4 de dez. de 2009

Casa de turfista

A cada dia a gente vai perdendo um pouco do que viveu, do que nos formou, dos costumes, das coisas que - mesmo não vivendo in actu exercito - vimos com os próprios olhos.

Dia desses passei pela Rua da Graça – lá em cima, sentido Três Rios – e avistei apenas dois velhinhos sentados no banco que fica bem em frente a uma casa nada suspeita. No tempo em que eu estudava num colégio de freiras ali pertinho, a quantidade de velhos (desde os sessentões até os caquéticos) neste ponto era um disparate; e todos muito alinhados. Eu, que ia todas as manhãs de sábado com meu avô pra esquina da Anhangüera com a Rua do Bosque encontrar seus amigos – e lá, sentados num banquinho, ficavam conversando, relembrando, fumando cigarro de palha e, principalmente, reclamando de dores de todos os tipos – pensava que os velhos da Rua da Graça eram muito mais ativos, já que estavam ali diariamente. Ou então poderia ser o ponto de encontro de alguma associação de moradores, amigos do bairro, coisas que apetecem la vecchiaia.

Era um inocente de quatro costados, eu. Tempos depois percebi que, em determinados momentos, os idosos não conversavam. Estacados todos na porta da casa, olhavam hipnotizados para uma televisão e um aparelhinho que trazia números e letras estranhos. Alguns deles, repentinamente, pulavam, vibravam. Outros xingavam e davam com a bengala no chão. Tomado pela curiosidade, comecei a desviar meu caminho – quando eu vinha pra casa –, e parar de longe pra desvendar o mistério. Um dia avistei meu antigo barbeiro, o Seu Mario – um negro elegante e cachaceiro – naquele mar de cabeças brancas e entrei no meio do bolo: corrida de cavalos!

Seu Mario me disse que todos aqueles homens, sem exceção, eram vigorosos apostadores e que alguns daqueles saudosistas ainda iam ao Jockey devidamente trajados – terno, gravata e chapéu - de vez em quando. Aliás, o esporte (está aí um jogo – dos mais devastadores – que é chamado de esporte), in loco, sempre foi um desfile de pose e ostentação. Os magnatas (industriais, políticos e playboys), fumando charutos caríssimos e acompanhados por damas com vestidos, chapéus e jóias milionários, ficavam separados dos plebeus – todos muito bem vestidos, é bom frisar – num espaço reservado à nata, tal qual um camarote.

Houve um tempo em que o turfe era popular. Meu avô – que perdeu o pouco que tinha apostando nos cavalos – dizia que as transmissões do Vicente Chieregatti tinham notória audiência na década de 50.

Fiquei e acompanhei o Seu Mario na empreitada na casa de jogo de turfe. Isso tem mais de dez anos. Era o terceiro páreo, passando ao vivo. Os números no placarzinho eletrônico traziam o histórico dos cavalos, quantas vitórias naquele percurso e distância, as condições do piso, e tudo que é informação que se pode imaginar. Seu Mario, que não era trouxa, apontou: “Está vendo ali? Só tem dois que podem ganhar. Vou de cabeça nesse aqui. Se ele chegar entre os três, pego uma merreca!”.

Quase todos os velhotes ficaram entre aqueles dois. Mas tinha um senhor que tinha a mania de apostar no azarão; de vez em quando ganhava e fazia pose de sabichão: “No meu tempo ganhei muito dinheiro, eu tinha um amigo jóquei que me dava as barbadas. Freqüentei até o prado da Mooca, antes da Cidade Jardim!”. A verdade – dizia meu avô com a propriedade de quem se danou – é que todo mundo perde: jogo é jogo!

Os cavalos se alinharam e, já na saída, um dos favoritos – não o do Seu Mario - abriu. Na reta oposta já tinha largado uns seis corpos de vantagem. Os velhos estáticos, torciam. Quando o primeiro entrou na última curva os que nele apostaram vibraram como num gol. Seu Mario acabou empatando no dinheiro; o seu chegou em terceiro. E o azarão... o azarão chegou por último.

Dia desses – como eu dizia – passei lá em frente e só vi dois velhinhos. A casa fechou e, pelo que parece, daquela turma toda, só sobraram os dois mesmo.

Naquele dia, antes de partir, Seu Mario me apresentou ao dono da casa, um senhor de cara fechada que não torcia, apenas fazia comentários sobre os páreos. Questionei-o: “- Em qual cavalo apostou?”. O velho, esboçando um sorriso, me perguntou se eu conhecia a Elza Soares. Fiz com a cabeça que sim. E ele: “Tem uma música que ela gravou que diz que em casa de turfista o cavalo é de pau!”.

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