9 de abr. de 2008

A família de tapeceiros

Contou-me na semana passada o grande Julio Vellozo que estava assistindo a uma aula no curso de História que faz na USP e, concomitantemente, lendo o livro A Dança dos Deuses – Futebol, Sociedade e Cultura, de Hilário Franco Jr. O professor desfiava sobre coisas impossíveis de se escrever, desprovidas de qualquer registro, qualquer documento, quando avistou o tantas-folhas do Julio e sentenciou:

- Por exemplo: o futebol de várzea. É impossível escrevermos sua história completa, pois infelizmente não existem mais clubes que nasceram antes dos anos 40.

A rebatida veio como um cruzado de esquerda e, no ato, um sarcástico Julio levanta a mão desviando, ainda sem abrir a boca, todas as cinqüenta e três cabeças para sua direção, no fundo da sala:

- Existe sim!

O docente, certo que era blefe, desafiou, submergindo em sua ignorância varzeana:

- Qual clube, Sr. Vellozo?

- O Anhanguera. Faz oitenta anos neste 2.008.

- Fica aonde? Onde fica?

- Desde 1970 sediado à Rua dos Italianos, no Bom Retiro; é um clube da Barra Funda. – Arrematou o impiedoso Julio, chegando a sentir o sangue da pobre vítima escorrer por entre seus dedos, como se tivesse cravado uma peixeira no perplexo professor, que, resignado:

- Ah bom. Aí, sim... Se nasceu na Barra Funda...


Principiei com essa passagem que o Julio relatou-me para revelar aqui alguns dos milhares de documentos – mais precisamente fichas de matrícula – das décadas de 40 e 50, que alinharei a um causo. Documentos mais antigos virão mais pra frente.

O Anhanguera, assim como a esmagadora maioria dos outros times da Barra Funda, Bom Retiro, Brás, e dos bairros “italianizados” nas três primeiras décadas do século passado, foi fundado e era composto por brancos filhos dos imigrantes da bota; trabalhadores pobres que tinham na várzea um raro espaço de lazer; daí os grandiosos bailes, os concursos de miss e de várias modalidades esportivas, além, é claro, dos antológicos festivais e campeonatos futebolísticos. Foram os anos áureos da várzea – da década de 40 até o começo dos anos 70.

Junto com os registros abaixo, pesquisei com os mais velhos do bairro algumas informações sobre os Olivieri, que foram de longe a família com o maior número de indivíduos no Anhanguera. Pareciam formiga, os “tapeceiros”; eram chamados assim por dominarem tal ofício (até hoje representados pelos irmãos Walmir e Wanderlei na Rua Anhanguera). Dizem que, no ano de 1955, eram mais de cinqüenta os associados com tal sobrenome, o que começou a causar férteis imaginações nas cabeças do bairro inteiro. Teve um buchicho de que o clã estaria disposto a tomar o poder elegendo um membro em votação para a presidência, o que fez com que o então presidente proibisse qualquer novo Olivieri de se matricular, alegando que “devemos dar espaço para outras famílias”. O tema virou assunto no bairro. Nos butecos, na feira, nas fábricas e nas janelas das fofoqueiras ganhou força uma suposta rebelião esquematizada pela família em jantares no nº. 362 da Rua do Bosque... Nada disso viria a se concretizar.

Com tempo a família foi se dissipando do Anhanguera. Muitos mudaram-se para outros bairros, outros deixaram de ir quando perdemos a sede da Rua Anhanguera; outros, que só iam “dansar” (vide as fichas!) nos bailes pararam de freqüentar o salão após se casarem... Enfim, quarenta anos depois resta ainda um bravo. Wilson Olivieri detém hoje uma ficha de matrícula das mais antigas dos associados em ativa. E – espero - será eleito para o próximo mandato presidencial. Porque além de ser número baixo sabe o que deve ser feito - e principalmente o que não deve - para continuarmos resistindo enquanto time varzeano.

Alguns dos Olivieri:

6 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Boa Arthur....

E diga-se de passagem, uma das melhores famílias da Barra Funda.

Wilson Olivieri pra presidente!!!!

Abraços.

Ps.: como sempre um monstro da língua portuguesa. Parabéns cabra!!!!

9 de abril de 2008 às 15:02  
Blogger Unknown disse...

Que beleza! Lindo isso tudo, mano! As carteirinhas me deixaram comovido!

Urge a sua visita à sede do Pátria Futebol Clube, o mais longevo time de futebol amador de Campinas e - quiçá - do Brasil. Foi fundado em 1931 e, embora não mantenha suas atividades esportivas em dia como o Anhangüera, mantém aberto o botequim onde tudo começou. O botequim é, assim, uma espécie de museu do futebol de várzea paulista, com fotos antigas pelas paredes, troféus, medalhas, atas de jogos e muitas, mas muitas histórias contadas por ex-jogadores, ex-treinadores, ex-árbitros e ex-torcedores que até hoje fazem questão de manter viva a história do clube - não obstando os cabelos brancos da esmagadora maioria de seus sócios.

Sacou de onde vem o nome do meu blog, né? Urge a sua visita ao botequim que será tua casa em Campinas.

Saudações patrióticas!

9 de abril de 2008 às 16:37  
Blogger Arthur Tirone disse...

Mano Bruno: eu já sabia da existência do Pátria Futebol Clube sim. E não tenho dúvidas de que será minha sede em Campinas.

Não vejo a hora de conhecer. Irei em breve; muito breve!

9 de abril de 2008 às 16:51  
Anonymous Anônimo disse...

Boa Sherra!
Wilson Olivieri pra presidente!!!!

Animal mano, belo texto!
abraço

9 de abril de 2008 às 17:55  
Anonymous Anônimo disse...

Eee !!! Addooorei o textoo !!

Muito bom !!
E Tio Wilson pra presidente !! Aeeeeee Smiiirat's !! huahauahu ...

Bjooooooooo

9 de abril de 2008 às 18:16  
Blogger Craudio disse...

Com o que andamos vendo pelo futebol por aí, com toda sua "modernidade e profissionalismo", é de fazer chorar esse registro.

Só no Brasil, e principalmente em São Paulo, é que temos essa gloriosa origem varzeana do futebol. Coisa do povo, que não tem cadeira numerada que bata. E que, como você disse, tem gente que carrega o negócio no peito e sabe o que deve e o que não deve ser feito.

Abraços!

10 de abril de 2008 às 15:55  

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