22 de ago. de 2008

Anhangüera dá samba XIV

"Eu para sempre hei de te amar, tirando em primeiro, segundo ou em qualquer lugar." Um lema autêntico, apaixonado, despretensioso e, acima de tudo, o reverso do que se vê há anos em Escolas de Samba. Os velhos não só cantam o verso; eles sentem tudo o que a simples - nem tanto! - frase carrega. "Estou falando é de você, minha querida Nenê."

A homenagem à Nenê de Vila Matilde e à Seu Nenê, que completou 87 anos um dia antes do Anhangüera dá Samba! foi certeira, com data marcada há tempos, não sei por quem. Infelizmente o velho baluarte não pôde comparecer. Enviou, porém, toda a nata que dá seqüencia e que honra as cores azul e branca da turma que, na década de 40, fazia o samba no Largo do Peixe.


A Velha Guarda Musical, composta por dois homens e sete senhoras, entoou, durante duas horas, sambas tão primososos quanto ignotos. Sambas cantados pela comunidade, pérolas pouquíssimo exploradas, restritas à gente da Escola, capazes de emocionar uma pedra. Marco Antonio, o comandante, é simplesmente um monstro. Dono de um timbre embriagador e uma divisão rara, tem um carisma assustador. Ao lado das pastoras, todas velhas, algumas com mais de 80, a apresentação torna-se algo divino, capaz de hipnotizar uma massa que chora de emoção. Vi, com olhos marejados, muito marmanjo chorando de soluçar. Um grande amigo, de opinião insuspeitíssima, credenciado por conhecer do riscado há "milianos" cravou, chorando sem parar que "Esse homem (o Marco Antonio) é o Monarco de São Paulo".


É preciso agradecer ao Kico Nogueira e ao grande Ricardo Zanotta, crias da zona leste e dos mestres da Nenê. Os dois malandros foram os responsáveis pela beleza que se deu. Fizeram todo o meio campo. Ao final da apresentação, pela convocação do Kico, o Betinho, filho de Seu Nenê e presidente da Escola, largou o tamborim e, em nome de sua comunidade e do Velho, com extrema generosidade, apresentou os integrantes, contou histórias e disse estar feliz fazendo samba na Barra Funda. Nós, humildemente, é que ficamos envenenados. Posso afirmar que durante duas horas na vida - embora longe de ser um nobre - tive sangue azul. Cliquem no play pra sentir o drama.

Nosso próximo convidado é o grande intérprete Tião Preto. Com notável vivência na boemia paulistana e nos sambas mais vagabundos, Tião é um dos poucos ainda na ativa que marcaram época nos saudosos Catedral do Samba e Jogral. Foi dono de vários bares, entre eles o Café Paris e famoso Sem Saída, ponto de encontro de bambas das cordas e dos couros, onde a animação do samba dividia espaço com os lamentos seresteiros. Possuidor de um repertório inesgotável e de uma cadência sutil, não há quem não se encante ao ouví-lo. É coisa fina.

Dessa vez vou ficar devendo um áudio do Tião Preto. É melhor ao vivo.

PS: Novidade boa: antes do samba, a partir das 19h, terá chorinho com o Grupo Choro em Linha de Passe. As atividades começam, portanto, mais cedo. Até sexta!

15 de ago. de 2008

O pé de valsa e o pugilista

Parte II - Capoeira, Bagunça e o desfecho


Carlinhos já tinha feito coisa similar com outros, sempre com homens que julgava serem respeitados, independendo se o fulano é de briga, ou se quer briga; coisa de maluco. Se garantia nas mumunhas do boxe, e era bom de pancada. É o tipo que, pra não ficar por baixo, cisma que vai dar um cacete “naquele cara que está todo prosa”. O Paulinho fazia sucesso com o mulherio. Pra Carlinhos ficar no mesmo nível tinha que bater; e ameaçou até conseguir a briga. Mas Paulinho Pernalonga não era nenhum trouxa, muito pelo contrário. Fora criado na tiririca, no samba, na rua. Era grande amigo de Hélio Bagunça, andavam juntos – e o Carlinhos só mexeu com ele porque também conhecia o Bagunça, embora não fossem camaradas. Por viver na tiririca ficou bom de pernada. E sua anatomia ajudava, de longe ele podia acertar o pé no inimigo.

Naquela época o Hélio Bagunça era o chefe de uma ala extinta na Escola, a ala da capoeira. A verde e branco saia na São João com essa ala, os capoeiristas voando, chutando, pulando. Num desses carnavais, inclusive, Hélio foi protagonista de uma cena que ficou famosa. A justa armou um esquema para pegá-lo, não haveria jeito de escapar. Quando foram chegando perto, amocambados, o Bagunça percebeu. Com o desfile rolando, o malandro tacou a mão no chão, deu duas piruetas, pulou por cima de três foliões e da corda – coisa de dois, três metros - e sumiu. Os “homi” nunca o pegaram.

A ala fazia sucesso e muito neguinho queria entrar. Hélio percebeu aí um filão, a chance de ganhar uns trocos. Abriu uma escola de capoeira junto com o Pernalonga, ali perto da faculdade Osvaldo Cruz. Em pouco tempo a escola tinha um monte de alunos, os pretos da escola de samba e os brancos da faculdade. Só tinha um problema: nem Hélio nem Paulinho eram capoeiristas. Eles pulavam, chutavam, davam rasteira e faziam todo tipo de acrobacia, mas nem imaginavam o que era um martelo, um morcego ou ponta de faca. Não tinham técnica nenhuma e, por isso, Hélio resolveu adotar uma didática nada convencional: dar porrada nos alunos. Paulinho estranhou, no começo não gostou, mas acabou cedendo aos argumentos do Bagunça de que “Porra, nós aprendemos apanhando na rua, então nossos alunos vão aprender é apanhando!”. As aulas eram grandiosos quebra paus, com muita gente voltando avariada pra casa. A tresloucada academia de capoeira, que pelo menos não admitia mulheres, durou cerca de um mês.

Na fatídica noite em que Carlinhos arrebentaria Paulinho, o velho Inocêncio estava no salão. Eram duas em ponto, horário da inspeção do velho. Pernalonga, não agüentando mais as provocações, ponderou que brigassem, mas lá fora, na rua, porque lá dentro estava o velho. Paulinho, ainda dentro do salão, disse a Carlinhos que brigaria de igual para igual, na mão, do jeito do Carlinhos, e finalizou a negociação assim: “Se eu apanhar, brigando na mão, eu te mato na pernada! Vai indo pra fora que eu já vou”. E foram para a rua, os dois. Foram sós, sem alarde, sem assistência, sem aposta, sem glórias para o vencedor. Não deu quinze minutos e o Pernalonga adentra o salão com a mesma ginga, tranqüilamente empunhando uma cerveja. Quem sabia que ele fora brigar perguntou o que houve. Paulinho disse que Carlinhos não estava na rua, que havia ido embora. Vai entender!

Era o bom malandro, o Paulinho. Dois dias depois, Carlinhos apareceu na área de óculos escuros e para os mais chegados confessou que apanhou, e na mão. Se tivesse sido na pernada estaria morto, conforme a promessa de Paulinho. Na intenção de se vingar publicamente de uma surra que levara na surdina, Carlinhos planejou revidar na pernada, o ponto forte do Paulinho. Pediu para quem ensiná-lo a arte da ginga preta? O Bagunça. Hélio Bagunça, que soube da história à boca pequena e que não aceitava vacilação, aceitou. Pediu um valor alto, Carlinhos juntou suas economias e pagou. Bagunça, compadre de Paulinho Pernalonga, ensinou capoeira ao Carlinhos ao seu modo, numa única aula. O pugilista quase que ficou aleijado...

(Final)

13 de ago. de 2008

O pé de valsa e o pugilista

Parte I - O desafio no São Paulo Chic


No final da década de 60 e começo dos anos 70 o couro comia na Rua Brigadeiro Galvão; sob o comando do pessoal da Camisa Verde e Branco e a bênção de Seu Inocêncio Mulata, o São Paulo Chic marcou época na cidade. Ali começaram sambistas do quilate de Mario Luiz e Nelson Primo. Era um salão de samba, ponto de encontro de vagabundos de vários matizes: músicos, batuqueiros, jogadores de futebol, vadios e muitas, muitas cabrochas. As noites de sexta feira eram concorridas, a casa ficava entupida. O velho Inocêncio, que morava ali perto, não era de ficar, não. Chegava umas dez da noite, no começo, pra checar os preparativos. Dava uma panorâmica e voltava pra casa. Depois, lá pelas duas da madruga, pintava na área de novo. De canto ficava sacando o movimento. Tinha que estar tudo sob controle; na casa da gente não pode ter bagunça senão dá uma sujada no nome. No caso, o nome da verde e branco. E o velho voltava mais uma vez pra casa. De manhãzinha, com o baile encerrado, voltava pra inspecionar o salão; se nada estava quebrado era sinal de que tudo transcorrera como manda a boa malandragem. Era essa a rotina nos bailes. No começo e no final Seu Inocêncio na área, vendo a tudo e a todos. E, num espaço de tempo de quinze minutos, perto das duas horas, também. Era bom neguinho não vacilar, senão o velho catava pelo braço e botava pra correr. E ai de quem contrariasse.

Número baixo era respeitado pelos vagais. E era assim que funcionava com Seu Inocêncio Mulata; em torno do homem uma mística. Lendas e mais lendas creditavam-lhe autoridade máxima, quase divina. Diziam que era um grande bastedor, daquela turma que protegia o estandarte da escola. Andava, no desfile, segurando o bastão. Nego estranho chegava perto, era espetado com o bastão no baço. Até os maiores malandros, entre eles Hélio Bagunça, que desde muito jovem já era um dos mais temidos, abaixavam a cabeça. Era o velho botar os pés pra dentro do salão que o ambiente ficava manso, manso. “Olha o Seu Inocêncio aí”, um vagal falava pro outro, cutucando. Era o devido respeito por quem, segundo Nei Lopes, teve a coragem de ser pioneiro e o destino de chegar primeiro.

Dentro do salão era aquele sambão, e onde tem dançarino do bom tem mulher ao redor. Era tudo no nome de Paulinho. Como dançava! Neguinho esguio, canela fina, bem alto. Não teve jeito, virou Paulinho Pernalonga. Toda sexta feira estava lá com, no mínimo, três caboclinhas revezando a dança. Duas parceiras constantes, a Zenilda acompanhava bem no liso, na classe. O corpo esbelto não omitia a elegância. A outra era a Creuza, que era pro puladinho. Paulinho a jogava pra cima, girava, rodopiava a nega. E a nega acabou ganhando o apelido de Mola. Creuza Mola e Zenilda dividiam o Pernalonga com diplomacia, tudo na santa paz; elas sabiam que o ponto fraco de cada era o forte da outra, e assim corria o barco. Quando outras mulatas se aproximavam é que as duas se sentiam preteridas e davam umas duras nas lambisgóias atrevidas. Teve barraco algumas vezes, embora tudo sendo controlado pelo Paulinho Pernalonga, o neguinho que dançava muito. Ainda por cima era tido como galã, por isso em todo baile reservava uma mesa de cinco, seis lugares, mesa que só sentava mulher pra dançar com ele. Era enjoado, o pretinho.

Como nem tudo são flores, Paulinho acabou despertando ciúme em Carlinhos, que fazia parte da harmonia do Camisa e era assíduo freqüentador do SP Chic. Carlinhos era boxer dos bons e já tinha nocauteado um monte participando de preliminares no Baby Barione. Era feio, mas feio demais. Parecia ter sido esculpido à machadadas. No baile acabava não dançando com mulher nenhuma. Enquanto isso Paulinho gastava a sola do bicolor. Não foi propriamente ciúme que Carlinhos sentiu. Há gente que, na ânsia por moral, quer desbancar alguém de respeito, e de graça. Foi isso. O Pernalonga era um tremendo boa praça, não mexia com ninguém. Mas, para Carlinhos, dar uma surra no Paulinho valeria uma honra ao mérito; tremenda asneira. Começou a humilhar Paulinho Pernalonga publicamente, advertindo que quebraria sua cara quando bem entendesse. O Paulinho, nem ligando, só dizia pro Carlinhos parar com isso, que isso não levaria a nada. Mas a coisa foi pegando corpo e o Carlinhos foi odiando o Paulinho, e o Paulinho foi ficando com o saco cheio. Até o dia em que o pugilista afastou a dama que dançava com o pé-de-valsa, agarrou-o pela gola da camisa e bradou que “Eu quebro a sua cara é hoje!”.

(Continua)

8 de ago. de 2008

Um bar de maloqueiros

Ainda ontem concluí novamente que ando cada vez mais impaciente. O palco da minha milésima constatação era a mesa assentada na calçada da Rua Anhangüera, no portentoso Bar do Sivaldo. Sinval para os íntimos. À mesa, Marinho e Ronaldo bebiam cerveja quando me juntei; depois chegaram Gilmar, Bonitão e Domé. Então a Brahma ganhou companhia de Domecq, São Francisco e Cynar, respectivamente. Os malandros, todos cabeça-branca, falavam de histórias particulares, de futebol, vadiagem, samba e mulheres, assuntos de nobre valor. Coisa comum em bar.

O salão de mulherices da D. Leide, mulher do Sinval, ao lado, ainda fervia de freguesas. Uma repuxava o cabelo, outra dava um tapa no pé gritando de dor - unha encravada é osso - e mais duas esperavam sua vez chegar. Como de praxe, as noras da dona do salão lá estavam com as netas. As irmãs da Leide e algumas assíduas amigas também, com a criançada toda à tiracolo. O mulherio todo junto no minúsculo salão. Um falatório terrível. A parede que separa o salão do bar chega a ferver, assim como as orelhas de alguns bêbados que ali, entre uma ampola e outra, esperam as mulheres se aprontarem.

Um destes que esperavam a esposa era Cidão. Mora em frente ao Sinval e tem um martelinho de ouro na Rua Cruzeiro. Cidão se locomove, a pé, coisa de 10, 20 metros por dia; não mais que isso. O raio de sua barriga – seguramente a maior que já vi - é pra mais de metro. Parece que tinham um jantar na casa de uma amiga de sua esposa que, ao sair emperiquitada do salão, viu o maridão, que estava conversando conosco, com a cara já meio cheia. Chegou, botou a mão no ombro do marido e o advertiu com reprovação que não mais a esperasse bebendo. Cidão levantou-se - suas camisas mal cobrem o umbigo –, olhou-nos com ar convalescente e se foi. A cena, corriqueira, provocou comentários óbvios da relação homem-mulher e da saudade dos tempos de não-compromisso. Nada anormal, coisa comum.

Dentro do bar, gritando mais alto que as mulheres, alguns homens jogavam dominó; outros caxeta. No bar do Sinval é assim; em noite quente quem quer colóquio fica nas mesas no passeio. Dentro do bar tem jogo todo dia; de noite e de dia. Quando a mesa é de caxeta, o dinheiro de cada um é guardado no bolso de alguém insuspeito, geralmente o mais velho, mas tem que ter fio branco. A marcação é na moeda de cinco centavos. Sete delas sobre a mesa; jogo rápido. Cinco coringas (o quinto é a “pulga”, carta igual a vira), poucas palavras e algumas caras sisudas. Sem sorte, se perde cinqüenta pratas em coisa de vinte minutos. Às vezes eu me atrevia, mas ali é um mais rato que o outro. Não entro mais não. E também não sapeio que é pra não ser chamado de zica. Em mesa que a bufunfa corre, se eu não estou dentro, ó, quem me viu mentiu.

Eu gosto de ver o jogo de dominó. Mas só lá, no Bar do Sinval. O dominó eu não me atrevo a jogar; não tenho a manha de contar as pedras. O Jair, por exemplo, chamado de professor, sabe o que cada um dos outros três têm nas mãos com duas, três pedras ainda cada um. Coisa impressionante! Eu fico ali tentando sacar a malícia do troço, mas não me vai. O parceiro mais constante do Jair é o Kico – ele mesmo, o cavaquinista dos Inimigos do Batente. Kico, embora jogue muito bem, perto do Jair é um menino, um aprendiz. A relação entre dois é essa, com o Jair dando conselhos pro negão, dizendo: “Kiquinho, se o Gaúcho jogou essa é porque isso, isso e aquilo”. Kico aprende, não sem tentar arranjar alguma justificativa para as raras falhas que comete, coisa que o Jair, um mestre, não faz.

Se a dupla Jair e Kico funciona bem, o mesmo se pode dizer de Sinval e Gaúcho, com uma ressalva; a relação é outra. Sinval é o dono do bar; sem papas na língua, impaciente, mal humorado e mandão. Gaúcho é um sobrevivente, um submisso. Sua família é um vira-latas e sua casa é uma Kombi abandonada quase em frente ao bar. Aliás, sua casa é o bar, já que a Kombi só serve pra não dormir embaixo do Viaduto Rio Branco. O dinheiro vem de um bico aqui outro ali, da caxeta ou da maquininha de azar da padaria Ceres. Quando não vem, é o Sinval que dá, assim como roupas e sapatos, tudo em troca de pequenos favores; uma compra aqui, um serviço de banco ali. O Gaúcho, do alto dos seus 60, praticamente foi adotado pelo Sinval, daí as broncas, os sacodes que o Sinval sapeca quando o Gaúcho erra na hora de bater a pedra na mesa. E o Gaúcho, quando acerta, solta seu bordão: “É do Curíntia!”. Outro dia, numa noite de sorte da dupla, depois de ganharem umas cinco “negas”, o Gaúcho, chapado, emenda: “Ê Sinval, acho que não sou só eu que não estou trepando!”. O clássico entre Jair-Kico e Sinval-Gaúcho já tem uns dois anos. Dizem estar pau a pau, um perde-ganha sem fim. Nunca sai do empate e, por isso, jamais acabará.

Na mesa da calçada um zé ruela sentou-se conosco. O sujeito é da Barra Funda, uns 40 anos, camiseta colada, perfume e um carro importado combinam com a grossa corrente prateada no pescoço. Marinho dizia que o Paulinho do Cavaco voltará dos EUA, onde está trabalhando com a filha, daqui 15 dias. Voltará pra visitar os amigos. Começou a discussão sobre visto de trabalho e essas burocracias que não entendo picas. Mas a conversa deu uma guinada quando o tal disse que tem mais de 40 amigos na “américa”, que lá até um caminhoneiro ganha tufos, que um amigo tem uma Silverado na garagem, três tvs de élecedê e a porra toda e completou: “Não tem que voltar. Lá tem de tudo, lá é que é vida boa. Voltar pra essa bosta?”. Os coroas ficaram atônitos como eu, ninguém respondeu, ninguém concordou; nada.

Eu tinha que aproveitar o fato de o Bonitão ter conhecido toda a Europa ano passado sendo dos maiores ignorantes do Brasil, ponteiro de bicho há mais de vinte anos, semi-analfabeto e duro de marré-de-si. Bonitão conheceu Balbina num samba, uma distinta senhora, enfermeira renomada das Clínicas. Assim, de cara, ela se apaixonou pelo malandro. Depois de um ano de namoro, e depois de levá-lo pra conhecer Natal, Recife, Salvador e São Luis, tudo pago, Balbina foi trabalhar num hospital de Milão. Está lá há um ano e meio. Bonitão, é claro, foi pra lá. Tudo pago. Itália, Espanha e Portugal. Bonitão voltou se apresentando, de pura fanfarronice, como Doutor Roberto. Tremendo sarrista, o Bonitão.

O zé ruela ainda bradava a beleza que é o primeiro mundo americano sem nunca ter ido além de Sorocaba, onde tem uma chácara. E mesmo que conhecesse tudo não justificaria o mal proceder. Sem me agüentar – qualquer um da minha família teria mandado o mala se foder -, gentilmente pedi ao Bonitão que, conhecendo toda a Europa, dissesse qual é o melhor lugar do mundo. O mais belo, mais agradável, mais justo. Gilmar começou a rir; Domé ajeitou a cadeira e Bonitão subiu: “Não há nenhum lugar melhor que a Barra Funda. Nem no Brasil, nem no resto do mundo!”. O zé, embasbacado e sem jeito, mudou de assunto. Disse que conhecera um bar em Moema; que aquilo sim é que era bar. Olhando pra dentro do bar do Sinval, cravou cheio de pose “Imagina que se joga dominó num bar decente... Lá não entram maloqueiros.”. Dessa vez eu não disse nada. Pedi licença e sentei-me ao lado do Jair pra acompanhar o animado embate de dominó. Pouco depois, Domé, Gilmar, Marinho e Bonitão estavam no balcão.

Eu amo a minha terra. Eu vou a bares que “maloqueiros” possam entrar. Eu tenho nojo de Silverado e de corrente prateada de playboy.
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