Quem é o valente?
Na década de trinta, na Rua Julio Conceição, Bom Retiro, existia uma turma da pesada. Todos na faixa dos vinte anos; Zezito, Calango, Valente, Ferrugem e Áureo. As exceções eram Orlando, o mais velho, com uns quarenta e o Chumbinho, um moleque de doze. Fizeram tanta arruaça que não dá pra resumir em um causo. Claro, causo é causo e só vou – além de apresentar as figuras - rabiscar um neste texto.
Orlando, ex-cadeiero, vivia de um bico aqui e outro ali há alguns anos. Carteira assinada, nem pensar. Ninguém daria emprego a um marginal que foi preso em flagrante metendo o cano na cara do trabalhador do outro lado do balcão. Está certo que ele tinha apenas dezenove na época do ato bandido, mas a ponderação geral só ia até aí. Depois de seis anos de cana e o juramento de nunca mais bandolear na vida, o artesanato o salvaria da fome. Orlando ficou craque, quando guardado, na arte com a madeira; bichos, casinhas, enfeites de todos os tipos e, de sarro, bonequinhos pornográficos daqueles que puxando uma cordinha o pau sobe. Era sucesso. O pão era garantido assim. Seu estabelecimento era a rua, mais propriamente a calçada em frente à casa de sua velha e viúva mãe, na Júlio Conceição. Um tablado, as ferramentas, o suor e a cara sisuda. Daí a turma dos cinco vagabundos o adotaram como “conselheiro”. Orlando, com suas tatuagens disformes à base de nanquim, era o tipo durão que servia de exemplo a ser seguido. Porém, a relação entre o coroa e os vagais era, no fundo, antagônica. Embora convivessem diariamente bebendo e jogando baralho, o Orlando não se metia nas encrencas e tentava aconselhar o bonde a “tomar um rumo”.
Chumbinho era um negrinho que vivia na rua. Ninguém sabia exatamente onde morava; apenas que era aprendiz no ofício de alfaiate, no salão do Seu Tenório, da Tenente Pena. Antes era engraxate. Astuto com o baralho na mão, ganhava uns trocos a mais fazendo mágicas primárias para donas de casa na feira. Moleque ligeiro, o Chumbinho logo conquistou a simpatia dos mais velhos e virou o mascote da turma.
A amizade da turma da Julio Conceição era coisa antiga, desde a época em que o Orlando estava encerrado e dormia com um olho aberto. Moravam todos uns perto dos outros e, quando pivetes, batiam bola na Julio Conceição, rua que acabou virando deles. Ferrugem e Áureo eram irmãos, filhos de um caixeiro-viajante e de uma costureira; viviam na rua. Jamais foram à escola e morreram, os dois, analfabetos. Calango era filho de mãe solteira; empregada doméstica. Baixinho e magérrimo, o caboclo era feio; mas feio a dar com pau. E ruim. Era, de longe, o que mais aprontava. Tinha, às vezes, instintos de larápio. Sua rapidez virou lenda na área; vacilou, ele levava mesmo. Mão fina de primeira categoria. Zezito era forte como um touro. Não muito alto, mas era quadrado, o português (era filho de portugas). Uma patada do Zezito era capaz de derrubar, e desmaiar, dois ou três. A turma tinha nele a segurança necessária; aquele que “vai na frente” e topa qualquer parada. Era o Zezito que enfiava o braço em nêgo da Barra Funda que atravessava a fronteira pra buscar balão. Meu avô sempre contou que se alguém do Bom Retiro viesse à Barra Funda buscar o balão que caiu, também levava cacete. Era lei.
O último dos cinco, que foi o personagem principal do causo que vou contar, era o Valente. Mauro Valente era seu nome completo. Totalmente doido. Dizem que, graças à sua colossal inteligência, o Valente tinha sérias dificuldades no campo dos relacionamentos. Dentro de casa apanhava do pai, um engenheiro aposentado que bebia o dia inteiro. Por isso rua era mais segura, mas nem tanto; Valente tinha talento pra apanhar. Primeiro virou capacho dos irmãos Ferrugem e Áureo. Pagava lanche, tomava tapa na orelha e servia de gandula no futebol da molecada, o “mauricinho”. De fato tinha uma condição social mais avantajada. Com o passar do tempo Valente foi sendo aceito pela turma. Talvez por dó, vai saber... Outra coisa que é fato - taí um mistério - é que toda turma tem um lerdo. Seus arroubos de gênio contrastavam com sua lerdeza, ou melhor, sua falta de destreza. Valente resolvia um impossível cálculo matemático em poucos minutos, mas não conseguia entender a piada mais simples do mundo ou captar qualquer movimento que requeresse um pouco de malícia. Ser assim, na Rua, é prejuízo. A sorte que o acometeu foi o Calango ter ido com sua cara de tonto.
A prova maior da cabacice do Mauro Valente se deu num buteco na Rua da Graça. O Áureo, que era um galanteador barato, pagou um guaraná pro Chumbinho entregar um bilhete pra uma mulher que passava por ali. Azar é que o marido da dona, que estava no bar com mais uns oito amigos, viu e foi tirar satisfação. Ferrugem chegou metendo a bolacha e o couro comeu. Não sobrou uma cadeira intacta. Todo mundo no meio do bolo e sopapo sobrou até pro dono do bar. Algum vizinho deu sinal e a polícia chegou firme, botando todo mundo encostado na parede. Dois dos “outros” estavam estragados com as porradas do Zezito, mas Ferrugem tomou uma garrafada que abriu sua cabeça; nada grave. O chefe dos “hômi” estava brabo. Sabia, de longa data, que aqueles cinco da Júlio Conceição são de lascar, principalmente o Calango, que a essa altura já tinha dado no pé.
Falando alto, puto da vida, o polícia-chefe botou banca:
- Vocês acham que são bons, seus vagabundos? Agora tá todo mundo aí, com cara de coitado! Não vão falar nada? Quem começou tudo isso? Eu quero saber quem o valente, aqui! Quem é valente?
O idiota do Mauro levantou a mão, imponente:
- Eu sou o Valente! Por quê?
Ficou de cama uma semana com a surra que levou da justa.
Orlando, ex-cadeiero, vivia de um bico aqui e outro ali há alguns anos. Carteira assinada, nem pensar. Ninguém daria emprego a um marginal que foi preso em flagrante metendo o cano na cara do trabalhador do outro lado do balcão. Está certo que ele tinha apenas dezenove na época do ato bandido, mas a ponderação geral só ia até aí. Depois de seis anos de cana e o juramento de nunca mais bandolear na vida, o artesanato o salvaria da fome. Orlando ficou craque, quando guardado, na arte com a madeira; bichos, casinhas, enfeites de todos os tipos e, de sarro, bonequinhos pornográficos daqueles que puxando uma cordinha o pau sobe. Era sucesso. O pão era garantido assim. Seu estabelecimento era a rua, mais propriamente a calçada em frente à casa de sua velha e viúva mãe, na Júlio Conceição. Um tablado, as ferramentas, o suor e a cara sisuda. Daí a turma dos cinco vagabundos o adotaram como “conselheiro”. Orlando, com suas tatuagens disformes à base de nanquim, era o tipo durão que servia de exemplo a ser seguido. Porém, a relação entre o coroa e os vagais era, no fundo, antagônica. Embora convivessem diariamente bebendo e jogando baralho, o Orlando não se metia nas encrencas e tentava aconselhar o bonde a “tomar um rumo”.
Chumbinho era um negrinho que vivia na rua. Ninguém sabia exatamente onde morava; apenas que era aprendiz no ofício de alfaiate, no salão do Seu Tenório, da Tenente Pena. Antes era engraxate. Astuto com o baralho na mão, ganhava uns trocos a mais fazendo mágicas primárias para donas de casa na feira. Moleque ligeiro, o Chumbinho logo conquistou a simpatia dos mais velhos e virou o mascote da turma.
A amizade da turma da Julio Conceição era coisa antiga, desde a época em que o Orlando estava encerrado e dormia com um olho aberto. Moravam todos uns perto dos outros e, quando pivetes, batiam bola na Julio Conceição, rua que acabou virando deles. Ferrugem e Áureo eram irmãos, filhos de um caixeiro-viajante e de uma costureira; viviam na rua. Jamais foram à escola e morreram, os dois, analfabetos. Calango era filho de mãe solteira; empregada doméstica. Baixinho e magérrimo, o caboclo era feio; mas feio a dar com pau. E ruim. Era, de longe, o que mais aprontava. Tinha, às vezes, instintos de larápio. Sua rapidez virou lenda na área; vacilou, ele levava mesmo. Mão fina de primeira categoria. Zezito era forte como um touro. Não muito alto, mas era quadrado, o português (era filho de portugas). Uma patada do Zezito era capaz de derrubar, e desmaiar, dois ou três. A turma tinha nele a segurança necessária; aquele que “vai na frente” e topa qualquer parada. Era o Zezito que enfiava o braço em nêgo da Barra Funda que atravessava a fronteira pra buscar balão. Meu avô sempre contou que se alguém do Bom Retiro viesse à Barra Funda buscar o balão que caiu, também levava cacete. Era lei.
O último dos cinco, que foi o personagem principal do causo que vou contar, era o Valente. Mauro Valente era seu nome completo. Totalmente doido. Dizem que, graças à sua colossal inteligência, o Valente tinha sérias dificuldades no campo dos relacionamentos. Dentro de casa apanhava do pai, um engenheiro aposentado que bebia o dia inteiro. Por isso rua era mais segura, mas nem tanto; Valente tinha talento pra apanhar. Primeiro virou capacho dos irmãos Ferrugem e Áureo. Pagava lanche, tomava tapa na orelha e servia de gandula no futebol da molecada, o “mauricinho”. De fato tinha uma condição social mais avantajada. Com o passar do tempo Valente foi sendo aceito pela turma. Talvez por dó, vai saber... Outra coisa que é fato - taí um mistério - é que toda turma tem um lerdo. Seus arroubos de gênio contrastavam com sua lerdeza, ou melhor, sua falta de destreza. Valente resolvia um impossível cálculo matemático em poucos minutos, mas não conseguia entender a piada mais simples do mundo ou captar qualquer movimento que requeresse um pouco de malícia. Ser assim, na Rua, é prejuízo. A sorte que o acometeu foi o Calango ter ido com sua cara de tonto.
A prova maior da cabacice do Mauro Valente se deu num buteco na Rua da Graça. O Áureo, que era um galanteador barato, pagou um guaraná pro Chumbinho entregar um bilhete pra uma mulher que passava por ali. Azar é que o marido da dona, que estava no bar com mais uns oito amigos, viu e foi tirar satisfação. Ferrugem chegou metendo a bolacha e o couro comeu. Não sobrou uma cadeira intacta. Todo mundo no meio do bolo e sopapo sobrou até pro dono do bar. Algum vizinho deu sinal e a polícia chegou firme, botando todo mundo encostado na parede. Dois dos “outros” estavam estragados com as porradas do Zezito, mas Ferrugem tomou uma garrafada que abriu sua cabeça; nada grave. O chefe dos “hômi” estava brabo. Sabia, de longa data, que aqueles cinco da Júlio Conceição são de lascar, principalmente o Calango, que a essa altura já tinha dado no pé.
Falando alto, puto da vida, o polícia-chefe botou banca:
- Vocês acham que são bons, seus vagabundos? Agora tá todo mundo aí, com cara de coitado! Não vão falar nada? Quem começou tudo isso? Eu quero saber quem o valente, aqui! Quem é valente?
O idiota do Mauro levantou a mão, imponente:
- Eu sou o Valente! Por quê?
Ficou de cama uma semana com a surra que levou da justa.
7 Comentários:
Só podia ser aquariano como eu - Louco, verbalizado!
Amei seu blog, parabéns!
HUAUAHAHUAUHAHUAHUAHUAUHA
EU SOU O VALENTE, PORQUE???
HUAAHUHAHAUAUHAUAAUH
ADOREI ARTHUR!!!!
BEIJOS!!!
Melissa
Arthur esse cara parece o Celso
Entrou na nossa turma só porque a gente ficou com dó dele
hauahuahahahauhahahaua
Muito boa essa história
Abraço
Ava
Ô, Favela, tem algum desses ainda vivo?
Szegeri, preciso checar com o Oswaldo. O barbeiro sabe tudo.
Mas sei que o Valente morreu há alguns anos.
Até que durou, né...?
Hahahahahahahahahaha!!!
Esse blog ainda vai virar um livro, Arthur!!!
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