Minha avó Antonia viveu seu último ano de vida num asilo na Rua Garibaldi com a Cruzeiro. Lá os velhinhos eram tratados a pão-de-ló. Ela, que na velhice morou com o filho caçula – meu pai -, ficou impossibilitada de ficar sozinha em casa. Após a morte do meu avô, e com todo mundo da casa trabalhando fora, não dava pra deixá-la só.
No asilo, costumávamos visitá-la com grande freqüência. Meu pai ia quase todos os dias, eu ia uma vez por semana, sempre aos sábados, já que na época eu trabalhava no interior do estado e só chegava em São Paulo na sexta a noite.
A grande maioria dos velhos já estava muito debilitada física e psicologicamente. Tinha um senhor que vivia disparando tiros imaginários e se jogando no chão. Quando eu aparecia ele ficava desesperado. Tinha a certeza que eu era um nazista e que ia matá-lo. Outra velhinha achava que eu era seu filho, papel que eu representava orgulhoso, com a virtude cênica de um Paulo Gracindo.
As velhinhas (eram apenas três os velhos homens – o que vivia na guerra, um que achava que era jogador do Palestra e outro entrevado na cama) ficavam a maior parte do dia numa sala de televisão ampla, bem arejada. Cafezinho da tarde e tudo que era confete. Nessas tardes de televisão elas batiam papos alvoroçados. Parecia a Torre de Babel, eu não entendia bulhufas. As anciãs, porém, apesar de parecerem conversar, viviam cada uma dentro de si e de seu mundo cheio de lembranças, imaginações e delírios.
Entre elas, totalmente travada e só conseguindo balbuciar palavras ininteligíveis, estava um mito, uma lenda da região: Dona Marcina, a célebre benzedeira. Com mais de 90 anos ela estava consciente, apesar do derrame que lhe reduziu sensivelmente os movimentos. Minha avó, que conviveu com Dona Marcina uma vida inteira de bairro, nutria pela benzedeira um respeito, uma admiração santificada e – por que não? – uma veneração. Tanto que todos os dias sentava-se ao lado da cadeira de rodas de sua santa de carne e osso, segurava suas mãos e ficava ouvindo o balbucio do qual não se extraia uma palavra sequer.
Breve parêntese: Apesar de sabermos das plantas e recursos palpáveis que os benzedeiros e benzedeiras lançam mão para a cura de qualquer tipo de chaga, jamais serão entendidas as palavras por eles utilizadas. Faz parte do processo não deixar transparecer a oratória.
Dona Marcina começou ainda moça com a benzedura. Com o tempo foi aplacando toda a Barra Funda e os bairros vizinhos. Ganhou divisas de curandeira da pesada quando desembestou a curar mazelas que davam uma trabalheira danada pros médicos. Sua fama se espalhou como um tornado; dizem que não havia quebranto que ela não botasse abaixo. Quem nasceu a partir da década de 40 via a mulher como uma milagreira, tamanha a fama de seus feit(iç)os.
Não houve uma só criança do bairro que Dona Marcina não benzeu. Minha avó levava religiosamente seus quatros filhos pra carimbamba curar toda a sorte de mau-olhados e cobreiros. Era um tempo em que o pediatra não era tão solicitado!
Eu já sou de uma época em que a velha rezadeira estava aposentada. A pirralhada da minha geração se submetia às rezas e às mãos da Dona Yolanda, também muito requisitada! Nunca me esqueço quando aparentávamos, eu e meus irmãos, qualquer sintoma de moleza. Minha avó, com toda experiência, bradava: “- Direto pra Dona Yolanda!”. A Dona Yolanda aprendeu muita milonga com a Dona Marcina.
Na “casa de repouso”, apesar de toda a higiene e dos serviços das moças prestativas e atenciosas que lá trabalhavam, virava e mexia a velharia apresentava um comichão, uma mancha estranha na pele, uma íngua, um cobreiro ou uma gastura. E as funcionárias não se conformavam com um mistério: como só as duas – Dona Marcina e minha avó - podiam ser as únicas das velhinhas daquele asilo que jamais apresentaram qualquer sorte contrária que as mãos e a reza de uma boa benzedeira não pudessem curar.