O Tirone e os Cabeleira - Parte II
Dizem os antigos que no Carlos Gomes tinha tudo o que não presta. Tirando o fator “dentro de campo”, sempre bem representado, o resto era só devassidão; vagabundos imprestáveis, maloqueiros imundos, estelionatários, drogados (havia os maconheiros) e ladrões. Era essa a reputação do clube. De fato muitos maus elementos freqüentavam os jogos, mas nem todos eram assim. Alguns anos mais tarde, pouco antes de sua extinção, na década de 70, havia um ritual bizarro para entrar pra “torcida”, chegando a envolver espancamento e picada na veia. Descarga de caminhão!
Na década de 40, os Cabeleira botavam o terror na área. Praticavam, para aquele tempo, uma violência exagerada, coisas terríveis. Bolinavam donzelas nos bondes, bebiam e quebravam bares e não pagavam, batiam em bêbados, se drogavam, falavam “indiscretices” para senhoras casadas, roubavam de tudo – chegaram a arrancar dois dentes de ouro da boca do Perseu, como faziam com defuntos, após o desmaiarem - e mataram o Teixeira na Rua Salta-Salta. Não se sabe até hoje qual era a bronca, mas meteram uma bala (uma só, após o lincharem, junto com o Adolfinho, que ficou vivo) no peito do coitado. A polícia estranhamente não os prendeu...
A Barra Funda de baixo, nessa época, já era conhecida como México e tinha requintes do melhor faroeste de Giuliano Gema e Lee Van Cleef. Esta história do assassinato do Teixeira pelos Cabeleira ter passado impunemente confirma a terra sem lei que era o pedaço. Não à toa moravam ali, na mesma época, Francês e Galinha, os dois maiores bandoleiros que a região já conheceu e que ainda serão tema por aqui.
A turma dos Cabeleira era composta por cerca de vinte homens, entre eles alguns adolescentes; todos do Bom Retiro. Se encontravam na Barra do Tibagi, na gloriosa esquina com a Visconde de Taunay, onde meio século depois bebi no bar do Zêpo. Todos os Cabeleira eram contraventores; nenhum trabalhava. Viviam de furtos. Só andavam em turma e adoravam espancar, sempre covardemente, incautos adversários.
No caso em questão, o adversário era o Anhanguera, personificado na figura de meu avô, o Tirone. Naquele sábado de maio de 1947 houve o segundo e último duelo entre Carlos Gomes e Anhanguera; um festival no campo do XV de Novembro. Como já havia acontecido na primeira vez, a peleja nem chegou ao fim. O pau quebrou dentro de campo; ninguém entra e ninguém sai (sorte do Anhanguera, que tinha bem menos torcida). Depois os ânimos se acalmaram e cada um foi pra sua casa, uns machucados, outros nem tanto... No entanto, todos os envolvidos na briga se conheciam de longa data e as fofocas e notícias sobre uns e outros corriam pelo bairro. O México não é grande; o Bom Retiro também não. As rivalidades, durante a semana, pelas ruas, pelos bares, campos, jogatinas e zonas, chegava a dar uma trégua e abrir até concessões para educados “olás”. Não na noite deste sábado, em que os Cabeleira decidiram impor fim à banca do Tirone, dentro da sede do Anhanguera.
As 22h00 a maioria do pessoal do Anhanguera já tinha deixado a sede. Jogavam “patrão e solto”, apoiados no balcão, Tirone, Aragão e mais dois senhores, Nelson e Jacó. Todos alterados, menos o azarado Aragão, que era o “solto” e estava ainda com a goela seca. Súbito, ouviram gritos vindos da Rua do Bosque do tipo “Vamos quebrar essa sede de merda!”, “Viva o Carlos Gomes, morte ao Anhanguera!”. Aragão sacou de quem vinham os berros e gelou, correu pra fechar a porta, mas foi impedido pelo Tirone: “Deixa eles virem. Se fechar eles arrombam e é pior.” Naquela época, não tinha telefone na sede e polícia passava de vez em nunca. Aragão, sujeito polido, sugeriu que Tirone se escondesse; era ele que os Cabeleira queriam. Não foi atendido...
A turma entrou na sede fazendo barulho, metendo os pés na parede e empunhando garrafas de cerveja. Vieram bebendo no percurso de 1 quilômetro na reta BarradoTibagi-RuadoBosque. Estavam em oito. Os oito que gostavam de briga, que só brigavam em grupo. Um tal de Vovô era o líder da alcatéia. Ordenou para que todos saíssem e que ficasse apenas o Tirone. Aragão tomou a frente, tentando pôr panos quentes, enquanto Tirone interpelava: “Pra que isso, Niquinho? O jogo acabou. Adolfo, vai embora e leva tua turma”. Adolfo era o mais forte de todos, um armário. De nada adiantou a conversa. Em instantes, quebraram o braço do Aragão e foram pra cima do Tirone, que conseguiu pular a janela e correr pra rua, sendo logo adiante alcançado, não pelos oito, mas por estilhaços de vidro.
Incrivelmente, 116 anos depois, na Barra Funda, foi reeditada a Noite das Garrafadas, acontecida nos tempos de império, no Rio de Janeiro, evento que pode ser um dia abordado por outro Velho, o Simas. As garrafas voavam na altura do número 250 da Rua Anhanguera. Por segurança, Tirone escondeu-se atrás de um poste bem na frente da então residência de Augusto, um grande amigo, diretor do Anhanguera. Do outro lado da rua, a gangue se postou e arremessava as garrafas – há quem diga que foram atiradas mais de cinqüenta -, que explodiam no muro e transformavam-se em cacos que atingiam as costas de Tirone, que gritava socorro a Augusto. Depois de alguns intermináveis minutos, este percebeu que se tratava do amigo e abriu a porta. Tirone entrou aflito, com vários cortes e sangue escorrendo e pediu, enlouquecido, a arma para Augusto, que negou veementemente. Os Cabeleira, gargalhando, foram embora...
(Continua)
Na década de 40, os Cabeleira botavam o terror na área. Praticavam, para aquele tempo, uma violência exagerada, coisas terríveis. Bolinavam donzelas nos bondes, bebiam e quebravam bares e não pagavam, batiam em bêbados, se drogavam, falavam “indiscretices” para senhoras casadas, roubavam de tudo – chegaram a arrancar dois dentes de ouro da boca do Perseu, como faziam com defuntos, após o desmaiarem - e mataram o Teixeira na Rua Salta-Salta. Não se sabe até hoje qual era a bronca, mas meteram uma bala (uma só, após o lincharem, junto com o Adolfinho, que ficou vivo) no peito do coitado. A polícia estranhamente não os prendeu...
A Barra Funda de baixo, nessa época, já era conhecida como México e tinha requintes do melhor faroeste de Giuliano Gema e Lee Van Cleef. Esta história do assassinato do Teixeira pelos Cabeleira ter passado impunemente confirma a terra sem lei que era o pedaço. Não à toa moravam ali, na mesma época, Francês e Galinha, os dois maiores bandoleiros que a região já conheceu e que ainda serão tema por aqui.
A turma dos Cabeleira era composta por cerca de vinte homens, entre eles alguns adolescentes; todos do Bom Retiro. Se encontravam na Barra do Tibagi, na gloriosa esquina com a Visconde de Taunay, onde meio século depois bebi no bar do Zêpo. Todos os Cabeleira eram contraventores; nenhum trabalhava. Viviam de furtos. Só andavam em turma e adoravam espancar, sempre covardemente, incautos adversários.
No caso em questão, o adversário era o Anhanguera, personificado na figura de meu avô, o Tirone. Naquele sábado de maio de 1947 houve o segundo e último duelo entre Carlos Gomes e Anhanguera; um festival no campo do XV de Novembro. Como já havia acontecido na primeira vez, a peleja nem chegou ao fim. O pau quebrou dentro de campo; ninguém entra e ninguém sai (sorte do Anhanguera, que tinha bem menos torcida). Depois os ânimos se acalmaram e cada um foi pra sua casa, uns machucados, outros nem tanto... No entanto, todos os envolvidos na briga se conheciam de longa data e as fofocas e notícias sobre uns e outros corriam pelo bairro. O México não é grande; o Bom Retiro também não. As rivalidades, durante a semana, pelas ruas, pelos bares, campos, jogatinas e zonas, chegava a dar uma trégua e abrir até concessões para educados “olás”. Não na noite deste sábado, em que os Cabeleira decidiram impor fim à banca do Tirone, dentro da sede do Anhanguera.
As 22h00 a maioria do pessoal do Anhanguera já tinha deixado a sede. Jogavam “patrão e solto”, apoiados no balcão, Tirone, Aragão e mais dois senhores, Nelson e Jacó. Todos alterados, menos o azarado Aragão, que era o “solto” e estava ainda com a goela seca. Súbito, ouviram gritos vindos da Rua do Bosque do tipo “Vamos quebrar essa sede de merda!”, “Viva o Carlos Gomes, morte ao Anhanguera!”. Aragão sacou de quem vinham os berros e gelou, correu pra fechar a porta, mas foi impedido pelo Tirone: “Deixa eles virem. Se fechar eles arrombam e é pior.” Naquela época, não tinha telefone na sede e polícia passava de vez em nunca. Aragão, sujeito polido, sugeriu que Tirone se escondesse; era ele que os Cabeleira queriam. Não foi atendido...
A turma entrou na sede fazendo barulho, metendo os pés na parede e empunhando garrafas de cerveja. Vieram bebendo no percurso de 1 quilômetro na reta BarradoTibagi-RuadoBosque. Estavam em oito. Os oito que gostavam de briga, que só brigavam em grupo. Um tal de Vovô era o líder da alcatéia. Ordenou para que todos saíssem e que ficasse apenas o Tirone. Aragão tomou a frente, tentando pôr panos quentes, enquanto Tirone interpelava: “Pra que isso, Niquinho? O jogo acabou. Adolfo, vai embora e leva tua turma”. Adolfo era o mais forte de todos, um armário. De nada adiantou a conversa. Em instantes, quebraram o braço do Aragão e foram pra cima do Tirone, que conseguiu pular a janela e correr pra rua, sendo logo adiante alcançado, não pelos oito, mas por estilhaços de vidro.
Incrivelmente, 116 anos depois, na Barra Funda, foi reeditada a Noite das Garrafadas, acontecida nos tempos de império, no Rio de Janeiro, evento que pode ser um dia abordado por outro Velho, o Simas. As garrafas voavam na altura do número 250 da Rua Anhanguera. Por segurança, Tirone escondeu-se atrás de um poste bem na frente da então residência de Augusto, um grande amigo, diretor do Anhanguera. Do outro lado da rua, a gangue se postou e arremessava as garrafas – há quem diga que foram atiradas mais de cinqüenta -, que explodiam no muro e transformavam-se em cacos que atingiam as costas de Tirone, que gritava socorro a Augusto. Depois de alguns intermináveis minutos, este percebeu que se tratava do amigo e abriu a porta. Tirone entrou aflito, com vários cortes e sangue escorrendo e pediu, enlouquecido, a arma para Augusto, que negou veementemente. Os Cabeleira, gargalhando, foram embora...
(Continua)
4 Comentários:
Ô, Favela, eu posso não ser do "México", mas toda a família do meu pai é do Bom Retiro e eu estudei na Barra Funda (de cima, é verdade) dos 7 aos 10 anos de idade, de modo que conheço razoavelmente o pedaço. Responda-me, pois, ó gajo: onde diabos é (ou era) a Rua Salta-Salta???
Szegeri: a Salta-Salta mudou de nome há uns 15, 20 anos. Hoje chama-se Luigi Greco; é aquela ruazinha de duas quadras paralela à linha do trem, onde começam as ruas Borácéia, Anhanguera e a Cruzeiro. É na Salta-Salta que tinha a legendária "porteira", onde hoje fica a passarela que liga o México à Barra Funda de cima. Tenho belíssimos "causos" da porteira pra contar ainda...
Ô Favela, conta logo o final dessa pancadaria. Até agora, o pessoal do Anhanguera só levou porrada! Estou mijando de rir desde que li que tu és um cara pacífico. Lembrei logo do trio Mauricinho do Ó e do coitado do Beckham me pedindo cigarro horas depois no Sabiá. Conta outra, malandragem!
Heeey, menino! Tudo bem?
Manda a nossa foto p o meu e-mail? É eugeniarodrigues arroba yahoo ponto com ponto br. Beijo!
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