Enquanto o chope não vinha, bati um fio para Antonio Carlos Apolinário, o
Zulu. Era uma saidera que tomávamos eu, Milena, Mariane e meu irmão
Bruno Ribeiro, que neste momento está comendo churrasco de rena na terra do Papai Noel. A Finlândia, segundo o próprio, é o último país do mundo; se o planeta fosse uma linha de trem, seria a última estação. Estávamos no Bar do Getúlio, na Rua do Catete. Foi num sábado, há dois meses, depois de um grande dia na Ilha de Paquetá, junto dos tijucanos
Simas e
Felipinho.
O chope – horrível, na minha opinião – foi o único que tomamos. Dali partimos eu e o Bruno para uma bodega sem-vergonha; nossas mulheres foram para o Riazor, onde nos hospedamos. Já deixo claro que o hotel, que na minha opinião é honesto, não é nenhum cinco estrelas. Mas já foi descartado pela Milena nas nossas próximas viagens ao Rio. Ela viu coisas que, sinceramente, não percebi. Horrorizada, viu frestas enormes no forro, buracos no chão, cortinas emboloradas e até uma lacraia no banheiro. Como ainda creio que há exagero por parte dela, da próxima vez farei – devidamente embriagado - uma inspeção minuciosa no quarto.
No caminho para o boteco salafrário o Bruno me agarrou o braço: “Que beleza você ligando para Zulu. Que beleza!”. A emoção batia-nos violentamente após um dia inteiro de grande performance etílica. Confessei a ele – e o faço agora publicamente – que, vira e mexe, eu ligo para o meu finado amigo. Zulu, obviamente, não atende. Nada de mais, já que jamais atendeu a qualquer telefonema. Teve um celular que nunca teve a bateria carregada e, em casa, não tirava do gancho nem sob decreto.
Eu fazia apelos incansáveis: “Porra. Você nunca me atende. Já te deixei cinqüenta recados!”. Ácido e direto, o lorde respondia-me: “E você, chato pra cacete, insiste!”. Por isso que ainda ligo pro crioulo; toca, toca, toca e cai, como sempre foi. “Me deixa quieto; quando quiser falar comigo sabe onde me encontrar”. Toda vez que dobro a Dobrada, tenho arrancos. Zulu paira sobre aquele pedaço.
Numa manhã de Fevereiro o Zé Augusto me ligou: “Alô, bróder! Hoje eu to lá embaixo. É aniversário do Peninha. Vamos fazer churrasco, jogar tranca e bater um samba!”. Os sábados no Bar do Mauro são imbatíveis. Sol a pino, meio dia, entrei na Rua. Pra chegar ao Bar do Mauro é preciso passar antes pelo Bar do Zulu; o último dos quatro bares que o negrão tocou em sua vida, no ano passado.
Respiração difícil, batedeira, suador; são os sintomas me aplacam subitamente toda vez que entro com o carro na Rua. Passei em frente ao Bar do Zulu, olhei e brequei. A fachada, que era amarela estava preta, inclusive o portão de ferro, fechado desde sua morte no Natal do ano passado. Fiquei feliz com a homenagem e, já segurando as lágrimas, fui mais à frente até o Mauro, onde a refrega devia estar boa.
Encostei e percebi todo mundo estranho, olhares absortos e poucas palavras; Galo e Zé Augusto choravam. Contaram-me que, na calada da noite, aconteceu um milagre. Ninguém viu - nem os vizinhos, nem a molecada da rua, nem os jovens que bebem garrafões de vinho todas as madrugadas de sexta para sábado na calçada em frente ao Mauro – nada. Não há indício algum de que alguém tenha pintado; se não foi nenhum amigo que expressou tal desolação, não poderia ser um desavisado qualquer. O proprietário do estabelecimento, cheio de superstições, afirmou que não se atreverá a pintar o amarelo novamente. Chorando abraçado ao velho Grapete, pedi um “dedal” pro Mauro. E liguei pra o crioulo. Deixei um recado avisando que a dor unânime de sua morte e sua ausência brutal e dolorida transcenderam as pobres limitações humanas. O escândalo, o choro e o desespero de toda uma gente sua não foram suficientes.
Ao homem da Rua o que lhe é de direito: A Rua Dobrada, pessoalmente, veste luto!