27 de nov. de 2008

Anhangüera dá Samba XVII

Foi o Julio Vellozo - que só perde na cuíca para o Osvaldinho - quem cantou a bola, há mais ou menos um ano atrás. “Temos que convidar o Toninho Nascimento para prestar homenagem à dupla Toninho-Romildo, uma das maiores de todos os tempos”. Através do Noca da Portela conseguimos trazê-lo. Noca, que foi nosso homenageado na festa de um ano, alertou-nos que “Toninho é tímido, então vou junto”.

O terreiro estava iluminado. Chegam, de surpresa, o violonista e produtor Marquinho Bailão acompanhado de D. Inah, que um dia antes lotara o Sesc Pompéia para o lançamento de seu novo disco, com músicas de Eduardo Gudin. Deu uma canja que arrebatou o salão inteiro. Fui, então, buscar os convidados no hotel. Noca, no caminho, vinha falando coisas do Anhangüera para o Toninho, desfiando sua intimidade com o lugar. Ao entrarmos, Noca ia cumprimentando, gesticulando, agradecendo as continências, parecia o presidente. Toninho, enquanto isso, andava rapidamente, se infiltrando na multidão, parecendo não querer ser reverenciado. Noca, praticamente um associado do clube e integrante dos Inimigos do Batente, foi pro balcão e pediu o que ele chama de “chá de macaco”. Toninho, que me contou que bebia – ele e o Romildo – até chumbo derretido, ficou na água; rompeu há quatro anos com a “marvada”.



Ao chegarem, os dois, perto da roda de samba, Julio Vellozo avistou Toninho e deu de chorar. Szegeri puxou uma música sua, mas a canção não era do homem. Errou a música, de tanta felicidade. Depois entoou Cinzas da Solidão, e Toninho me confidenciou: “Nem me lembrava dessa!”. O povo, como que num abraço na roda do samba, fechou o cerco para ver os dois. Daí pra frente o que se viu foi um Noca, naturalmente, à vontade e um Toninho se soltando a cada música, encantado com a massa que explodia cantando suas pérolas. No vídeo abaixo, espiem. Neste clima que eles cantaram até o fim da noite, que foram no Sábado ao Ó do Borogodó e que voltaram pra casa já querendo retornar. E já adianto que este dia não demorará. Salve Toninho, salve Noca da Portela, dois gigantes do samba.

Para essa sexta, amanhã, o convidado especial dos Inimigos do Batente é João Borba, grande cantor e compositor da paulicéia. Dotado de uma voz poderosa e um estilo único, Borba fez história tanto nas quadras de escolas de samba como nos salões de gafieira. Foi também integrante do lendário grupo de teatro Solano Trindade. Com a voz carregada de ancestralidade, Borba canta o "negro" como poucos. Gravou, em 2006, um espetáculo com músicas de Jorge Costa. Atualmente, além de se apresentar constantemente em casas de show e bares tradicionais da cidade, faz parte da Velha Guarda da Escola de Samba Pérola Negra. Será, mais uma vez, uma grande noite. Deixo um áudio de um minuto como aperitivo; Borba cantando Tempo, de Julio Valverde e Alexandre Barbosa.

Até amanhã!

21 de nov. de 2008

Praga genética - Parte II

Torcer para o time que o pai torce é natural, eu diria até o correto – excluindo o são paulo fashion clube, um time obtuso. Foi o que os filhos do meu avô fizeram. Até o Wagner, que vergou a camisa do Palmeiras desde moleque, era corinthiano pra cacete. Meu pai, no entanto, seguiu os passos de seu pai às avessas; virou palmeirense.

Mas a praga que me pegou, e que eu revelei na primeira parte, também se manifestou no meu pai. A primeira vez foi na invasão da fiel de 76, no Maracanã. Saiu uma turma do Anhangüera e meu pai estava junto. Podia ser até pela farra, mas estava lá. Um ano depois, quando o Basílio fez o gol contra a Ponte tirando-nos da infinita fila de 23 anos, lá estava meu pai no Morumbi com seus irmãos e amigos. Dessa vez, no apito final, enfiaram-lhe a camisa alvinegra; a preta com listras brancas, que depois ficou pra mim. Em vez de arrancar o manto, rasgá-lo, meu pai não impediu porque... estava feliz! O título do Corinthians deixou-o efusivo. Bebeu bem a noite inteira, na comemoração.

Mimi, criado num lar de alvinegros, teve os tios e primos todos palmeirenses, como ele, e os irmãos e sobrinhos todos corinthianos. Comigo foi a mesma coisa, mas ao inverso. Tenho meus tios e primos corinthianos e os irmãos e os vindouros sobrinhos palmeirenses.

Até meus cinco anos, o uniforme do Palmeiras era minha “roupa de festa”, meu pijama, meu uniforme da escolinha e minha “roupa de bater” no Anhangüera. Meu pai levava-nos, Angelo e eu, a todos os jogos do Palmeiras. Um dia – e isso eu devo ter apagado à força da memória, quem conta a história é o Joel – meu pai, já meio encharcado num domingo no Anhangüera, discutia sobre futebol com os amigos. No intuito de exibir sua influência, seu moral aos camaradas, chamou-nos, Angelo e eu, provavelmente com seu inconfundível e ensurdecedor assovio. Era assim que ele nos chamava quando estávamos jogando bola na rua, ou na quadra lá nos fundos do Anhangüera. Segundo o Joel e outras testemunhas, apresentamo-nos eu e meu gêmeo; tínhamos uns quatro anos, bem pivetes. Fez-se o silêncio, e meu pai, virando o copo de cerveja goela abaixo, ordenou:

- Angelo, diga a todos para qual time você torce.
- Palmeiras!

Orgulhoso, continuou:

- E você, Arthur?
- Corinthians!

Este desacato custou-me uma bolacha na orelha. Bolacha que decretaria, para sempre, meu corinthianismo. Foi a única vez que apanhei de meu pai. Logicamente, o velho se arrependeu instantaneamente e, dizem, até chorou compungido.

Depois tentou, sem sucesso, me subornar de todas as maneiras possíveis, me ameaçava de castigo e perguntava a Deus por que aquilo o acometera; passou a levar apenas meu irmão aos jogos do Palmeiras e eu, nada. Fui crescendo pegando raiva do Palmeiras e, coincidentemente, fui pegando também uma fase de terrível freguesia para os “porcos”. Na minha adolescência, o Coringão servia de saco de pancadas deles. Ô época braba!

O Velho Tirone e a D. Antonia moravam conosco, na casa do filho mais novo. E uma coisa eu não conseguia entender, nem perdoar: apesar de meu avô ser corinthiano, e muito, desde 1925, ele torcia pelo Palmeiras. Ele queria o bem do Palmeiras. Eu, perplexo: “mas como, vô?”, e ele, “Meus irmãos e meus sobrinhos, meu filho que é teu pai, meus dois netos que são teus irmãos, são palmeirenses...”. O Velho só torcia contra o Palmeiras quando o jogo era contra o Corinthians. De resto, parecia um palmeirense quando o verde jogava.

Não torço para o Palmeiras ganhar jogo algum, absolutamente. Mas cada vez menos tenho torcido para que eles se ferrem de verde e branco, culminando com o último domingo em que pensei na tristeza que meu pai e meus irmãos sentiram após essa derrota e na alegria que ficariam se o time deles levasse o caneco este ano.

De tudo isso, tenho uma certeza. A de que um predestinado filho meu será palmeirense, contrariando a mim como contrariei meu pai, e como ele contrapôs meu avô, como este afrontou sua família. Se eu tiver dez filhos, um haverá de ser palmeirense; e se eu tiver um único filho, então há de ser este. E não há nada que eu poderei fazer para impedir esta "força maior".

(Final)

19 de nov. de 2008

Praga genética - Parte I

No último domingo, como sempre, joguei meu futebol no sagrado gramado do Anhangüera e depois almocei em família o melhor bolinho de mandioca do mundo, o da minha mãe. A tarde jogou o Palmeiras. Durante o jogo, estava eu deglutindo umas costelas de porco, umas picanhas, muitas cervejas e jogando conversa fora com Seu Zé, o aniversariante, debaixo das frondosas árvores de todos os tipos na casa nova dos queridos Szegeri, Stefânia e Rosa. Todos os tipos, não. Falta, principalmente para as crianças, uma árvore que já está sendo providenciada pelo meu bom amigo. A jabuticabeira. A infância sem uma jabuticabeira não é completa. Uma criança precisa, de vez em quando, ver o mundo lá embaixo se fartando de jabuticaba.

Seu Zé faz parte de um seleto grupo - ao lado de Zulu, Cirilo e Almeida - de homens honrados, porém são-paulinos. Fico pelejando, tentando entender o motivo que fez com que houvesse tal desvio. Enfim, acabo não levando isso em conta e deixando pra lá. Estávamos na casa de um palmeirense fanático. Zé, a cada quinze minutos ia à sala onde os alviverdes assistiam ao jogo e voltava atualizando o resultado. Toda vez que vinha, empunhando seu copo-balde de vodca com Dolly-Coca, o placar era outro, sempre jogando o Palmeiras na vala, um dois três quatro cinco. O Flamengo foi quem deu o tiro de misericórdia. Destruiu, liquidou, arrasou, enterrou o sonho da porcada de um já improvável título.

Estou contando tudo isso pra fazer, de público, uma confissão aterrorizante. Fiquei ligeiramente triste com a derrocada da porcada; e não foi a primeira vez que senti essa coisa pavorosa. Sei que este estranho sentimento pode soar inacreditável para a maioria, inaceitável para outros tantos e até leviano para uns, mas afirmo: sou vítima de uma praga genética que sempre temi que a mim me pegasse e que poderia até tardar – não tardou -, mas jamais falharia. Um fardo que carrego desde meu nascimento, que não demoraria a se manifestar. Como meu avô e meu pai, fui o que seguiu a uma regra oculta; uma imposição, eu diria, extraordinária.

Meu avô, Osvaldo Tirone, meu personagem mais constante por aqui, ao lado do Zulu, nasceu em 18, na Rua do Bosque, Barra Funda. O quinto dos nove filhos de Nicola e Ana, italianos, e vivendo em um dos maiores redutos italianos da cidade, o velho deu um bico na obviedade. Seus irmãos, no entanto, só souberam ser ele o único irmão corinthiano no dia da histórica goleada de 33. Palestra Itália 8, Corinthians zero. Naquele dia, Baldo – em casa era chamado assim, com sotaque carregado – e Antonio, seu primeiro irmão mais velho, com 15 e 16 respectivamente, assistiram a peleja na arquibancada de madeira do Parque Antártica. Pularam o muro, como sempre faziam, e viram Romeu Pellicciari e Luis Imparato imporem a mais humilhante goleada do clássico. Baldo chorou, revelando seu sangue alvinegro, ao ver o grande goleiro Onça indo buscar a bola na rede tantas vezes.

A próxima geração veio chegando. Cada um de seus oito irmãos tendo vários filhos, todos palestrinos. O Antonio e o Roque (o segundo dos nove) viraram diretores do Palestra e toda a sobrinhada que nascia ganhava da tia Mariquinha o fardamento completo do alviverde. Foi o que aconteceu com meu pai.

Vladimir Tirone, meu pai, nascido em 55, apelidado ainda bebê de Mimi, sofreu fortíssimo assédio alviverde dos tios, tias e primos. Quarto e último filho do Velho Tirone, era muito mais novo que os irmãos. Wande era de 41, Wagner de 45, e Walquíria de 49. Os irmãos mais velhos, os dois boleiros. Wande, considerado até hoje o melhor jogador já visto pelos campos da região; Wagner, um tremendo atleta. Treinava todo dia. No corredor de fora da casa, meu pai com cinco, seis anos o via correndo de lá pra cá. Pendurava uma bola bem no alto, dava distância, corria e pulava pra cabecear. Wagner, legítimo Tirone, filho do primo do poderoso diretor de esportes Arnaldo, acabou jogando todas as categorias de base no Palmeiras, chegando ao profissional, na reserva de Ferrari. Ficou alguns jogos no banco e logo encerrou a carreira após uma briga com o técnico Mario Travalini. O futebol não dava mais dinheiro que o trabalho. Durante seus dois anos no juvenil, porém, meu pai era o mascote do time, na época em que os times tinham um, apenas um mascote. A cara do moleque de 6 anos estampou, nos anos de 61 e 62, o finado A Gazeta Esportiva várias vezes.

Elevado a uma categoria de amuleto, o moleque se deixou envenenar e, a partir de então, era um palmeirense ferrenho como poucos que vi até hoje.

Juvenil do Palmeiras, 1961. Wagner é o terceiro em pé da esquerda para a direita. Meu pai, o mascote.

(Continua)

13 de nov. de 2008

Ê, ô, ê, ô, o Anhanguera é um terrô

Este título é o título de um texto sobre o Anhangüera escrito há mais de três anos que encontrei outro dia, meio sem querer. Tentei, em vão, contato com o autor, que não responde e-mails. Após ler o texto, conclui que o episódio aconteceu entre fins da década de 70 e meados de 80. Isso porque foi a época que Toninho Sem-Braço apitava os jogos aos domingos. Todo o relato é verdadeiro, mas, antes, é preciso fazer algumas observações importantes. A primeira é que, se o Toninho era chamado de “Polvo”, era apenas pelos velhinhos da bocha, que já estão todos empacotados e não podem confirmar o apelido. Ninguém na Barra Funda o chamava assim, por isso acredito que o autor se valeu da imaginação; a segunda: Toninho, que não era alto e forte, não foi o primeiro negro no Anhangüera; tivemos muitos bem antes dele. Aliás, o Sem Braço era um mulato quase se passando por moreno - sobre essa coisa do racismo dos velhinhos italianos, tenho uns causos bons pra relatar por aqui ainda; a terceira é que o autor, que cresceu em outro bairro – provavelmente nas Perdizes, sonho daquela classe branca ascendente à época - e foi pouquíssimas vezes ao clube, comete um erro grosseiro ao classificar o Anhangüera alvi-rubro. Somos rubro-negros, ora. No mais, faço um pedido a meu gêmeo Angelo, o grande pesquisador da história do nosso clube: vasculhe, mano, nos seus achados, alguma ficha cadastral, alguma ata de reunião, alguma foto ou documento em que apareçam Ercole Norogna, avô do autor, Luigi, pai do autor ou Guy, tio. Publico abaixo o texto na íntegra.

Meu pai cresceu em família de 10 irmãos –se incluirmos nonno Ercole e nonna Herminia no cômputo, ele constituía minúscula e oprimida minoria corinthiana num lar dividido entre tricolores e palestrinos. Sêo Luigi e quase todos os irmãos eram jogadores razoáveis de futebol, e bons dançarinos (um deles, Guy, continua, passados os 60, a ser um exímio pé de valsa). Para o clã Norogna, futibór era coisa muito séria, e a paixão pelo esporte infectou a geração que se seguiria –tanto eu quanto meus primos éramos torcedores fanáticos desde moleques e, porque a história se repete em fezzo, passei a ser a minoria corinthiana oprimida em meio a um mar de palmeirenses e são-paulinos. Com duas diferenças essenciais, though: quando o babbo, nascido em 1941, virou corinthiano, o time ganhava tudo, enquanto eu passei a infância naquela longa seca de títulos que valeu ao escrete mosqueteiro o apelido “faz-me rir”. Plus, eu sempre fui grosso. Terminalmente. Em qualquer posição. Em qualquer modalidade das lides ludopédicas –campo, salão, várzea, gol a gol no quintal da tia- Uncle Filthy sempre viu a bola nascer quadrada.

Nonno Ercole era assíduo freqüentador de um clube de futebol de várzea da Barra Funda, o velho bairro operário paulistano em que a família vivia, e quase todos os seus filhos passaram pelo lendário esquadrão do Anhanguera, presença imprescindível nos torneios matutinos do CMTC Clube. A divisão de interesses dos freqüentadores do clube era claríssima –os mais jovens jogavam bola, os mais velhos jogavam boccia, todo mundo bebia pra cacete, mulher não entrava e qualquer pretexto servia pra convencer os silvícolas a sair na porrada. Se bem meu pai e meus tios sonhassem ver os respectivos filhos honrando a camisa vermelha e branca do “Bambambam da Barra Funda” (marchinha carnavalesca que servia de hino ao Anhanguera), quase nenhum deles continuou morando no bairro depois de casado, e com isso minhas visitas ao clube foram poucas –se bem infalivelmente divertidas.

Os velhos italianos que formavam a base de sócios eram todos, claro, muito racistas, ainda que os muitos anos de Brasil tivessem servido pra que aprendessem a conviver bem com os afrodescendentes que começaram a ocupar o bairro e, com o tempo, conquistar vagas no time do Anhanguera –afinal, os jovens italianinhos tinham todos se mudado para bairros “granfa”, como diziam os nonnos com desdém. O primeiro negro a se tornar sócio do clube, e provavelmente o primeiro negro a descer bordoada em um italiano e ser aplaudido pelos velhinhos, era um sujeito forte, alto, ferroviário aposentado prematuramente depois de um acidente de trabalho. Quando abandonou a cancha, se tornou juiz oficial dos jogos do Anhanguera, e seu fino senso de patriotismo local rendeu muitos pênaltis dúbios e impedimentos inexistentes em benefício das hostes alvi-rubras. Porque o juiz tinha perdido um braço em infeliz encontro etílico com uma locomotiva, obviamente os velhos corneteiros italianos o apelidaram “Polvo”.

Na última vez em que fui ao Anhanguera eu tinha uns 14 anos. O jogo era um “contra”, e os adversários eram moleques de uma metalúrgica do ABC, todos excelentes jogadores. Apesar dos melhores esforços do Polvo e do uso liberal do jiu-jitsu pela zaga do Anhanguera, o jogo já estava três a zero pros visitantes no primeiro tempo quando o juiz se viu obrigado a marcar uma falta contra o time da casa. O faltoso, um moleque mulato com cara de mau caráter, imediatamente xingou o juiz de “aleijado filha da puta”, e o Polvo usou a mão que lhe restava para aplicar-lhe sonora bolacha. O time adversário imediatamente se escondeu atrás do gol, perto do tapume, e o time do Anhanguera pôs fim ao jogo brigando entre si, metade defendendo o juiz, metade acusando-o do hediondo crime da imparcialidade. No meio da confusão, o que mais se ouvia eram os palavrões que o Polvo bradava, em italiano impecável –era “figli puttane” pra cá, “affanculo” pra lá. Meu avô sorriu com a bola de boccia na mão: “É por isso que eu amo esse clube”. Quando morreu, só de sacanagem, deixou instruções severas para que o Polvo fosse um dos carregadores do caixão -do lado em que não tinha braço, claro.

Para ler o original, clique aqui.

11 de nov. de 2008

Fiado só amanhã!

O Bar do Sivaldo – a quem chamamos Sinval -, além dos amigos de futebol e do pessoal do samba, ainda é o bar das grandes personalidades que cito frequentemente por aqui. É, enfim, o melhor bar da Barra Funda. E tal título eu credito, única e exclusivamente, ao dono.

Sinval tem as manhas necessárias para a função, nasceu pra ser dono de boteco e nada mais. Sempre oferece uma cortesia para o cliente que bebeu bem, para o cliente assíduo e até para um estreante. Um salaminho, um amendoim, um tremoço, uma batata calabresa, uma erva doce; quando você menos espera, chega um pratinho da casa, na faixa. Tudo com sal, e tome cerveja!

Não vende fiado salvando-se algumas raríssimas exceções, às quais me incluo, obviamente, embora rejeite, muito agradecido, o privilégio. Há quem diga que não existe juro, em nenhum banco, em nenhuma instituição financeira, maior que o aplicado pelo Sinval. Mas quem deixa a conta por conta da caneta, não tem direito a chororô. O caso do Panda, por exemplo. Durante anos – antes de se mudar para o interior -, Panda foi o maior cliente do Sinval. Bebia horrores, e diariamente. Uma fonte nada confiável contou-me que Sinval entregava ao Panda, todo santo mês, o boleto do aluguel do estabelecimento, da luz, da água.

E foi, inacreditavelmente, o cliente mais maltratado que eu já pude ver. Era escorraçado pelo Sinval, dono de um humor de montanha russa. Eu presenciei, no ano retrasado, várias vezes a cena cômica quando os dois ficaram sem se falar por incríveis sete meses. Panda, que não deixou de bater o ponto um dia, chegava calado, sentava-se e lá vinha o Sinval trazendo, de cara amarrada, sua vodca com fanta. Acabava a dose, Sinval trazia outra. Na data do acerto mensal, Sinval deixava a conta na mesa, Panda deixava o cheque e ia embora. Sete meses sem uma palavra.

Mas Sinval, mesmo cobrando juros exorbitantes sabe, acima de tudo, para quem liberar um prazo aqui e outro ali; saca de longe o sujeito que vai pagar e o que não vai; experiência de sobra no ramo e a malícia necessária. Sinval sabe falar não, coisa que o Cabeção, por sua vez, não fez.

Cabeção, nascido e criado no Bom Retiro, é associado Anhangüera há mais de trinta anos e diretor há doze, foi nosso presidente em dois mandatos consecutivos: 2003-2004 e 2005-2006. Exerceu em um período concomitante à presidência outra nobre função, até de maior importância: a de tocar o bar. O desemprego que o aplacara um ano antes, e a saída de Braga, que arrendava o bar do clube, deram espaço para que Roberto Martins, o Cabeção, ficasse com o bar. E foi, de longe, o bar mais melancólico em que já bebi. A derrocada do boteco começou no dia em que Cabeça o assumiu. Por um único e mortal motivo; o traiçoeiro fiado. Não há nada mais perigoso que o fiado. Não há amizade que resista ao fiado, nem mesmo aquelas de infância. Não há moral, nem ética, que sejam maiores que um fiado acumulado, gordo e desavergonhado.

Nunca me esqueci do primeiro dia do Cabeção à frente do nosso simpático bar do clube. Deu um tapa geral nas instalações. Trocou as geladeiras, o balcão, a estufa, o fogão, brilhou a cozinha e deitou bebida, não faltou nada. E os petiscos? Um bolinho de bacalhau - feito pelo próprio - que era um pecado. Pastéis, salgados variados, porções, lanches, tudo. E o mais prestativo funcionário que um bar pode ter: o Bugalu. Tudo redondo!

No começo, Cabeção, goleiro titular dos veteranos, parou até de jogar. O bar era prioridade, era seu ganha pão. Houve, então, uma espécie de mutirão pró-Cabeção, e a campanha “vamos gastar” foi aderida instantaneamente. As mesas todas ficaram forradas, comeu-se e bebeu-se desbragadamente. No primeiro domingo foram trinta caixas de Brahma, incontáveis porções e lanches; o Bugalu teve que sair para comprar pão três vezes. Mas a fartura consumida seria paga, por muitos, na próxima semana, dia 05, que é quando cai o salário. Com uma incrível desfaçatez, a maioria nem perguntou se podia pendurar. Era um que saía gritando de longe: “Cabeção, domingo que vem eu acerto!”, era nêgo com cara de coitado: “Hoje tô sem nenhum, deixa marcado que depois te acerto”, e Cabeção recebeu no primeiro domingo, sem negar fiado a muitos camaradas, 10% do faturado.

Fato é que não se pode misturar as bolas, e o Cabeção ficou sem capital pras reposições. Precisava, logicamente, receber a bolada do domingo passado. Então alguns jogadores “se contundiram” do nada, no meio da semana e não apareceram. Passado um mês, já não tinha mais o bolinho de bacalhau que fizera tanto sucesso. No segundo, não tinha mais porção nenhuma; pra morder, só misto frio. Após mais um mês, só salgadinhos isopor de saquinho. O estoque das bebidas foi minguando; o conhaque, o vinho, a vodca, o uísque viraram saudade; só sobrou a pinga coquinho que o Agostino dava de galão pro Cabeção e a cerveja. Um bar tem que ter, no mínimo, cerveja. E o bar do Cabeção agonizou durante dois anos à base de coquinho e cerveja, sempre pagando o Bugalu e quase nunca sobrando nada para ele. Os que pagavam, e não marcavam, ou seja, o parco dinheiro que o Cabeção recebia, dava, com muito custo, para pagar a Brahma e só. Quando chegou nesse ponto, o fala-fala já era enorme. “Como pode um bar não ter nada?”, “Temos que tirar o Cabeção daí”, mas pagar a dívida acumulada, pouca gente.

Quando um sujeito, que devia os tubos, resolveu levar um litro de uísque de casa, Cabeção ficou emputecido. Os uns-e-outros continuaram a pedir cerveja e Cabeção, o resignado que nunca havia falado nada, que jamais tinha cobrado alguém, cansado de vender e não receber mudou sua postura. Começou a esfregar nas fuças devedoras a pilha das marcações que resultaram na precária situação do bar e na morte de suas expectativas. Mostrava, pra quem quisesse ver, os nomes dos inadimplentes; e cobrava: “pague o que você deve”. Ora, não era possível, os caloteiros teriam que cair em si e pagar a quem gentilmente lhes vendia fiado.

Pois Cabeção perdeu o dinheiro – que não tinha -, o bar, alguns amigos, e o clube sofreu uma debandada de associados jamais vista.

4 de nov. de 2008

Festival macabro

O Atlético Clube Floresta é uma das agremiações mais tradicionais de Osasco. Localizado no centro da cidade, perto da estação de trem, é referência na região, com grandes bailes e festivais* de futebol a rodo. Além de sua festividade futebolística anual com troféus e chuteiras de ouro, o Floresta também aluga o espaço para festivais promovidos por outros times da região, times que não têm o seu próprio campo.

Em meados de 1964 foi armado um desses festivais, no campo do Floresta, promovido pela Funerária Nossa Senhora Aparecida - o time dos funcionários da empresa funerária. Um mês antes foram colados negros cartazes na cidade inteira, faixas foram penduradas em várias esquinas principais, e o boca a boca foi forte.

Quem preparou o festival – na verdade pagou um cara influente na várzea para fazê-lo - foi o dono da funerária, o Seu Solano. Era um entusiasta do futebol. Onde havia um jogo, uma pelada, lá estava o homem assistindo; dizem que parava na rua até para ver a pirralhada correndo atrás da bolinha de meia. Sua loucura pelo futebol era tanta que dizem que o velho torcia para todos os times. Num mesmo jogo, comemorava gols dos dois lados.

Mas Seu Solano era de uma tremenda excentricidade. Seu comportamento estrambótico causava receio em muita gente. Herdou um bom dinheiro, mas nunca se casou e se tinha família ninguém sabia; trajava, invariavelmente, um sobretudo preto e felpudo que o fazia suar em bicas e feder enxofre; era um homem de raras palavras e cara sisuda e tinha verdadeira obsessão pela morte, motivo que o fez abrir uma funerária.

Na sua empresa havia apenas um critério para a contratação de funcionários. Não era preciso ter experiência, vitalidade, vontade e até necessidade de trabalho. Seu Solano contratava moribundos. Quanto mais mal-acabado fosse o peão, melhor. Era um batalhão de desdentados, anêmicos, reumáticos e raquíticos depressivos. Parecia um filme de terror, a funerária. Um bando de mortos vivos, de zumbis, de almas penadas trabalhando pro Seu Solano. Era assim que – dizia ele – tinha de ser uma funerária de verdade.

Era muito, mas muito comum mesmo, as empresas terem time de futebol. Hoje ainda existe a prática, mas na década de 60 qualquer bodega de esquina, qualquer fabriqueta ordinária de fundo de quintal tinha seu escrete. Geralmente a coisa partia de um grupo de amigos que, precisando de patrocínio pro fardamento, pra bola e, principalmente pra cachaça de depois, solicitava àquele amigo pequeno empresário dar aquela força. Daí surgiram vários times com nomes de mercadinhos de bairro, oficinas e pequenos comércios. O caso da funerária Nossa Senhora Aparecida foi à contramão da regra. A idéia do time foi do próprio dono. O problema é que o esquisito Seu Solano não tinha amigos; sendo assim, não houve outra alternativa senão selecionar os pobres diabos de seus funcionários para o jogo que tanto queria promover.

O alegre clube do Floresta, no dia do festival, foi decorado de trevas. Causaram estranheza todos aqueles adornos na cor preta; faixas, fitas, o pau da bandeirinha, tudo escuro. A bandeira – um lençol todo preto - do time funerário hasteada lá no alto. Como todo festival, aconteceram os cinco jogos, um a um, dentro de uma quase normalidade, não fosse por ter havido, em todas as partidas, um minuto de silêncio. Sete vezes. Os cinco jogos foram interrompidos sete vezes para o “um minuto de silêncio”. Ordens do excêntrico Seu Solano.

O jogo final era justamente o do time fúnebre contra o E. C. Banco Mercantil, um dos piores quadros do futebol amador à época; time fraquíssimo, bisonho. Ao saírem do vestiário com aquele ar de desânimo, com aquelas olheiras fundas e aqueles olhares soturnos, os jogadores funestos do Seu Solano causaram dó na platéia. Em campo, mal se agüentavam. E não podia dar outra: os bancários pernas de pau acabaram sapecando 4 x 0 nos funerários, num dos piores jogos de todos os tempos.

Não obtive informações do que aconteceu depois disso com Seu Solano, sua empresa e seus funcionários. O que marcou este festival, no fim das contas – e por isso o fato é muito lembrado -, é que nenhum dos cinco times vitoriosos quis ficar com o troféu, e por vontade própria. Não por falta de consideração para com a organização do evento, pois não há time que desdenhe um troféu. Mas naquela tarde, no campo do Floresta, por unanimidade, os vencedores resolveram abdicar da taça pelo simples motivo de serem, os canecos, cinco tenebrosos caixões funerários. E o estranho Seu Solano entrou pra história do futebol ostentando a proeza de inventar o único troféu até hoje rechaçado.


* O festival é um evento que um clube organiza e convida outros times para participarem. Geralmente os festivais são realizados em um único dia, com cinco ou seis jogos, sendo o último jogo o do time que está realizando a festa.
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