25 de set. de 2009

Anhangüera dá Samba XXVII

Fui buscar o pessoal do grupo Cavalo de Praia, de Santos, no Terminal Barra Funda. Estavam em três: a simpática Mariza, o talentoso músico Luiz Cláudio Santos e o filho do Seu Renato Borgomoni, Fernando. Expliquei pra eles, no caminho, o que é o Anhangüera – coisa que NENHUM dos que hoje se julgam diretores sabe. Falei também sobre o samba que os Inimigos do Batente comandam uma vez por mês e sobre o bairro.


Fernando, ao pegar o microfone, fez um discurso emocionado. Disse, entre outras coisas, que uma das paixões de seu pai – o homenageado da noite, que havia falecido há poucos dias – era justamente o futebol de várzea. Luiz Cláudio apresentou os sambas da turma da baixada. O público – que pela primeira vez não conhecia as músicas do nosso convidado especial – ficou paralisado ouvindo os lindíssimos sambas. Acompanhem um trecho:



Hoje à noite tem mais. O carioca Ernesto Pires, figura carimbada nas melhores rodas de samba do Rio de Janeiro – e que já foi ao Anhangüera umas duas ou três vezes - é quem se apresentará. No "menu", composições suas e de grandes mestres da música brasileira, valorizadas pela sua forma singular de interpretar o samba. Ernesto - que já morou em São Paulo e até gravou um samba seu em homenagem ao bairro do Bixiga - é um intérprete diferenciado, bamba no sincopado e no partido, que tem na sua maneira de dividir o samba a sua peculiaridade mais saborosa.

Ernesto Pires gravou um disco chamado Novos Quilombos. Quem quiser ouvir trechos das músicas, é só clicar aqui.
Até mais tarde!

23 de set. de 2009

Afrodisíaco de malandro

* Para Fernando Szegeri


Sábado fui ao casamento de um amigo de infância num buffet chamado Baiuca, salão que abriga boa parte da nata paulistana, e que eu não conhecia. Acomodei-me numa mesa perto do bar, onde pululavam garrafas de Black Label. Cerveja era só Nortenha, uma uruguaia barriguda que é boa. Não é uma Brahma, mas é boa. Daniel, o Gordo, e Valtinho, se esquiafaram no Black. Eu, que não bebo uísque, fiquei na cevada. Não bebo uísque e sei que perco uma belíssima bebida; é que aos dezesete fui parar no Hospital das Clínicas desacordado. Aquela garrafa de Red que eu bebi foi a última.

Enquanto eu deglutia uns canapés, o Gordo derrubava mais um copaço de Black. A mim me fez uma tremenda falta uma bebida diferente, pra acompanhar a uruguaia. E pensei logo numa bebida que tem feito minha cabeça há um bom tempo: Cynar! Não é uma bebida muito sofisticada e talvez não combine com uma festa no Baiuca, mas faria grande diferença pra mim.

O Cynar é tradicional entre os bêbados que têm menos compostura. O rabo-de-galo (pinga com Cynar) está entre os três "drinques" mais servidos nas bodegas do Brasil. De minha parte o saboreio purinho, assim como o Seu Soares, um senhor que sabe das coisas. Seu Soares bebe no mesmo bar há trinta anos: o boteco do saudoso Zé Mané na esquina da Rua Anhangüera com a Rua Garibaldi. Depois da morte do português, um paraíba assumiu o bar. O ponto virou palco para lastimáveis cantores de videokê e entusiastas de 51. Seu Soares, que nunca misturou o Cynar com 51, está todo os dias no bar. O paraíba só vende rabo-de-galo (ou só pinga, ou só Cynar) e Skol.

O velho Soares é aposentado. Aos 76, viúvo sem filhos, vive da nostalgia dos grandes tempos do bar do português, seu amigo do peito. Não sai dali porque há muitos anos atrás fez uma promessa de responsa ao Zé Mané: jamais beberia em outro bar da Barra Funda. E cumpre assim sua missão diária de aturar bêbados desqualificados e beber Cynar. Os antigos frequentadores morreram ou estão com sérias limitações causadas pela idade; o único ainda em "bom estado" é o Quito, nosso roupeiro do Anhangüera, que nunca mais apareceu por lá depois da morte do Zé Mané.

Ninguém do bairro bebe no bar do paraíba que se instalou ali - aquilo virou um lixo! Nem os velhos, nem a geração do meu pai, nem a minha. Outro dia parei lá única e exclusivamente pra curtir uma nostagia, também. Cheguei a ir ao bar quando o patrício era vivo. O bar tinha clientes de respeito! Eu me lembrava do Seu Soares (o conhecia de vista); ele é que não me reconheceria - seria um disparate se fosse o contrário, convenhamos. Eu beberia uma cerveja - coisa rápida - e seguiria pro Bar do Sinval, um pouco mais a frente. Desisti da cerveja quando vi aquele velho recostado no balcão, com um ar triste: bebendo uma dose cavalar de Cynar. Pedi um também. Puxei algum assunto. O papo, que começou tímido, foi que foi. No fim das contas nem fui pro Sinval. Seu Soares me contou muita coisa do bairro e grandes histórias do Bar do Zé Mané e de seus assíduos frequentadores. Me falou da sua vida e da promessa que fez de sempre beber ali, mesmo "tendo que aturar esses péssimos bebedores". Seu Soares é bom pra beber, pude comprovar.

Em algum instante da conversa falamos sobre cerveja. Seu Soares já estava soltinho, soltinho. Me pegou pelo braço, parou por um instante, e retomou eufórico: "- A molecada da tua idade não sabe nada... e os mais velhos estão ficando bobos!". Eu abri um sorriso como quem diz "prossiga". O velho retomou: "Tem uma cerveja que eu não vejo mais ninguém bebendo, nem vendendo, que bebo há décadas. Tenho estoque em casa!". Afirma, Seu Soares, que só vive com saúde até hoje, que carrega o peso que for, que tem joelhos de menino, que não caiu em desgosto na vida, e que seu pau ainda enrijece por causa da Caracu que bebe - batida com ovo - todos os dias.

Lembro-me que em determinado momento no casamento de sábado passado - enquanto os integrantes da banda contratada se apresentavam vestidos como os personagens do seriado Chaves - participei, sem querer, de uma conversa com uns caboclos metidos a besta, amigos do meu camarada que casava. Um deles também era amigo do Valtinho. Falavam de afrodisíacos, um assunto que nunca me seduziu. Aliás, acho uma viadagem. Citaram nomes que eu jamais ouvira: cantárida, larginina e outras papagaiadas. Um deles afirmou que "caviar excita". Outro disse que "o gengibre estimula". Pedi licença para ir ao banheiro e mantive distância daqueles xaropes até o fim da noite.

E no banheiro chique refleti: Será - me responda, meu irmão querido - que o Seu Soares sabe o que é um afrodisíaco?

15 de set. de 2009

As manias do Freitas

Sem querer ser cansativo, reitero: dos inúmeros clubes varzeanos da região, só sobreviveram dois, Anhangüera e Nacional. A principal razão que me vem à cachola é simples; eram – e ainda são - os únicos dois que dispunham, além do campo de futebol, de um salão social para festividades. A prefeitura jamais subsidiou qualquer agremiação. Pelo contrário, sempre marcou em cima o funcionamento e o cumprimento dos regulamentos dos estatutos. Vai daí que a diretoria, composta por membros da comunidade, tinha que se virar pra pagar água, luz e a porra toda, de modo que o salão social assegura uma fonte de renda indispensável.

No começo da década de oitenta o nosso campo abriu vaga para aluguel aos sábados à tarde. Após algumas propostas risíveis, um time bateu o martelo: o Liberty Plaza, que tinha o apelido de Libercom. Era um time conhecido no ambiente amador por montar esquadrões de respeito. Fundado na década de setenta por Freitas, um homem cheio de manias, o Libercom atingiu seu ápice no começo dos anos 90 e morreu dez anos mais tarde, quando Freitas cansou.

Nos últimos quarenta anos, desde que o Anhangüera detém a atual praça de esportes, mais de trinta times alugaram nosso campo aos sábados, já que o rubro negro sempre jogou aos domingos. Nenhum deles, no entanto, estreitou relação conosco como o time do Freitas. Com dois quadros – veteranos e 1º -, muita gente se reencontrou após longa data. No time do Freitas jogavam os veteranos Arnaldo, Gaúcho, Nelsinho e outros craques do passado que, na várzea, jogaram ao lado – ou contra – nossos veteranos. Já o primeiro quadro era uma potência. Seu principal jogador chamava-se Neco, um camisa dez do naipe de um Zico, sem exagero. Neco foi profissional e encerrou a carreira quando Henrique – o zagueiro queixudo do Corinthians – quebrou sua perna. Foi, de longe, o melhor jogador que vi em campo até hoje. O cracaço faleceu há cinco anos, aos 37, vítima de um infarto.

Freitas é uma espécie de Vicente Mateus com Carlito Rocha. Era treinador dos dois quadros do Libercom, além de dono do time. Suas manias extrapolavam a beira do campo. A molecada, da qual eu fazia parte, o adorava. Antes do jogo, ainda no vestiário, Freitas dava a preleção – adorava um discurso cheio de parábolas – segurando uma guia. Antes de entrar em campo, a molecada fazia fila para o famoso cumprimento do mestre. A cada semana, Freitas inventava um “toque” novo. O aperto de mão ia se seguindo de um toque de ombro, de pé, de bunda; a molecada ia ao delírio com o velho. E o simples ato de cumprimentá-lo durava dois, três minutos.

Em pouco tempo Freitas já era treinador do segundo quadro do Anhangüera. Os jogadores do preto e amarelo – as cores de seu time – começaram a jogar no rubro negro e vice-versa. Os times praticamente se fundiram. Foi nessa época que eu entrei em campo pela primeira vez num time de adultos. Eu tinha catorze anos. Durante um ano devo ter jogado um total de vinte e cinco minutos, sempre entrando nos acréscimos, na ingrata lateral direita.

Sua fase como treinador do Anhangüera alcançou o expressivo número de 67 invictas. Mas Freitas era fanfarrão. Lembro-me do jogo em que o time estava com 28 invictas. Tomando de três a zero, faltando dois minutos para o fim, Freitas discutiu com um jogador adversário, foi pra cima do caboclo – ele nem era de briga – e deu um jeito de o jogo acabar: não contou como derrota. Alguns meses depois, com umas 52 invictas, o rubro negro estava tomando um sacode. Na metade do segundo tempo Freitas entrou em campo, tomou o apito do Lampião e deu fim no jogo. Sua obsessão eram as 100 invictas. Na 67ª não teve jeito. O Anhangüera perdeu, enfim. E o Freitas, relutante, cravou: estávamos há 67 invictos, agora estamos há 66.

Mas eu dizia que o salão social ajudou muito a segurar o Anhangüera. As festas do Libercom eram tão folclóricas quanto o seu patrono. Comida da boa e aquele glamour varzeano. Freitas empunhava o microfone e agradecia mais que o Maguila. Distribuía troféus e medalhas à rodo. Premiava todos os jogadores, a quem chamava de “filho”. As festas, anunciadas como “Jantar Dançante”, não tinham banda. A parte solene – discurso e entrega de troféus – dominava toda a noite.

Não satisfeito apenas com as chuteiras de ouro e condecorações aos diretores, Freitas passou a premiar as mulheres, “que davam apoio a seus atletas” e, mais tarde, aos filhos deles. Com o batido “bom pai, bom filho, bom amigo” ao apresentar cada um dos infinitos premiados, o velho Freitas fechava a noite - devidamente embriagado - com um Pai Nosso. Era uma festa imperdível!

Há alguns anos Freitas está afastado do campo. Mas essa figura ímpar deixou, além de vários amigos que continuam conosco todos os domingos, grandes recordações. E nos tempos atuais, em que figuras como esta nem são lembradas pelos atuais comandantes, deixo aqui meu recado ao querido Freitas: sua irreverência e suas manias fazem falta, elas quebrariam um pouco da “praticidade” que se instalou naquele chão, meu caro.

A criançada exibindo as medalhas: eu sou o primeiro da esquerda, meu irmão Bruno o quarto da esquerda para a direita, e meu gêmeo Angelo sentado.

8 de set. de 2009

A Gazeta Ilustrada

Há um ano e meio escrevi o texto A Gazeta Esportiva, no qual publiquei reportagem do jornal de mesmo nome sobre o Anhangüera em 1949. Nove anos mais tarde a revista semanal Gazeta Ilustrada, coqueluche dos leitores de páginas esportivas, lançou uma série sobre clubes varzeanos da cidade. A segunda dessas reportagens foi justamente sobre a Associação Atlética Anhangüera. Uma senhora matéria de quatro páginas!

Esta relíquia me foi emprestada por Wiliam Sandonato, presidente da agremiação na década de 50. Ele, que ja está quase na casa dos oitenta, apesar de morar na Rua Cruzeiro até hoje, anda afastado do clube. É preciso registrar que Wiliam, ao lado de Salatiel e Walter Gordo - este o único atuante - é o mais antigo anhanguerista vivo.

Além da Gazeta Ilustrada, Wiliam cedeu-me duas edições da histórica Revista do Anhangüera. Durante anos a fio - décadas de 50 e 60 - o clube publicou revistinhas contando a história do clube, do bairro e outras curiosidades. Com o passar dos anos elas foram sumindo. São mais de quarenta números e hoje só há dois em nossa mão; todas as outras evaporaram...

Voltando à reportagem. Há coisas do arco da velha! As primeiras atas de reunião datam de Outubro de 1928, e com base nelas escrevi a série O grande clássico; mas o depoimento de Saverio Russo sobre o primeiro "onze" da agremiação, em Janeiro do mesmo ano, revela uma injustiçada dupla de zaga: Radiador e Parafuso - como poderia ser esquecida, uma bequeira desse porte, após míseros oitenta anos? Do primeiro jogo para o time que jogou contra o Carlos Gomes meses depois só os dois fundadores estavam em campo: Barthô (o craque, supenso) e Saverio (no banco). Daí se vê que o primeiro onze era um time de camaradas, e que precisava ser muito melhorado. Notem que a matéria aborda também os grandes bailes carnavalescos na sede, além das noites de shows com artistas do naipe de Paraguaçu e Caco Velho.

Por fim, dedico este resgate à Rodrigo Russo, o Pepe. Filho de Roberto Russo (presidente durante vinte e e seis anos ininterruptos) e neto do fundador Saverio Russo. Pepe é meia esquerda do nosso time; ao contrário do seu avô, joga o fino da bola. Mas essa singela homenagem é apenas porque Pepe cultiva a tradição, entende a dimensão e a grandeza do Anhangüera e sabe da responsabilidade que carrega quando enverga a camisa dez do rubro negro da Barra Funda. E isso, que parece pouco, é justamente o que está faltando. Os que se arvoram em mandar e desmandar - que de nada sabem - o vêem como só mais um jogador do clube.







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