O Tirone e os Cabeleira - Parte I
Quem me conhece sabe que sou, na contramão de todos os homens da minha família, um sujeito pacífico. Sempre evitei as “vias de fato”, com a justa exceção de quando, no cu-de-boi, estão envolvidos pai, tios, irmãos ou alguns seletos amigos. Ou seja, mesmo não sendo adepto da resolução de qualquer intempérie na base do cascudo, já participei de algumas pancadarias. Vindo de uma família de broncos, seria impossível passar em branco, ainda mais quando um campo de várzea é a extensão da casa e referência de encontro da horda. Houve outro pacato; o falecido irmão mais velho de meu pai, o Wande. A única vez que agrediu alguém foi quando, numa confusão no meio de um jogo do Grajaú, entre xingamentos e ameaças, o cara que ele tentava acalmar chamou o Wagner, seu irmão, de filhodaputa.
De toda a família, meu avô foi disparado o mais ignorante. Seu currículo de pancadas é vasto. Foram inúmeras as histórias de sopapos que soubemos dele; a maioria pelas bocas do bairro. A primeira delas que eu soube – e essa contada orgulhosamente pelo próprio – foi quando, aos oito anos, o velho deu uma rasteira num inspetor da escola que batia nos alunos; pulou o muro e nunca mais pegou num livro. De todas as encrencas que participou, a esmagadora maioria se deu por causa do futebol. As intensas rivalidades entre os times de várzea dividiam bairros e ruas; definiam os freqüentadores de bares e bailes; despertavam ódio por desconhecidos que defendiam cores inimigas.
Na Barra Funda, a maior de todas as rivalidades do futebol varzeano foi entre Carlos Gomes e Anhanguera. O Carlos Gomes era um time mais antigo, com uma enorme torcida alcunhada – vejam só! – BBB: briguentos, bandidos e bêbados. O Anhanguera, fundado em 1928, é fruto de uma dissidência da diretoria do Carlos Gomes e teve como objetivo principal ser o maior organizador de eventos sociais da região como: bailes de todos os tipos, concursos de fantasia e de misses, campeonatos de várias modalidades de jogos como ping pong, sinuca e bocha, além do esporte bretão. Com essas realizações, os jogadores e simpatizantes passaram a freqüentar todas as noites o bar da sede, na esquina da Anhanguera com a Rua do Bosque, para jogos como patrão e solto, sueca e pôquer, tudo acompanhado de muita birita.
A citada dissidência levou apenas os sujeitos pacatos do Carlos Gomes; os arruaceiros continuaram por lá. Na fundação do Anhanguera meu avô tinha dez anos; começou a jogar aos quinze e aos dezesseis já era beque-capitão. O Anhanguera nunca foi famoso pela torcida (jamais foi um time de massa), nem por ser de briga. O time não era reconhecido como brigão, mas Tirone sim; e foi com ele que começou a fama de que o Anhanguera andava ganhando, como se diz no brejo, na bola e no pau, jogos contra esquadras repletas de valentões. Efetivamente, os únicos que aderiam ao pega-pra-capar junto com o velho nos jogos do Anhanguera eram Barraca e Antenor. Mais ninguém. E meu avô, dizem, era briga pra dez homens. Quando enervava, sai de baixo. Para entrar no meio de um perereco no Pacaembu, por exemplo, deixou meu pai, então com três anos, nos braços de um senhor desconhecido. Outra vez, no cinema, enfiou o braço num fulano que apenas sentou numa cadeira ao lado de minha avó e soltou algum muxoxo, interpretado como “sem-vergonhice” pelo Velho, que, com certeza, nem entendeu o que o sem-sorte disse.
Com a fama de arranca-toco devidamente lampejada no lugar, não lhe faltavam desafios. Era como deter o cinturão dos pesos-pesados. Pra ser temido, é preciso arriar o “campeão”, título imaginário envergado pelo Velho Tirone após três episódios: em 1937, o China, um caboclo grande e brabo, correu dele três voltas no campo; em outra situação, num baile no Anhanguera promovido pelo Guerino, seu irmão saxofonista, um negrão enorme que tocava surdão o estranhou quando recebeu dele a paga e acabou na lona; e na Copa do Mundo de 1938, quando caçou pelo bairro inteiro seu próprio irmão Antonio, que comemorara a vitória – roubada, urrava o Velho – da Itália em cima do Brasil. Sobre suas convicções ninguém tripudiava; ora, como um brasileiro, mesmo sendo filho de italianos, mesmo sendo seu irmão, podia torcer contra o Brasil? Voltariam a se falar após dois anos... Sua valentia era, de certa maneira, bem vista no Anhanguera. Pelo menos ninguém iria deitar e rolar, de graça, nos domínios do rubro-negro. No mínimo teria que enfrentar Tirone, e de quebra Barraca e Antenor.
Pois bem; tal fama acabou por despertar, após um jogo entre Carlos Gomes e Anhanguera (um dos dois únicos da história), a ira de uma turma pesada do Carlos Gomes, os temidos Cabeleira, e provocou o mais alardeado e memorável embate - uma verdadeira guerra pessoal - da história da Barra Funda, uma epopéia que duraria meses.
(Continua)
De toda a família, meu avô foi disparado o mais ignorante. Seu currículo de pancadas é vasto. Foram inúmeras as histórias de sopapos que soubemos dele; a maioria pelas bocas do bairro. A primeira delas que eu soube – e essa contada orgulhosamente pelo próprio – foi quando, aos oito anos, o velho deu uma rasteira num inspetor da escola que batia nos alunos; pulou o muro e nunca mais pegou num livro. De todas as encrencas que participou, a esmagadora maioria se deu por causa do futebol. As intensas rivalidades entre os times de várzea dividiam bairros e ruas; definiam os freqüentadores de bares e bailes; despertavam ódio por desconhecidos que defendiam cores inimigas.
Na Barra Funda, a maior de todas as rivalidades do futebol varzeano foi entre Carlos Gomes e Anhanguera. O Carlos Gomes era um time mais antigo, com uma enorme torcida alcunhada – vejam só! – BBB: briguentos, bandidos e bêbados. O Anhanguera, fundado em 1928, é fruto de uma dissidência da diretoria do Carlos Gomes e teve como objetivo principal ser o maior organizador de eventos sociais da região como: bailes de todos os tipos, concursos de fantasia e de misses, campeonatos de várias modalidades de jogos como ping pong, sinuca e bocha, além do esporte bretão. Com essas realizações, os jogadores e simpatizantes passaram a freqüentar todas as noites o bar da sede, na esquina da Anhanguera com a Rua do Bosque, para jogos como patrão e solto, sueca e pôquer, tudo acompanhado de muita birita.
A citada dissidência levou apenas os sujeitos pacatos do Carlos Gomes; os arruaceiros continuaram por lá. Na fundação do Anhanguera meu avô tinha dez anos; começou a jogar aos quinze e aos dezesseis já era beque-capitão. O Anhanguera nunca foi famoso pela torcida (jamais foi um time de massa), nem por ser de briga. O time não era reconhecido como brigão, mas Tirone sim; e foi com ele que começou a fama de que o Anhanguera andava ganhando, como se diz no brejo, na bola e no pau, jogos contra esquadras repletas de valentões. Efetivamente, os únicos que aderiam ao pega-pra-capar junto com o velho nos jogos do Anhanguera eram Barraca e Antenor. Mais ninguém. E meu avô, dizem, era briga pra dez homens. Quando enervava, sai de baixo. Para entrar no meio de um perereco no Pacaembu, por exemplo, deixou meu pai, então com três anos, nos braços de um senhor desconhecido. Outra vez, no cinema, enfiou o braço num fulano que apenas sentou numa cadeira ao lado de minha avó e soltou algum muxoxo, interpretado como “sem-vergonhice” pelo Velho, que, com certeza, nem entendeu o que o sem-sorte disse.
Com a fama de arranca-toco devidamente lampejada no lugar, não lhe faltavam desafios. Era como deter o cinturão dos pesos-pesados. Pra ser temido, é preciso arriar o “campeão”, título imaginário envergado pelo Velho Tirone após três episódios: em 1937, o China, um caboclo grande e brabo, correu dele três voltas no campo; em outra situação, num baile no Anhanguera promovido pelo Guerino, seu irmão saxofonista, um negrão enorme que tocava surdão o estranhou quando recebeu dele a paga e acabou na lona; e na Copa do Mundo de 1938, quando caçou pelo bairro inteiro seu próprio irmão Antonio, que comemorara a vitória – roubada, urrava o Velho – da Itália em cima do Brasil. Sobre suas convicções ninguém tripudiava; ora, como um brasileiro, mesmo sendo filho de italianos, mesmo sendo seu irmão, podia torcer contra o Brasil? Voltariam a se falar após dois anos... Sua valentia era, de certa maneira, bem vista no Anhanguera. Pelo menos ninguém iria deitar e rolar, de graça, nos domínios do rubro-negro. No mínimo teria que enfrentar Tirone, e de quebra Barraca e Antenor.
Pois bem; tal fama acabou por despertar, após um jogo entre Carlos Gomes e Anhanguera (um dos dois únicos da história), a ira de uma turma pesada do Carlos Gomes, os temidos Cabeleira, e provocou o mais alardeado e memorável embate - uma verdadeira guerra pessoal - da história da Barra Funda, uma epopéia que duraria meses.
(Continua)
7 Comentários:
Meu avô era foda, se ele gostava ele dava até as roupas, mas era só pisar no calo dele pra ele quebrar a cara do pobre diabo.
Bruno.
Nossaaa, num sabia q ele era bravo !!! hehehe ...
Mas "muxoxo" pra cima da donzela, não acho justo !! Tem que dar soco mesmo !! ahauhaahah ...
Essas histórias várzeanas, dariam um livro !!! Que tal Arthuca ?
Tem o meu apoio !!!
Beijoooooooo
Familia Tirone boa de briga hein.
Me lembro uma vez que seu pai no AAA foi "acalmar" um cara do time adversário e quando ele foi chegando pertinho deu uma bela cabeçada nele.
Isso foi história pro ano inteiro....até na minha faculdade sabiam...Foi demais!!!!
Parabéns pela sua familia.
Bjs!!!!
Nooossa....uma trilogia da história dos Cabeleiras ? Meu Deus !!!
Muito bom cabra...su memória é igual ao de um elefante.
Vai Velho Tirone !!!
Bjs,
Angelo
Se a minha família me lesse, já estava feliz...
E tão carinhoso com as netinhas. Graças a Deus, não lembro de ter presenciado nenhuma briga com ele envolvido. Mas a história do cara que ele arrastou no caminhão nunca vou esquecer. Eita família sangue quente. As vezes me esqueço o por quê de ser uma baixinha tão folgada, mas depois lembro que vem do sangue!!! Só minha mãe que é avessa à brigas, discussões etc.
Comentário acima: Ana Paula Mazzoco
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