. Beijo.

Felipinho: Que bom que consegui passar um pouco desse sentimento. E melhor ainda é desfrutarmos dessa beleza que é a união entre os de mesmo sangue. Valeu, mano. Mandarei teu abraço!

21 de maio de 2008 às 14:50  
Anonymous Anônimo disse...

Arthur,

Amor de irmão é muito lindo.
A gente briga, a gente xinga, a gente se bate, mas só irmãos sabem o que vão no coração um do outro.
É muito bom ter um irmão....Eu agradeço a Deus todos os dias pelo meu.

Sabe que domingo, eu estava comentando com o Ava sobre vocês.
Que vocês não tem nada a ver um com outro fisicamente, gemêos de mentira, rs....E ele rachava o bico, me contando várias histórias...

Sabado vai ter chororô sim senhor...
Homem chora...É bonito ver um homem chorar...de emoção...

Ah e tbm vai ter bebedeira
Vai ter neguinho saindo carregado. Não vejo a hora...

Um beijo grande nesse seu coração gigante!!!!!

21 de maio de 2008 às 15:58  
Anonymous Anônimo disse...

Sei que foi o Arthur que escreveu e que o Angelo é o homenageado.

Mas vou comentar do que sinto agora, nesse momento.

Obrigado a todos vocês (Bruno, Angelo e Arthur), por fazer parte da minha vida, foi com vocês que aprendi o que é ter AMIZADE.

AMO VOCÊS COM TODAS AS FORÇAS DO MUNDO, e agora me vejo diante de um altar sendo padrinho de casamento de um de vocês.
Angelo... saiba que você é um vencedor e que a cada dia que passa te admiro mais. Espero que você seja muito feliz ao lado da Nelma.

Angelo, obrigado!!!
Arthur, obrigado!!!
Bruno, Obrigado, obrigado, tu, tu!!
Tia Denize e Tio Micas, Parabéns e obrigado por me aturar todos os dias!!!!

AMO VOCÊS!!!

SHERRA

21 de maio de 2008 às 16:05  
Anonymous Anônimo disse...

Querido,

Você sabe como acho que os parafusos do mundo estão meio frouxos, o quanto é incompreensível para mim essa inversão das idéias que permitiu que as coisas se tornassem mais importantes que os homens, que inclusive, passaram a se constituir a partir das coisas que possuem. Por isso não consigo caber em mim cada vez que vc revela essa virtude de olhar, com olhos de ver, as bonitezas da vida que não estão no que se pode pegar com as mãos.
Amo-te
Milena

21 de maio de 2008 às 17:26  
Blogger Arthur Tirone disse...

Melissa: Não basta ser irmão; tem que ser irmão.
Eu e o Angelo, como eu disse, não parecemos nem primos, a não ser para as tias velhinhas e míopes que falam "nossa, um é o focinho do outro". Beijo pra você também!

Sherra: Aproveite essa, porque eu não casarei na igreja!

Milena: Querida, você nasceu para a luta incessante de apertar os parafusos, isso já me orgulha e me apaixona sobremaneira. O resto, o tanto que tenho pra te dizer, farei pessoalmente! Te amo.

21 de maio de 2008 às 17:50  
Blogger Eduardo Goldenberg disse...

Querido: quanta coisa bonita... Eu, que vivo com meu Fefê, guardadas as proporções (não somos gêmeos, pô!), troço parecido, sei o quanto isso é importante na tua vida e na vida do Angelo, a quem quero conhecer logo! Um grande beijo, mano. Só reveja essa sua posição. Se homem não chora, eu e Fernando Szegeri somos as mais loucas bichas soltas no planeta!

30 de maio de 2008 às 13:35  
Blogger Arthur Tirone disse...

Querido Edu: Não viste que o comentário de Fernando Szegeri denunciou minha frase irônica de que homem não chora? Só no Rio, no teu aniversário, chorei umas cinco vezes. Quanto ao Angelo, você o conhecerá; um grande cara!
Beijo.

30 de maio de 2008 às 14:46  
Blogger Eduardo Goldenberg disse...

Então anote aí, querido, e guarde nos seus alfarrábios: se o Angelo for metade do que é o homem que nasceu com ele, meu velho, ele já será um grande cara, dos indispensáveis. Beijo.

30 de maio de 2008 às 17:08  
Anonymous Anônimo disse...

Parabéns pelo irmão!
Parabéns para o irmão!
Felicidades!
Abraço
Perla Lima

31 de maio de 2008 às 11:49  

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