22 de jul. de 2010

Tapa no Rei das Feijoadas


Arthur inaugurou seu bar na década de 50, na Rua Anhangüera. A propaganda que estampo aqui foi retirada de uma revistinha do Clube Anhangüera, publicada em 1965 – e é possível notar as letras da página de trás. Quem tinha comércio na região era praticamente obrigado a fazer propaganda na revista, que era anual e tinha uma grande tiragem. A revista chegava a todas as casas, passava de mão em mão. Os proprietários de lojas, bares e pequenas fábricas anunciavam porque 1) participavam, se não do cotidiano do clube, pelo menos dos grandiosos bailes na sede, e a contribuição com o anúncio era uma maneira de se mostrar entusiasta das coisas do clube ou 2) se não anunciassem, pegariam fama de muquirana e perderiam uma clientela grande.

Pode parecer forçado, mas o Anhangüera era uma agremiação fortíssima, a ponto de interferir em questões comerciais, fazendo valer sua nobre reputação. Nessa época, década de 60, por exemplo, o presidente Roberto Russo entrava e saía da Câmara dos Vereadores a hora que bem entendesse. Eram cerca de 500 associados, um número expressivo, se pensarmos que ainda há os parentes e agregados. Uma mina de ouro para qualquer candidato a vereador.

A Barra Funda de baixo já era um bairro totalmente italiano há pelo menos três décadas – quando os negros foram expulsos do centro e seguiram principalmente para as zonas norte e leste. Os poucos negros que se via no bairro eram empregados das mansões dos Campos Elíseos ou moradores de porões na Barra Funda além trilho (de cima), ou ainda aqueles que moravam na Casa Verde e Limão e trabalhavam nos serviços mais ingratos e menos desejados; que exigiam força, principalmente.

Um desses poucos negros que transitavam no bairro era José de Sousa, mais conhecido por Bigode. Ouvi dizer que Bigode chegou a vestir a camisa do Anhangüera poucas vezes; era jogador do extinto Faísca, um time do bairro que tinha campo na Ponte da Casa Verde. Bigode era tímido e discreto, pouco falava, e tal espírito pode ser compreendido se levarmos em conta o ambiente hostil em que vivia. Apesar da propalada democracia racial brasileira, os filhos e netos de italianos, que dominavam a área, eram – muitos ainda são – extremamente racistas. O preto bom era o preto resignado.

O jeito reservado de Bigode talvez fosse conseqüência dos olhares de rabo-de-olho que enfrentava todos os dias, o que não garante que fosse assim o tempo todo. Souzinha, a quem eu também consultei para saber mais a fundo essa história, ouvira dizer que Bigode “fazia batuque” – embora não saiba explicitar se nosso personagem era sambista, se fabricava instrumentos pra ganhar uns trocados ou se era do povo de santo, ou ainda as três opções simultaneamente.

O apelido “Bigode” fora cravado num jogo armado no campo do XV de Novembro no início da década dos 50, num festival que ainda existe na várzea paulistana e que, na época, era quase tão popular quanto o “casados x solteiros”: o “brancos x pretos”. Contam que José tomou um tapa na cara, de graça. Não revidou, talvez prevendo que seria pior. Imediatamente o compararam ao lateral da Seleção que, na final de 50 no Maracanã, tomou um tapa de Obdulio Varela – embora o legítimo Bigode tenha desmentido essa história a vida inteira.

Bigode morava perto do salão do São Paulo Chic, talvez num daqueles famosos porões. Ao que parece, era um sujeito que gostava de saber sobre a sua história e suas raízes, e isso eu presumo porque o causo que aqui me proponho a contar deixa claro não se tratar de um ignorante.

Agora voltemos ao Bar e Restaurante do meu xará Arthur.

O epíteto estampado no reclame, “O Rei das feijoadas”, vinha a calhar. Dizem que a feijoada do homem era monumental. Às quartas e sábados o restaurante ficado apinhado! O lugar foi ganhando fama e logrando grandes quantidades de clientes. Além dos moradores e trabalhadores da região, muita gente dos bairros vizinhos vinha se esbaldar no rei das feijoadas.

Para agradar os anunciantes da revista, que prestavam generosas contribuições nos anúncios, a diretoria do Anhangüera fazia questão de devolver as gentilezas. Num sábado de meio de ano a diretoria promoveu uma reunião no restaurante; a reunião fora convocada para declarar apoio irrestrito a um vereador, um pilantra muito eloqüente, do qual já falei aqui, que fazia, na base da troca de favor, algumas benfeitorias para a agremiação. Foram apresentar ao dito cujo a famosa feijoada – o salão estava cheio, de gente do Anhangüera e de clientes.

Bigode não era cliente assíduo do restaurante, mas de vez em quando ia “beliscar um torresminho”. Talvez por ser o único ou um dos raríssimos negros a freqüentar o restaurante, almoçava no balcão mesmo, num cantinho meio escondido. Quem o conhecia estava acostumado, Bigode era mesmo tímido.

Eis que, após os discursos inflamados do vereador, geralmente apelando à parábolas bíblicas, e depois de todos os presentes à reunião se empanturrarem de feijão e caipirinha, a reunião formal virou debate de futebol e contação de anedotas. Naqueles tempos menos politicamente corretos, imagino o que aqueles senhores não devem ter falado. A certa altura, o inevitável: já bêbados, quase todos viraram italianos e tentavam mostrar, na base do “amicci”, do “tutti buona gente”, da “mamma mia” e do “cazzo cullo”, que sabiam falar sua genuína língua. E deram de elogiar suas “verdadeiras terras”, sem que ao menos soubessem, legitimamente, em que cidade da Europa – que eles não conheciam – seus pais haviam nascido.

A coisa piorou quando o vereador soltou uma piada racista, despertando gargalhadas em profusão. Bigode, num rompante, saiu de seu cantinho – ele que já ia embora -, onde ninguém o vira e, sem descer dos tamancos, fez um discurso apoteótico para o restaurante inteiro. Entre outras lições, culminou com a seguinte frase: “- Engraçado é ver vocês comendo feijoada, bebendo caipirinha, num bairro consagrado no samba, falando tanta merda. Se vacilar, ainda vão a algum centro tomar passe de rezadeira.” E saiu.

“Foi um tapa na cara de um monte de gente”, assim Arthur, o Rei das Feijoadas, durante muitos anos se referiu ao discurso do Bigode.
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