29 de set. de 2008

Cabo eleitoral

Uma de minhas peculiaridades é o interesse por grandes figuras. Mas tais grandes figuras talvez existam só para mim, talvez só eu as considere assim. Não estou a falar de gente “importante”; bufunfa, influência e pose, definitivamente, não me dizem nada. Na maioria das vezes me repelem. As grandes figuras prescindem dessas redundâncias. Nada contra gozar de alguns prazeres do conforto ou de algumas oportunidades conseqüentes de influência – a pose é que não tem justificativa nenhuma. Para se reconhecer uma personalidade dessas é necessário, antes de mais nada, estar na rua. É preciso deixar que a subjetividade das percepções e a objetividade das ações se fundam e é imperioso desfazer o que há de certeza, o que há de definitivo, o que está dado, porque há quem prove o contrário.

Nas minhas andanças – em círculo, é verdade! - por Barra Funda, Bom Retiro e Casa Verde, os únicos lugares que conheço, deparei-me com alguns indivíduos dessa fina estirpe. São eles, os anônimos a quem me refiro na caixa de apresentação do blogue, que me motivam a dedicar um tempinho para escrevê-los. É com eles que eu gosto de estar, de preferência bebendo. Muitos, é claro, não são meus contemporâneos e já abotoaram o paletó há tempos. É gente de tantas naturezas; crias do mundo, pelejadores de porões, malandros meio-caráter, filhos da roça, ignorantes eloqüentes, sofredores de amor, bêbados valentes, todos comungando o que há de mais nobre: a simplicidade.

Entre essas figuras está um amigo meu, o Roberto, que atende pelo nome de Bonitão. O apelido, datado do começo da década de 60, é obra do escárnio da garotada do bairro. Bonitão é, de longe, o sujeito mais burlesco que conheci. Foi ele quem me cravou o apelido de Favela, há mais de dez anos. Tem a língua presa no erre, que causa a famigerada disfunção do “tlinta-e-tlês”. Tudo no cabra, o jeito de andar, de gesticular, de falar, é cômico. O Bonitão, hoje, é um dos poucos que representam o espírito da Barra Funda. À frente de seu ponto de bicho há 20 anos, na Baronesa de Porto Carreiro com a Anhangüera, Bonitão vê e ouve tudo. Além disso, 56 anos de bairro e sua conduta boa-praça lhe asseguram portas abertas por onde passa. O ato de ir ao banco, por exemplo, é um grande passeio. Boni para nos butecos, vai entregando o resultado da manhã como quem distribui folhetos, toma cafezinho numa casa ou outra, essas coisas.

Sua maior característica, porém, é a falta de filtro cerebral. Bonitão diz o que pensa no instante em que pensa e isso já lhe causou tremendos problemas. Só do Waldir, o Diabo, Boni (como a Marilú – a maior figura feminina do lugar - o chama) já tomou três copadas e uma garrafada, e são – acreditem! – amigos inseparáveis. Na última eu estava presente, à mesa com eles, no Bar do Sinval. Junto também estavam Bule e Gilmar. O Diabo fez uma brincadeira (dessas que não se faz) com o Bonitão, dizendo alguma coisa da mãe do amigo. Levou um revide que, de tão imediato, demorou uns quinze segundos pra raciocinar, xingar e, por fim, tacar a garrafa na direção do Bonitão, que a esta altura já estava quase na esquina.

Graças à falta do filtro cerebral, Bonitão foi elevado a uma categoria parecida com a famosa “café-com-leite”. Tudo é esperado quando se está na mesma mesa que ele. As maiores bolas-fora que eu já dei, por exemplo, são constância para o Bonitão. Comentários “maldosos” são sua especialidade. E aí é que mora a jogada. O Bonitão, um dos maiores broncos que conheço, um semi analfabeto, um cujo que nunca teve carteira assinada – eu duvidava, até pouco tempo, que ele possuísse qualquer documento -, não tem nenhuma maldade, ao contrário do que alguns imaginam. Bonitão faz piadas, não as perde nunca. Mesmo estando frente a frente com o Diabo, ou com qualquer um. É só saber a liberdade que se vai a ele oferecer, fácil assim. Se não agüenta, não brinca.

As cenas protagonizadas pelo Bonitão são toscas. Uma das incontáveis se deu por esses dias, no próprio bar do Sinval.

Um político, candidato a vereador, anda fazendo campanha pesada na Barra Funda. O caboclo é da Vila Carrão, mas por intermédio do Jair, seu amigo e freqüentador do buteco, veio fazer discurso e pagar churrasco pros lados de cá. No buteco do Sinval o que pega é a sexta-feira. O pagode comandado pelo Zonga, filho do Sinval, tem tradição e um público fiel, de alterar a rota dos ônibus que passam por aquele pedaço da Anhangüera. A rua fica lotada.

O político, na primeira sexta que esteve lá com o Jair, deslumbrou-se com aquele amontoado de gente, viu ali um filão, presas bem fáceis. A jogada, tão corriqueira quanto abjeta, não demorou. O Sinval, que também não nasceu ontem, de uma hora pra outra virou – como um puxa-saco classificou – “formador de opinião” e cabo eleitoral do homem. O candidato, que tem uma gráfica, não perdeu tempo e imprimiu milhares de cartõezinhos com uma foto do Sinval e um depoimento o indicando para ser nosso representante, o que angariará, seguramente, alguns votos na área.

Na sexta-feira retrasada o Bonitão deu das suas. O Jair, todo pomposo, apresentou seu amigo candidato à “diretoria” – como é chamada a mesa em que ficam só os cabeça-branca. Dois assessores haviam distribuído o cartãozinho para todo o público que estava ali pra curtir o samba. O Bonitão, num aperto danado, disse que poderia usar de seu conhecimento na região para propagar o nome do fulano, em troca de uma graninha não muito curta. O Jair deu o aval e o candidato botou a grana na mão do Bonitão que, no mesmo instante, não perdeu a chance de impor seu vasto conhecimento político e discursou garboso para a toda a assistência:

- O senhor pode saber que aqui a gente consegue muitos votos. Não posso plometer que o senhor se elege, mas que passa pelo plimeiro turno, passa. Eu garanto!

25 de set. de 2008

Anhangüera dá Samba XV

Vira e mexe recebemos em nossa várzea convidados especiais de casa. Desde o começo, quando o gigante Wilson Moreira por lá esteve, planejávamos convidar grandes nomes do samba, gente consagrada e talentos indiscutíveis. O melhor de tudo isso é que vários deles são desses que a gente é amigo há tempos. No embalo de Chico Médico, Wilson Sucena, Fabiana Cozza, Velha Guarda da Camisa e Edu Batata, recebemos um companheiro da noite, Tião Preto. Particularmente, considero-o uma lenda. Tião é cobra-criada, vivido nas rodas de samba e nos de becos da cidade. Uma noite bebendo com o homem é uma aula da boemia mais vagabunda. Conviveu com os maiores malandros das décadas de 60 e 70, no meio de jogatinas, boates e sambas. É muita vivência!



Antes do Inimigos do Batente atacar, o grupo Choro em Linha de Passe estreou no Anhangüera. Segundo a insuspeita opinião de minha mãe, era isso que faltava pra turma do Sucatão e dos Veteranos do clube abraçar de vez o projeto. Os velhinhos, segundo mamãe, que não agüentam o tranco até as 4h da matina, aprovaram o chorinho até as 22h. E assim será; amanhã, a partir das 19h, pra quem sai direto do trabalho ou para os vagais que quiserem começar os trabalhos mais cedo (alô, Marquinhos!), tem choro antes do samba. Quando o Tião chegou acompanhado do irmão mais novo, seu fiel escudeiro, o samba já estava quente. Seu destino foi primeiro o balcão, mas não sem antes, pelo caminho, ser beijado e abraçado por quase todas as mulheres do salão. Depois cantou, e muita gente que não o conhecia me pegou pelo braço e disse estar impressionada. O estranho é que - e digo mais uma vez de minha parte - mesmo após tê-lo ouvido dezenas de vezes, continuo sempre me impressionando com o Tião Preto. Pra isso, basta vê-lo cantando Paulinho da Viola!

Amanhã a roda será histórica. Os Inimigos do Batente receberão diretamente do Rio de Janeiro a grande cantora e compositora Gisa Nogueira. Gisa tem músicas gravadas por Clara Nunes, Beth Carvalho, Elza Soares e por seu irmão, o monumental João Nogueira. Seu filho Didu Nogueira, cantor e produtor, também estará presente. A apresentação da Gisa no Anhangüera marcará sua volta a São Paulo – e culminará com a gravação de um DVD - após duas décadas em que se dedicou muito, além da música, às artes plásticas e à vida ativíssima de professora. É muita honra receber, após 20 anos sem se apresentar por estas bandas, esta cria dos Nogueira - nome cravado na mais alta galeria da música brasileira -, a Gisa.

Gisa Nogueira gravou apenas um disco, o clássico Saldo Positivo, em 1978. Deixo a música que dá nome a essa raridade, composta pela própria e cantada junto de seu saudoso irmão João, pra vocês sentirem o drama!

Até amanhã!

19 de set. de 2008

Convocação neg(r)ada

Muita gente me pergunta por que falo tanto de Antonio Carlos Apolinário, o Zulu. Querem saber quais os motivos que me fazem lhe dedicar tanta atenção. Minha resposta, a mais óbvia possível, é direta; porque o negro é meu amigo. Há, no entanto, algumas ressalvas. Zulu é amigo de meu pai há quarenta anos. Lembro-me com cinco, seis anos, batendo bola com meu gêmeo, o Angelo, já estafados, sujos de barro, apenas esperando meu pai terminar o bate papo com aquele negrão carinhoso para irmos embora. Éramos sempre os últimos a deixar o Anhangüera. Zulu era o dono do bar do clube. Meu pai - como eu faço hoje -, após jogar futebol e depois caxeta, se deixava levar por essa coisa que sou apaixonado; o balcão de um bar e um homem do quilate do Zulu sendo seu amigo, relembrando histórias e bebendo, como sempre. Sendo Zulu amigo de meu pai e me vendo crescer, ficou tudo mais fácil. Para ter carinho por mim estavam dispensadas todas as apresentações.

Foi na minha adolescência que comecei a sacar o proceder do homem. Zulu é daqueles que falam apenas o necessário, o que não significa que não gosta de falar. Eu, por exemplo, já virei incontáveis noites em sua companhia, fazendo o que meu pai fazia nas tardes de sábado quando eu era um fedelho. A questão é que Zulu não joga conversa fora. Exigente demais, a ponto de ser considerado por muitos – e faz questão! - um chato, o crioulo fica extremamente mal humorado se o papo fica “esquisito” e não hesita em ignorar solenemente um verdadeiro chato. Faz questão, na verdade, de falar das coisas que realmente importam – pra bom entendedor... Foi com ele que aprendi, entre muitas outras lições, que o ato de vadiar e de beber é coisa das mais sérias.

Como disse meu mano Bruno Ribeiro, as pessoas e as coisas orbitam ao seu redor. No Cruz da Esperança, por exemplo, havia festa todos os anos no Dia das Crianças; mais de mil infantes se faziam presentes para receber presentes. Era festa de gente, como todas as que o tradicional time organiza. Numa dessas, há uns quinze anos, o Basílio conseguiu, junto a um comandante da área, um helicóptero que partiria do Campo de Marte, ali pertinho, até o campo do Cruz levando pela primeira vez ninguém menos que o Papai Noel. O único Papai Noel preto da história. O bom velhinho, no entanto, teria que voar. Tomou coragem, mas tomou antes uma garrafa de cana pura. O nada convencional velho de vermelho, além da pele preta, estava devidamente trançando as pernas ao descer do helicóptero. Eu vi a cena; estava lá no meio daquela criançada. A molecada, quando liberada, se transformou numa horda furiosa e correu na direção do alcoolizado Noel. Os dois primeiros que pularam em seu colo o derrubaram e se formou uma montanha de crianças sobre o homem; seu saco foi saqueado sem dó. Eu credito, sem a menor sombra de dúvida, a insana atitude da molecada ao simples fato de não perceberem que se tratava do Zulu. O polar velhote não lhes dizia respeito algum, diferentemente do querido “Tio Zulu”.

Mas é no bar que Zulu atinge seu ápice. Este é o ambiente que o faz sangrar sapiência, que se faz necessária sua intervenção, sua bênção ou sua ira. Num caso clássico, há quase trinta anos, Zulu impôs seu respeito em uma resposta a Agostino Tomaselli, sujeito já afamado como um dos mais valentes da região. Eram colegas, e continuaram sendo após um curto período em que Agostino o acusou, injustamente, de negligência neste fatídico episódio. Vamos aos fatos. Houve um período em que, no Anhangüera, toda semana o pau comia durante os jogos. Cyborguinho, Tomaselli e principalmente Waldir, o Diabo, demonstrando a maior falta de respeito para com os visitantes, com ou sem motivo tratavam de arranjar uma briga com o time adversário. Enquanto a bola rolava, Zulu, Fofo, Zêpo, Betinho, Tatinha e mais alguns vagais ficavam bebendo e assistindo ao jogo que fatalmente acabava em pancadaria. Como o Anhangüera jogava em casa, com torcida, ficava fácil a coisa e os adversários indubitavelmente apanhavam. Um dia o Zulu cansou de apartar e decidiu dar um tempo; começou a beber aos domingos no tranqüilo bar da esquina Barra do Tibagi - Visconde de Taunay. Todos os que bebiam com ele no Anhangüera, evidentemente, o acompanharam. Passou um mês, passaram dois... E vida que segue. Em um desses domingos no buteco um carro deu um cavalo de pau na porta do bar; era o Tomaselli gritando, apavorado, e convocando a turma a ir imediatamente ao Anhangüera.

Aconteceu o que Zulu sabia que mais hora, menos hora aconteceria. Um time escaldado, sabendo da então nebulosa fama do rubro negro, lotou um caminhão e foi disposto a não abaixar a cabeça; o couro comeu com prejuízo dos grandes pro Anhangüera, pela primeira vez em número menor de baderneiros. Tomaselli imaginou que a turma do Zulu estivesse no buteco e que dariam uma boa ajuda; o Fofo era forte pra burro, o Betinho e mais uns dois eram bons de briga, e o Tatinha, o Zulu e o Zêpo pelo menos ajudariam a botar panos quentes. No mesmo instante da solicitação escandalosa do Tomaselli, alegando que “Fodeu, vamos pro campo que o bicho tá pegando!”, todo mundo se levantou esbaforido, menos o Zulu que gritou um estrondoso “Pára! Ninguém sai daqui!”. O bar calou e todos voltaram os olhos assustados para o homem que, sentado em seu trono e bebendo sua cachaça, deliberou:

- Todos os Domingos vocês batem nos caras e nunca nos convidaram a participar. Hoje, pra apanhar, você quer que a gente vá? Ninguém vai sair daqui. E você nem deveria ter vindo enquanto teus amigos estão lá. Volte logo pro campo pra apanhar junto deles.

A partir daí paz voltou a reinar e os domingos foram tranqüilos no Anhangüera. Do jeito que o Rei mandou.

15 de set. de 2008

Venham comer conosco

Quando eu conheci o Estevão ele estava de azul e branco, se aquecendo para um jogo no campo do Baruel. O azul e branco era o uniforme do tradicional Vâmo que Vâmo, time fundado por ninguém menos que Zulu. O time jogava apenas em festivais; foi criado para reunir grandes ex-jogadores da região. Jogavam Serginho Chulapa, Basílio, Ademar Pantera e outros ex-profissionais, além do Galo, Jorginho, Tatu, Lalo, Mimi e outros boleiros da Casa Verde. Só veteranos. Entre eles o Estevão, que foi zagueiro do São Paulo na década de 70. O sujeito, de boca fechada, já é engraçado. Quando conta histórias dos bastidores que presenciou no futebol então, não há quem se agüente. De uma delas nunca esqueci.

Estevão, já com a carreira encerrada, gordo, foi jogar num time do interior de Goiás do qual não me lembro o nome. Nem a cidade. Um time pequeno, modestíssimo, da segunda divisão estadual; quase um time amador. A cidade o aguardava com tremenda ansiedade. O craque que, segundo ele mesmo, exibia mais categoria que o Beto Fuscão, foi recebido com toda a pompa. A função foi organizada na mansão de um político dono de terras mil em Goiás. O cabra era também o presidente do clube e dono do único puteiro da cidade. Gabava-se por ter muitos empregados; segundo o escroto, mais que vacas. Um coronel dos fortes.

O time era formado por trabalhadores, gente humilde. Pedreiros, carpinteiros, trabalhadores do campo, analfabetos. Era a primeira vez que se viam em um evento junto com a “elite” do lugar. Os fazendeiros e políticos mais ricos festejavam a chegada do Estevão – particularmente, acredito que o Estevão tenha sido uma desculpa para uma reunião de interesses entre os canalhas de toda a região. Os jogadores, tímidos, ficaram num canto, comendo e bebendo entre eles, tomando cuidado com os modos, maneirando nas brincadeiras e na bebida. Do outro lado, os latifundiários e suas madames não queriam contato com a plebe. O prefeito, suando em bicas, fez um discurso efusivo comemorando uma possível ascensão à primeira divisão, fato inédito. Estevão, cheio de moral e de cachaça era o único jogador à vontade, rodando pelo salão entre os coronéis.

Teve um momento, porém, que a diferença social foi aproveitada para aquela “média” básica. Era o momento para um filho da puta se mostrar bom cristão. O tal político – o presidente do clube -, que nunca havia dirigido sequer uma palavra a qualquer jogador, decidiu estreitar os laços entre as classes, ainda que somente naquela noite. O poderoso, enchendo o peito, exibindo orgulhoso sua atitude altruísta, convocou os retraídos atletas para o jantar que seria servido gritando de longe, gesticulando em demasia:

- Venham comer conosco! Venham comer conosco!

Os jogadores, desconfiados, continuaram ali. E o fazendeiro, com uma pança enorme e botas com esporas de ouro, decidiu pegar um jogador pelo braço. Quem sabe conseguindo levar o primeiro, os outros também iriam. Afinal, pensou o coronel, com a boiada é assim que funciona. Agarrou forte no braço de um caboclinho:

- Venha comer conosco!

- Não senhor. Não quero não, muito agradecido. Estou bem aqui. – e cochichou rapidamente com um companheiro de equipe:

- Que trem é esse?

- Sei não. Eu vou ficar aqui comendo meu churrasquinho.

E o coronel, enlaçando o caboclo com o braço direito sobre seu ombro, ordenando num tom rigoroso, fazendo com que toda a “nata” percebesse sua generosidade e humildade:

- Imagine. Faço questão que venham comer conosco!

O caipira intimidado, com medo de contrariar um homem tão influente – ainda mais sendo o patrão -, se encheu de coragem e cedeu:

- Tá bom, doutor. Vou provar um desse conosquinho!

3 de set. de 2008

Corinthians X Palmeiras

Há um jogo entre Palmeiras e Corinthians que não consta nos dados oficiais e nem teve a repercussão merecida; um dos grandes jogos da história do clássico. Poderia até ter saído uma nota no finado diário A Gazeta Esportiva, quando o futebol amador ainda era vitrine para clubes grandes e craques despontavam nas peladas. Isso mesmo; foi um jogo de várzea. E como nessas águas eu remo com um remo só - modéstia às favas -, vou relatar aqui este que foi um jogaço. Muito embora esquisito, foi um jogaço.

Em meados dos anos 50, num domingo de manhã num campo na Mooca, jogaram Corinthians do Bom Retiro e Palmeiras da Penha. Não só nos nomes esses times homenageavam os dois maiores da cidade. As cores, o uniforme, o símbolo, enfim, tudo remetia aos grandes. Abundavam pela cidade times assim. Se Portuguesa havia mais de 20, imaginem Palmeiras e Corinthians!

No jogo em questão havia, entretanto, um porém. O Bom Retiro de baixo (da Rua Sólon até a Marginal), onde ficava a sede do Corintinha, na época, era predominado por italianos que, obviamente, eram palmeirenses – até hoje os velhos se denominam palestrinos. A Penha também era um bairro essencialmente italiano, mas a partir da década de 40 a grande maioria dos migrantes nordestinos se alocou ali - da região do Brás pra dentro da Zona Leste -, além dos negros que estavam sendo afastados da região central. Com o preconceito sofrido pelos carcamanos, os “baianos”, em sua maioria, preferiram o Corinthians.

O fato de um corinthiano torcer pelo Palmeiras da Penha, o time do seu bairro, possivelmente até de sua rua, não justificava vergar a camisa alviverde; exceção restrita aos jogadores. No caso dos palmeirenses do Bom Retiro, idem. Vestir alvinegro, jamais! A várzea vivia então seus tempos áureos, os bairros eram representados pelos seus times e as torcidas eram fanáticas. Quando o jogo era entre times de bairros distintos todo mundo ia torcer. Neste dia, por exemplo, muita gente que era Anhangüera, Nacional, Junqueira, Marconi, Bola Preta, XV de Novembro, Grajaú, etc., foi torcer pelo Corintinha; afinal de contas, além de seus amigos estarem em campo, não se costumava perder grandes jogos, como tal.

O que se viu foi uma desordem generalizada e sem precedentes. No dia do prélio, mais de 1.000 expectadores, dizem os relatos, lotaram o campo da Mooca. A turma do Bom Retiro foi em peso torcer para o Corintinha e o pessoal da Penha para o Palmeirinha. Tudo normal, não fosse pelo jogo que aconteceria a tarde no Pacaembu pelo Campeonato Paulista: Corinthians e Palmeiras. Muita gente sairia da Mooca direto pra o estádio municipal. Foi isso que causou a confusão; na torcida do Corintinha predominavam torcedores com camisa do Palmeiras e na torcida do Palmeirinha as camisas do Timão eram maioria.

O Corintinha fazia um gol, os palmeirenses comemoravam; e vice-versa. Os jogadores, totalmente atordoados, não sabiam com que torcida comemorar. Um jogador do Palmeirinha foi pro alambrado comemorar com a torcida "palmeirense" e levou uma cusparada na cara. A cena pitoresca justificou o ditado de que a banana estava comendo o macaco. Na mesa de jogo de sueca, os velhos sempre quietos, ranzinzas, riam achando tudo aquilo engraçado. A mulher do português que arrendava o bar do clube desistiu de vez de entender alguma coisa sobre o futebol. Um bêbado tentou invadir o campo e “destrocar” as camisas dos jogadores; pregava, austero, que “ainda não acabou o jogo. Por que já trocaram as camisas?”.

Após mais de 50 anos não existem mais registros do prélio, somente depoimentos das testemunhas. A única certeza é que o jogo terminou 3 a 2. O problema é que não se sabe mais pra quem, uns dizem que foi o Palmeirinha, outros dizem o contrário. É certo que a confusão das camisas nas torcidas confundiu as memórias no Tempo. Pra mim, meus caros, o resultado da partida foi o único da história a contrariar a impossibilidade; o que se deu foi uma retumbante vitória de Corinthians e Palmeiras.
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