30 de abr. de 2010

Anhangüera dá Samba XXXIV

Já tinha um bom tempo que o Szegeri falava em trazer Bira da Vila, nosso convidado no mês passado: “- Não trago fulano antes do Bira da Vila, que é meu amigo”. Em muitas conversas nossas programando o Anhangüera dá Samba! ouvi isso dele – conversas essas sempre regadas à um engasga-gato e um balcão pra acomodar o cotovelo: nunca fizemos “reunião” pra definir nada sobre o samba no Anhangüera, que mês que vem completa três anos. Nosso negócio não é negócio, se é que me faço entender.

Bira da Vila – a quem eu não conhecia – é um belíssimo sujeito. Tranqüilo, pacato, boa praça e bom de samba; chegou de mansinho, cantou sambas seus, sambas de parceiros, homenageou um deles (o grande Luiz Carlos da Vila) e ficou na roda de samba até a última pancada do surdo.

Mais uma vez – é preciso registrar – fiquei impactado com o público do nosso terreiro; impressionante que não haja ninguém ali que não entenda do riscado. Não há aventureiros, baladeiros, pit-boys, periguetes outras laias non gratas. Sei não, mas credito muito dessa “benção” à Railídia, que sempre abre os trabalhos cantando pro homem que guarda o portão – se é que me faço entender, novamente -; vai daí que acaba entrando só quem é.

Infelizmente dessa vez não tem fotos nem filmes pra disponibilizar. De quando em quando o Daniel larga de mão e não faz o trabalho que lhe compete. Inclusive aproveito pra fazer um pedido a quem me lê: se filmar alguma coisa, ou tirar fotos no Anhangüera, me avise por e-mail, aqui.

Hoje estaremos lá, mais uma vez – e, pelo que vejo agora da janela, parece que será uma noite agradabilíssima. Vamos receber um amigo que há muito queríamos convidar; o cracaço Douglas Germano, compositor de uma verve impressionante. Além de compositor, instrumentista, cartunista e maloqueiro, – entre outras coisas, como se fosse pouco -, Douglas detém uma sabedoria que a Railídia chama de ciência:

“É meu ídolo, que, à maneira de Wilson Moreira, traz uma simplicidade no trato que se revela de uma grandeza no jeito de contar e cantar o samba.
Uma ciência, queridos. Douglas conhece porque toca, canta, compõe, batuca, diz no pé.”

Eu, que conhecia o trabalho de Douglas Germano há um bom tempo, já sabia que a coisa era séria. Teve um dia que pela primeira vez nos pegamos de papo no Ó de Borogodó e ficamos coisa de mais de uma hora falando, nos reconhecendo. Douglas é guarda também, é sentinela tal e qual a gente. Meu compadre Fernando Szegeri, esse monstro que sabe das coisas, já dizia! Percebi em dez minutos de conversa com o malandro – e não é só pelo fato de o caboclo compor essas brasas, que isso, por si só, não segura a bronca toda de ninguém: tem muito compositor de prima que é escroto.

Estou sentindo que a noite de hoje vai ser histórica – pelo menos pra gente que vai estar à beira daquele campo varzeano vagabundo, síntese daquilo tudo o que eu gosto; cachaça, batucada, jogo de bola e de baralho, cerveja gelada com os camaradas, sarro e, de vez em quando, um quiprocó, porque bonzinho é o cachorro da vizinha. Não imagino outro convidado, outro sambista, que comungue mais dessas coisas que o convidado de hoje, meu amigo Douglas Germano.

Vou saindo pra deixar tudo certo e arrumado lá no terreiro. Conheçam aqui o myspace do malandro e aqui seu ótimo blogue. Deixo - em homenagem a Vladimir Tirone, meu pai, o palmeirense mais fanático da Barra Funda, da cidade e do mundo - o áudio de um samba do Douglas : Seu Ferrera e o Parmera.

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Até mais tarde!

20 de abr. de 2010

A morte do Saião

Quando a gente não tem o que escrever, dá de mexer na cara do blog. Há tempos que eu queria mudar a aparência deste espaço: assim, com menos branco e mais preto, o Anhangüera (o blog) fica mais rubro-negro ainda – pelo menos é o que eu acho. Engraçado é que, depois de 82 anos de existência, ainda tem gente que pensa que o Anhangüera é tricolor: é que, assim como o Flamengo, o rubro-negro da Barra Funda sempre se valeu do branco em seus uniformes. A primeira parte do nosso hino frisa bem essa questão, para não restar dúvidas:

Dizem que o preto é luto,
vermelho é guerra
E nós, então
Associação Atlética Anhangüera
Ainda hoje é tradição


Recebi há pouco um e-mail de um amigo perguntando se a mudança de cor seria definitiva. Imaginou que pudesse ser, este fundo preto, uma homenagem, um luto. E foi mais carudo: “- Alguém morreu?”. Nada disso, meu chapa: as novas cores nada tem a ver com outras hipóteses; foi por gosto meu, e só. Mas como o hino do clube fala em luto e meu amigo pensou nisso, me veio à cabeça a morte do Saião, há quase um ano.

Saião (não sei seu nome) nasceu em 1953 na Barra Funda, e lá se criou. Era uma espécie de “café com leite” devido à sua pouca capacidade de comunicação. Aprendeu a falar tardiamente – lá pelos sete anos – e raciocinava de maneira muito confusa. Quando uma criança com essas características se junta às outras, na rua, é batata: acaba virando marionete nas mãos dos outros. Assim, Saião era designado, entre os pirralhos, para fazer as piores tarefas infantis, aquelas que os moleques não tinham coragem, como passar a mão em mulheres desprevenidas, furtar frutas na feira e não fugir da briga com turmas rivais.

Saião cresceu, casou, teve filhos, e continuou a ser “café-com-leite”. Pegou fama de valente porque não arredava o pé em briga nenhuma – o que nunca lhe privou de tomar cacetes homéricos. É o único caso que eu sei de alguém que perdeu todos os dentes da boca apanhando – e nunca os repôs.

Depois dos trinta, Saião nunca mais se meteu em confusão. Eu o peguei num tempo já tranqüilo, engraçado. Eu me divertia vendo-o jogar no Anhangüera. Zagueiro, não hesitava em dar carrinhos inescrupulosos – saia do campo todo machucado, com as pernas arrebentadas, arranhadas pelo terrão. E ria da sua falta de técnica futebolística. Fora do campo, era um bom cachaça; sempre bebia com o Quito – o nosso roupeiro - após o jogo.

Viveu de biscates; nos últimos anos se declarava oficialmente eletricista e fazia serviços em pequenas firmas no Bom Retiro antes de ir embora pra Santos onde arranjou um emprego; e nunca mais apareceu no Anhangüera.

Não me lembro quem chegou, num domingo, anunciando sua morte. Um acidente de carro na descida da serra foi fatal para Saião. Isso tem uns onze meses. Apesar de ser um cara muito querido na área, ninguém foi ao seu velório. A notícia chegou com atraso de quatro dias. O povo da Barra Funda armou missa de sétimo dia e missa de um mês. Durante algum tempo uma tristeza se pôs sobre nosso clube. Tentaram entrar em contato com sua mulher, mas ninguém tinha o telefone, ninguém sabia onde ele estava morando. Aí lembraram que o Tatu – uma das maiores figuras da região – que morava em Santos há muito tempo e tinha uma bodega por lá, podia saber de alguma coisa. Tatu, chateado, confirmou sua trágica morte, dando detalhes cruéis do acidente.

Foi feita uma placa em homenagem ao morto - que foi fixada dentro do clube, na porta do bar. No mural, várias fotos suas foram coladas. Quito passou a acender, todos os domingos, uma vela ao lado do mural, e rezava pelo pobre Saião.

E a vida seguiu. Um domingo desses, alguém deu um balão na bola, que foi parar na rua. Como sempre, Quito saiu correndo no intuito de resgatá-la. Saiu pelo portão apressado e voltou mais ainda! O crioulo, num rompante, entrou no Anhangüera branco, gritando que havia visto um fantasma. Acharam que o Quito havia ficado louco e, pra não perderem o costume, tacaram latinhas vazias nele, tudo isso permeado por calúnias as mais terríveis.

Eis que adentra o Anhangüera, triunfante, o Saião. Triunfante nada, entrou do mesmo jeito de sempre: havaianas, bermuda e aquele sorriso carente de dentes – só ele não sabia que era um falecido. O rebuliço que se deu não preciso nem contar; depois se soube que fora tudo sacanagem do Tatu – e sobre este, falo outro dia.

Quito ficou em estado de choque - mesmo vendo o amigo ali, em carne e osso -, com a pulga atrás da orelha. Passou a referir ao Saião por “o defunto”.

Pelo que sei, a missa de um ano da morte do Saião ainda está marcada para domingo que vem, na Igreja de Santo Eduardo, à Rua dos Italianos. Vou checar e já aposto: Quito, pelo sim pelo não, estará lá.
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