16 de dez. de 2009

Dou-lhe uma, dou-lhe duas

A prática do leilão vem de muito antes de Cristo. Na Babilônia, por exemplo, as mulheres em boa idade para o matrimônio - ou “na hora do abate”, como diz o Gordo – eram leiloadas em grandes feiras anuais. As mais formosas eram disputadíssimas, chegando a causar grandes quebra-paus entre os licitantes; já as mais fracas de feição geralmente eram oferecidas junto de uma ovelha, um cavalo, uma boa vaca leiteira, enfim: um dote que desse uma valorizada na bruaca.

Outro leilão de enormes proporções era o de espólios em Roma. Depois de pilhar outros povos, era comum vender os bens dos rendidos ou mortos. E assim foi: escravos, jóias, quadros, animais; o tempo passa e o leilão é prática cada vez mais corriqueira. Hoje em dia, na internet, se leiloa desde tampinha de refrigerante até a mãe.

O que define, no entanto, um bom rendimento para o competidor é o fator psicológico. No leilão de donzelas na Babilônia já era assim: nêgo que se descontrolava perdia a beldade e acabava saindo de mãos dadas com a jabiraca. Alguns manuscritos dão conta de que muitos destes homens preferiam ter relações sexuais com a cabritinha que vinha de brinde com a megera.

O fator psicológico – que inclui comportamento, indumentária, pose e blefe - é tudo! Dito tudo isso chego onde quero chegar: Rua Anhangüera, setembro de 1959.

A Associação Atlética Anhangüera vivia áureos tempos. No futebol o rubro negro vinha levantando caneco atrás de caneco; o pingue-pongue arrebanhava uma infinidade de associados; e os estrondosos bailes e eventos sociais tratavam de manter a agremiação num patamar inalcançável para os rivais varzeanos.

Falei dos estrondosos eventos sociais: eram muitos, e variadíssimos. Todo mês tinha um grande acontecimento. Foi com base nessa regra que Ministrinho, notável diretor social do clube à época decidiu organizar um leilão de proporções jamais vistas na região. Chamou muita gente importante – neste quesito constavam pequenos industriais e comerciantes, papagaios de pirata e aspones de vereadores e deputados. Ofereceu coquetel antes do evento para essa gente importante e convidou um candidato a vereador que tinha o “dom da oratória”, e que nos anos que seguiriam estaria sempre presente no clube quando chegava a época de eleição, para ser o pregoeiro.

Era um domingo, sol à pino. O leilão seria realizado na sede do clube. Ministrinho já havia planejado tudo: iam leiloar utilidades domésticas, bola de futebol, uma camiseta do primeiro escrete rubro negro (a que foi usada pelo beque Radiador), brinquedos para crianças e outras coisas de caráter simplório, culminando com o pregão de um relógio italiano finíssimo.

O leilão fora idealizado por Ministrinho para sanar algumas dívidas que o clube tinha com um associado poderoso: o velho Mateus Sabatine, dono de comércios na região – que desde a fundação fazia parte da diretoria do clube. Um leilão, pensou o diretor social, reuniria o bairro inteiro; homens, mulheres, crianças, velhos, brancos e pretos. A única questão era cuidar para que as pessoas se sentissem à vontade e tascassem lances nos objetos à venda.

O pregoeiro, um fanfarrão que se candidatava pela primeira vez a vereador, começou a discursar aquela papagaiada toda, com parábolas cristãs e tudo mais. A essa altura, a “gente importante” tentava comer e beber o máximo que podia, pois os “comuns” já estavam entrando, mesmo sem convite, nos refrigerantes e quitutes.

Um leilão, teoricamente, era uma boa idéia de render um qualquer pros cofres do clube, não sendo um porém: a assistência, quase em sua totalidade, era dura, pobre, fodida. Os emergentes da classe média da Barra Funda, nessa época, eram ainda fedelhos filhos de operários, carroceiros, sapateiros, marceneiros e donos de bodegas, de modo que os utensílios domésticos foram vendidos a preço de banana.

A sede estava lotada, mas pouca gente tinha ímpetos de entrar na disputa. Quando veio a leilão a histórica camisa do Radiador, por exemplo, Ministrinho já tinha pensado numa tática para botar fogo no negócio. Combinara seu plano com outro diretor, o Plácido. A camisa foi exibida e Ministrinho tascou um lance; Plácido replicou. Os dois, tentando instigar a assistência, ficavam um dando lance mais alto que o outro, num furor danado. O problema é que ninguém entrou na onda e, quando a velha camisa do Radiador estava valendo quase o passe do Luizinho Polegar, o quase-vereador bateu o martelo. Ministrinho fez pose de magnata, subiu ao palco e recebeu a camisa... É evidente que não pagou.

O leilão acabou sendo um desastre. Ministrinho tentou não botar o relógio no prego, mas não teve jeito; o povo gritou pela peça, na esperança de dar um lance maroto e ninguém cobrir. Um lance aqui, outro ali, e nada de decolar. O homem do martelo, com o saco cheio da monotonia, após o famoso “dou-lhe uma, dou-lhe duas”, pareceu sofrer uma possessão. Num rompante deu um lance. A assistência vibrou como nunca!

Endemoniado, começou a fazer um discurso político falando, entre educação e saúde, dos milagres de Cristo. Ministrinho, tentando lançar mão da tática falida no caso da camisa do becão, deu um lance em cima do pregoeiro – que a essa altura já tinha virado pregador. Apontando para a platéia atônita, o pregador deu mais dois lances em cima de seu próprio lance, bateu o martelo três vezes e foi ovacionado. Pagou uma fortuna pelo relógio, dinheiro que deu para sanar a dívida do clube. No auge da loucura, citando Cristo, Kardec e o desapego material, o fanfarrão doou, ali mesmo, o relógio ao clube.

Poucos meses depois o malandro já era vereador, sendo votado unanimemente na região. Depois, durante o regime militar, angariou mais simpatizantes daquela classe média emergente, apoiada nos valores da fé e da família. E assim foi durante infindáveis anos, sempre dircursando com o “dom da oratória”, pautado nas parábolas bíblicas.

Felizmente para o Brasil (este sim maiúsculo), o cabra já não mama há anos. Credito única e exclusivamente ao “fator psicológico” do colarinho branco naquele leilão toda a sua carreira política, cheia de trambiques.

Ouvi dizer que até hoje o homem vai à missa todos os domingos.

1 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Bom texto Cabra...ótima memória.
Sr BV foi durante anos um ícone para a A.A.A..e para todos na região.

Abs,

AT

18 de dezembro de 2009 às 12:32  

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