21 de dez. de 2007

Gioconda

Mais um natal em Águas de São Pedro, na casa de minha tia Deise e seu marido Paulo. Já conheço bem a cidade; pudera, é o menor município do Brasil. Limita-se a uma rua principal e outras cinco ou seis que a cruzam. Mesmo não fazendo parte do circuito das águas, que engloba as cidades Águas de Lindóia, Amparo, Jaguariúna, Lindóia, Monte Alegre do Sul, Pedreira, Serra Negra e Socorro, a cidade é turística. Velhinhas e velhinhos de vários cantos do Brasil aportam ali pra se esbaldar nas fontes – quiçá – da juventude. Um bando de gringos também marca presença.

Esse negócio das águas começou com a procura por petróleo. Após uma tentativa frustrada do Estado, alguns aventureiros, na década de 30, cavaram enormes profundidades por ali. Não acharam nada além da fétida água que começou a jorrar. Um dia a tal água foi analisada pelo IPT e adquiriu o status de terapêutica e poderosa na cura de moléstias. Daí a fama do lugar. Mais tarde, neguinho começou também a engarrafar as ricas águas e os expoentes dessa empreitada são as famosas Água Tônica e a Soda Limonada.

O turismo dessa água benta acabou misturando tudo que é tipo de gente e o que se vê, ao andar na rua principal, é uma bizarrice. Os milhares de velhinhos que vão beber a cura de seus males acabam topando com um bando de adeptos do reiki e da aromaterapia. Estes armam barracas e tendas para a leitura de oráculos, numerologia e, quem sabe, encontram seres de outro planeta que buscam contato na terra mística banhada pelas águas santas. Em meio a toda essa zorra, jovens se aglomeram dando voltinhas de carro na praça, com o som ligado num axé explosivo. Imaginem a miscelânia. Eu, que não gosto de encarar essas muvucas, fico exilado no sítio enchendo a cara.

Voltando às águas, um problema recorrente é a escolha de qual se vai beber, pois são três fontes (Juventude, Gioconda e Almeida Salles) e existem contra indicações. Cada água, e isso está escrito nas placas acima das torneiras, é destinada a uma causa específica. A fonte Juventude (água sulforosa), por exemplo, é boa para asma. Sabendo disso, minha mãe, após submeter meu irmão Angelo, que sofria terrivelmente deste mal, a milhares de simpatias – e sobre isso conto outra hora – levou-o à fonte. Na ânsia pela cura, mamãe errou a torneira e o moleque tomou, à força, a água Almeida Salles. Teve, graças à pressão sofrida pra beber, a pior crise asmática de sua vida.

A fonte Gioconda é, de longe, a menos encarada. Quase ninguém bebe dela. Fede demais, aquela merda. Enxofre perto da Gioconda é um perfume dos bons! Pois bem. Vi uma vez um tiozinho que tomou um gole da Gioconda e cagou nas calças instantaneamente. Dizem na cidade que um hippie morreu de overdose de Gioconda e vários jovens, após brincadeiras de vira-vira com a fedida numa folia de Carnaval, desmaiaram e tiveram que tomar glicose na veia!

Sabendo da fama da Gioconda, no Natal de 1.998, proibimos meu avô, o Velho Tirone e minha avó Antonia, que foram pela primeira e única vez pra Águas de São Pedro, de bebê-la. Vovó só bebeu, com suas doze cápsulas de remédio diárias, a água da Juventude e após ingerir disse ironicamente, do alto de seus 81, que sentia quarenta anos mais nova, o que causou arroubos de assanhamento no Velho, que recebeu até uma salva de palmas dos curiosos e atônitos presentes por misturar, aos barris, as águas todas das fontes. Foi sua última prova de ser, realmente, um destemido. Macho mesmo. E é pensando nele, com uma saudade doída de beleza, que estou neste Natal que se aproxima. O único homem que disse, lambendo os beiços, após tomar meio litro de Gioconda:

- Que delícia!

14 de dez. de 2007

O casal da Rua C

Um velho ditado adverte que em briga de marido e mulher não se mete a colher. Eu, que sempre opto por seguir os ensinamentos dos velhos – e fazendo isso damos menos com nossas cabeças na parede –, aprendi essa máxima com minha bisavó Rivalina. A coroa sabia, e muito, das coisas do mundo. Enxotava da humilde casa que morava em Guaxupé qualquer um dos sete filhos, dezoito netos e dezenove bisnetos (números até seu falecimento, em 1994) que fosse importuná-la com queixas conjugais. Da velha, exclusivamente, falarei numa próxima.

Versarei sobre, como escancara o título do texto, um casal que ficou marcado no Parque Peruche, bairro periférico de São Paulo, por uma relação incomum, de domínio e obediência. Tal relação tornou-se pública no bairro em 1.952 e, pela data, percebe-se que, se causava estupefação em toda a vizinhança, é porque quem exercia autoridade era a Cotinha, a mulher. Braba e mal humorada que só ela, mal falava com as vizinhas e nunca esboçava um sorriso.

Hoje, 55 anos depois, é muito mais exposta a subserviência do homem frouxo e, embora ainda seja motivo de galhofas, a convivência com esta situação é mais tolerável. Quem não tem, por exemplo, um amigo “pau-mandado” que só faz o que a mulher quer, o que a mulher manda? Imaginem isso em 1.952 e, pra piorar, num bairro de negrada, cheio de malandros e de butecos. E foi justamente num buteco que se deu o entrevero.

As ruas do Parque Peruche eram, à época, denominadas com letras e iam de A a Z. O casal, Cotinha e Inácio, morava na Rua C, a duas quadras do Bar do Chola, famoso por ser freqüentado por cobras-criadas e pelos maiores pinguços da área. Inácio fugia ao perfil dos freqüentadores daquela birosca. Era um negro elegante, trabalhador. Mas não por isso acabou sendo impiedosamente achincalhado. Era, às vistas machistas que o rodeavam, um grande frouxo.

Diariamente, após a labuta, Inácio – que gostava de uma cachacinha – ia ao Chola. Tímido, encostava-se no balcão e pedia uma cerveja e uma cachaça. Era o que consumia, apenas. Mas na maioria das vezes não tinha tempo nem de terminar a cerveja. A Cotinha, barraqueira que só, sabia do horário do marido e postava-se na porta do bar para buscá-lo. A cena se repetia todos os dias; Cotinha, com as mãos fechadas apoiadas na cintura, batia incessantemente um pé no chão e botava seu olhar raivoso pra dentro do olho do marido. O buteco sempre silenciava neste momento. No máximo uns cochichos de “Olha aí, chegou a encrenca!” ou “Lá vai embora o covarde”. O conformado Inácio, como um fiel cão, “botava o rabo entre as pernas”, pegava o chapéu, abaixava a cabeça e tomava o rumo de casa, ouvindo um montão.

A reputação do Inácio foi pro brejo logo na primeira vez que Cotinha foi buscá-lo. A partir daí começaram a falação e os comentários sobre sua impotência: “Ih... Isso aí é frouxo!!”, dizia a vizinhança, mas apenas pelas suas costas. Paciente, Inácio agüentou por quase um ano as ordens da mulher, até que decidiu enfrentá-la. Com o saco cheio, certo dia pediu uma cerveja. Bebeu rápido e pediu mais uma, alternando com tragadas de cachaça. Após dez minutos não deu outra. A Cotinha já batia o pé na porta do Chola. Inácio a repreendeu, sem proferir uma palavra, fazendo sinal com a mão como dizendo “Daqui eu não saio. Vá embora!”. Lotado de espectadores, fez-se o silêncio na espelunca. O molenga finalmente enfrentou a temível mulher. Porém a Cotinha, tal qual um general desafiado por um soldado, não aceitou a negativa de seu capacho e não teve dúvidas; tirou o Inácio do bar na base do sopapo, pra delírio dos malandros.

Com o nome na lama, no outro dia logo pela manhã, indo trabalhar, já ouviu a molecada gritando “molenga, molenga!”. Chorou resignado. O respeito à sua pessoa fora perdido e os comentários estavam na boca do povo. Mesmo assim, o corajoso homem foi beber sua cachacinha no Bar do Chola, que tinha lá seis ou sete malandros bebendo e jogando palitinho. Ao pisar o bar, começou uma enorme sessão de tiração de sarro, agora na sua cara, coisa que nunca tinha acontecido, já que Inácio não dava liberdade pra vagabundo falar de sua vida.

O que os vagais não esperavam é que Inácio, aquele acanhado, era bom na pernada. Em cinco minutos, o bar estava de cabeça pra baixo e todos os brejeiros desmaiados. Após a senhora surra que Inácio aplicou nos desocupados – e a partir daí passou a ser temido e respeitado –, bradou, antes de pedir sua caninha:

- Eu devo respeito somente à minha mulher. Não a vocês, seus frouxos!

11 de dez. de 2007

Anhanguera dá Samba VII

Chegamos à última edição do Anhanguera dá Samba! do ano. A sétima delas é motivo de muita alegria pra mim que, bem antes de começar, apostei - assim como a Railídia - que a coisa daria certo. Afirmo que continuarei com afinco a registrar todos os sambas que os Inimigos do Batente fizerem ali naquele chão que é minha Meca particular, minha terra santa, meu passado (desde 1.928), meu presente e meu futuro. Pra isso o Daniel foi designado para, além das costumeiras porrancas que toma, filmar e fotografar essas inspiradas noites nas últimas sextas feiras de cada mês. Especialmente esta última do ano, devido aos festejos, será realizada nesta próxima sexta, dia 14.



Osvaldinho da Cuíca, um dos maiores baluartes vivos do samba de São Paulo, esteve presente dia 30 de Novembro e deu, como exímio professor de samba que é, uma verdadeira aula. Contou histórias do samba, passagens emocionantes e causos desconhecidos do público. Deu até bronca nos mais exaltados que falavam paralelamente. O Número Baixo coincidentemente nasceu – contou-me isso lá – na Rua Anhaia, entrada “dos fundos” do Anhanguera, paralela à Rua dos Italianos. O auge da noite se deu – o que não é nenhuma novidade – quando Osvaldinho puxou da cuíca e fez solos capazes de hipnotizar todos os presentes. Sua intimidade com a cuíca é tanta que, tal qual um Gordinho no surdo, o instrumento é afinado com o diapasão, de acordo com o tom da música. É mole? Apertem o play no vídeo abaixo:



E fechando o ano com chave de ouro, coroando o samba paulista, convidamos os grandes compositores Ideval e Zelão, conhecidos como os “maiores ganhadores de sambas enredo de São Paulo”, que fizeram sambas antológicos em algumas Escolas. E no Camisa Verde e Branco tiveram seu ápice em 1976, com Atlântida e suas chanchadas e em 1977, com Narainã, a alvorada dos pássaros, que deixo abaixo para, quem não conhece (e pra quem já o cantou muito também), ouvir este sensacional samba que foi considerado - somente a título de curiosidade, já que acho concursos assim uma tremenda babaquice -, em 1.999 numa eleição realizada pela Folha de São Paulo, o “Samba do Século”.

1977.wma


Até Sexta!

4 de dez. de 2007

Espanhol e a ronda

Fiz, em Junho, a confissão de que adoro, mas que também tenho medo do jogo de pôquer. Fico na minha caxeta no Anhanguera aos Sábados. Lá, quando a gente perde, perde pouco. Quando ganha, ganha pouco também. Certa vez, meu pai, que não é ladrão de baralho – embora seja um dos maiores cérebros para contas e possibilidades no carteado -, se meteu a jogar pôquer. Perdeu uma grana que daria pra beber por um mês. Perdeu convicto que ganharia. A quadra de nove é fortíssima. Armar uma quadra é ganhar na loteria. O Waldir, um larápio das cartas, abriu um Royal Straight Flush (o maior jogo do pôquer), um jogo impossível, e acabou com a alegria de meu pai, que desde então nunca mais se meteu a besta.

Além deste episódio, que eu presenciei aos dez de idade, meu velho avô contava muita coisa sobre sua relação (também desastrosa, mas muito mais que a de meu pai, que parou por aí) com os jogos de azar. E contava-me sobre episódios e jogos pesados, que resultavam várias vezes em tragédia, da qual por pouco – isso ele nunca disse – acredito que se safou várias vezes.

Durante as décadas de 30 e 40, o Bom Retiro foi um dos maiores pontos de jogatina de São Paulo. Lá se encontravam grandes jogadores do pôquer, do bilhar e da ronda, além dos otários que contavam apenas com a sorte. A sorte, em mesa de rato, só aparece para encorajar o inocente a perder tudo. Contam os velhos que nas ruas Prates e Rodolfo Miranda o bicho pegava nos clubes de jogo. Um furdunço se fazia ali toda noite.

O jogo de ronda era mais perigoso que o pôquer. É um jogo rápido, num lance tudo pode ser perdido. Políticos e jovens magnatas, com mais “bala na agulha”, faziam freqüentemente suas apostas junto a muitos aventureiros que lá deixavam o ordenado inteirinho. Nas saletas onde a coisa rolava solta, era comum apostadores colocarem chaves de carro e de casa sobre a mesa. No auge do drama, nego apostava até uma noite com sua própria mulher. Contava meu avô que o negócio era tão pesado que havia uma sala de suicídio para quem, após perder tudo, não quisesse mais viver. Há quem diga que nesta sala também teve assassinato. Foram vários enforcamentos e tiros na boca na tenebrosa “sala fantasma”. A ronda era um jogo comum. No Rio de Janeiro, em 1932, Mano Edgar, grande sambista do Estácio, foi assassinado numa mesa deste terrível jogo.

De todo lugar vinha gente jogar no Bom Retiro. Na década de 30, um espanhol, que criativamente foi apelidado de Espanhol, era temido nas mesas de pôquer por sua impressionante sorte. Relatos contam que o tal gringo não perdia. Seu nome e endereço não eram sabidos por ninguém e de tempos em tempos o espanha sumia. Quando ganhava uma quantia boa, não aparecia por um determinado período e voltava, após alguns meses, cheio de pose e contando vantagens. Voltava e ganhava, o malandro, que também tinha a fama de ser “amigo das cartas”. Fato é que nenhum jogador desse naipe conta com a sorte. O buraco - não o enfadonho jogo - é mais embaixo e os outros jogadores começaram a suspeitar de uma possível aliança sua com o baixinho e calvo Torres, o crupiê. Torres não abria a boca e não tinha amigo nenhum no clube. Tinha reputação digna, que exigia uma conduta que não deixasse nada a abalar.

É óbvio que, após um bom tempo, o Espanhol, que era um bom ladrão na mesa, e o Torres se aliaram. Ganharam uma boa grana. Porém Torres andava cabreiro e, temendo a descoberta de sua “mãozinha” pro Espanhol, combinou com o gringo, então já famoso pela “sorte” que tinha, que ele ganharia uma boa grana naquela noite e sumiria dali no outro dia - não antes de fazerem o acerto - pra voltar depois de uns longos meses. Aconteceu tudo nos conformes. Espanhol arrumou suas trouxas e deu área na manhã seguinte. Mas quem está na chuva não fica sem se molhar. Torres fez um novo aliado enquanto seu “parceiro” dava um tempo.

Seis meses se passaram até o retorno de Espanhol que, perplexo, ficou sabendo do assassinato de Torres. Suas pilantragens foram reveladas e isso é imperdoável. Espanhol, que não se abalou muito, mal sabia que, antes de mandarem o Torres pro inferno, fizeram-no caguetar que o gringo também estava no esquema e que só sumia de vez em quando pra disfarçar. Na mesa de pôquer Espanhol perdeu muita grana pra um adversário mais ladrão que ele, sob olhares de inocentes incrédulos – afinal era ele o amigo das cartas - e dos novos comandantes da casa, que estavam dispostos a fodê-lo até deixá-lo na merda. Na mesma noite, Espanhol tentou reverter a situação na mesa de ronda. Num ato desesperado, tentou ludibriar a malandragem e morreu com um punhal no estômago.

Jogo que vale muito não tem otário nem malandro. Sempre tem alguém que “joga” mais que você...
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