9 de out. de 2008

Um chapéu

Tenho incontáveis razões para me orgulhar de meu pai. Mais ainda por ser, como dizem muitos dos mais chegados, o xérox, o clone, o homem “cuspido e escarrado”. São tantas as razões que não vou me utilizar da chatice de enumerar suas qualidades, e nem é preciso explicar o motivo. Digo isso porque muita gente me pergunta há anos por que não largo o futebol de vez e fico apenas com a noite, essa que me enlaçou há tempos e, conseqüentemente, comprometeu 90% das minhas atuações em campo nas manhãs de domingo – eu sempre a priorizei em detrimento do futebol; mas mesmo bêbado estava em campo. A tentativa de explicar nunca me veio. Mas ontem me peguei resgatando uma das minhas mais longínquas lembranças, e agora tenho certeza do porque de minha insistência. Lá estava eu, numa noite de sábado, andando em alguma rua do bairro com meus pais e o Angelo - o Bruno ainda era um feto. Provavelmente estávamos indo ao saudoso Michelon, restaurante na esquina da Rua do Bosque com a Anhangüera, onde antes fez história a sede social do Anhangüera. Minha mãe cochichou com o velho “Olhe, meu bem. O jeito de andar do Arthur é igualzinho ao seu!”. Fingi que não ouvi nada e comecei a reparar no meu pai. Atentei em seus passos, suas pernas andando uma após a outra, e fiquei todo prosa.

Cheguei a uma conclusão óbvia, que me fez encher o peito; se eu tinha o jeito de andar, então também herdaria, infalivelmente, sua elegância com a pelota. Nessa época meu pai estava no auge, no sport do Anhangüera. Era – ainda é -, como era seu pai, o Velho Tirone, um jogador de defesa, mas com um garbo digno de classificá-lo “zagueiro clássico” - meu avô foi apenas um “beque raçudo” e valente, com uma impulsão inumana, dizem. Era bom também no futebol de salão, tinha habilidade. Sua estréia num jogo de adultos foi justamente pelo rubro-negro, aos 14 anos. Entrou faltando dez minutos para o fim do jogo e com o placar desfavorável: 1 a 0 pro adversário. Meu avô contava, orgulhoso, sua participação na peleja, seu apoio ao filho caçula. Solicitou delicadamente ao técnico: “Ô seu puto, tira esse merda desse ponta direita e põe meu filho!”. Mimi – Vladimir, desde bebê com este apelido -, meu pai, deu duas voltas no cordão do calção, apertando-o, enquanto meu avô lhe ordenava que mostrasse o que sabia. Pisou o campo fazendo o sinal da cruz. Entrou franzino e endiabrado. No primeiro lance, deixou o lateral sentado e cruzou pro gol de empate. Cinco minutos depois fez o da virada e nunca mais saiu do time.

Eu, sabendo da história e confiando na genética, não via a hora de chegar aos 14 anos pra estrear no campo, com a gente grande. As brincadeiras de bola com a molecada na quadrinha ao lado do campo e na rua às vezes me estafavam. No três-dentro-três-fora, na linha-de-passe, no gol-a-gol, na rebatida, no bobinho, nos contras com os moleques da Rua Javaés e até batendo bola na parede, eu tentava aprimorar um fundamento que meu pai dominava com maestria: o chapéu. A dilacerante touca, o temível lençol. Quantas vezes quando menino eu vibrei, agarrado ao alambrado, quando incautos atacantes, babando, secos, tomavam desses humilhantes bonés de meu herói. Algumas vezes eram dois seguidos sem deixar a bola cair, um espetáculo. Eu e o Angelo íamos ao delírio e, soberbos, desafiávamos o Naná, o Marquinhos, o Sherra, nossos amiguinhos, com um arrogante “Quero ver teu pai fazer isso!”. Fui chamado de “filho de um burro” pelos amigos do velho apenas uma vez, quando meu pai perdeu um pênalti, coisa que não me deixou abalar. Ele podia perder uma, duas ou dez penalidades por jogo; bastava um chapéu seu e o domingo estava salvo, o jogo estava ganho, os adversários vencidos, e que se danasse o placar. Todo domingo era assim.

O tempo passou. Estreei no extra, o 2º quadro comandado pelo lendário Freitas, aos 13, como lateral direito – embora sempre tenha sido atacante. Entrei faltando cinco minutos. Uma estréia digna de nada, nem peguei na bola; bem diferente da épica estréia do meu velho. Aos 18 atingi o ápice da minha carreira futebolística, em que fiz o fantástico número de cinco gols no ano. Aos 24 eu já era um jogador em fim de carreira, barrigudo. E hoje nem sei por que ainda insisto em jogar.

Minto! Recordando, como dizia no começo do texto, eu sei. A esperança infantil ainda me é visceralmente presente. Entro em campo tomado inconscientemente de meus tempos de garoto com a cara grudada no alambrado, esperando o momento fatal, o golpe cruel e mortal que meu pai impunha elegantemente, sóbrio e impiedoso. E tento, em vão, imitá-lo. Insisto em acreditar que ainda revelarei o primor que ele desfilava. E um dia encerrarei minha carreira feliz, completo e abençoado quando, num lance tão almejado quanto impossível, eu esbandalhar um desatento como fazia meu pai. Um chapéu pra eu amarrar as chuteiras e as pendurar num fio de eletricidade numa rua da Barra Funda. Um chapéu e missão cumprida. Um chapéu.

14 Comentários:

Blogger Marquinhos disse...

Bom Fvela meu velho amigo de tantos anos, ñ só vc mas o angelo tb o bruno pegou um pouco, e mtos deles de rebatidas, 3 dentro 3 fora, qnd brincavamos na lateral do campo enquanto o jogo rolava, nimguém falava nada, o futebol na quadra, até msm qnd ficavamos la em cima do muro atacando pedra nos veiculos na marginal. "Ahh como éramos insanos"... Éssa história é incomentavel, mto boa parabéns...

9 de outubro de 2008 às 12:38  
Blogger Unknown disse...

uhahuauhauhhauuha

Fooora Kid!!!!

não querendo ser o pessimista, mas se no seu auge, e eu acompenhei nos super jogos de colegio, onde vc ate se destacava, vc não consegui aplicar o chapéu em um domingo, vc acredita que com todo esse preparo e ritimo de jogo que vc esta nos dias atuais vc realemnte ira conseguir?!
uhauhauha
brincadeira, eu estou na torcida!!

mas promete para depois!!
uhauhauhauh

abrass!!

9 de outubro de 2008 às 18:31  
Blogger Craudio disse...

Favela, não ligue para essas intrigas da oposição. Você será o centroavante no Jogo das Barricas...

E salve Mimi!

10 de outubro de 2008 às 00:37  
Blogger Filipe disse...

Belíssima crônica, caro Favela.
Parabéns.

10 de outubro de 2008 às 15:01  
Anonymous Anônimo disse...

Cabra,

Muito bom !!! Mas eu não posso deixar de dizer que você SABE dar o tal chapéu..e do jeito mais difícil de todos, com a bola no chão.

Seu problema é que a cachaça te matou e com essa barriga e dupla tem que ser: Mimi cachetinha e Kid Cavaquinho....

Bjs,
Angelo

10 de outubro de 2008 às 18:40  
Blogger Szegeri disse...

Beleza de texto...
Mas ao citar as diversas modalidades de pelejas futebolísticas de rua, como o três-dentro-três-fora (como é que vai se escrever isso, agora que aboliram o hifen?), rebatida, gol-a-gol você esqueceu a mais clássica, minha favorita: o "dibre" a gol...

10 de outubro de 2008 às 19:38  
Anonymous Anônimo disse...

eu tb achava que herdaria do meu pai nao só o nome, mas o talento com a bola ... ledo engano !!!
hahahahahaha

mas se até eu já dei um chapéu na Anhanguera (e com a bola no chão tb!!), seu dia vai chegar !!


Abraços.

13 de outubro de 2008 às 16:02  
Anonymous Anônimo disse...

Você já dá muito chapéu, atraves de seus textos, Arthuquinha ...
Relaaaaxaa !!


hahahahaha ...
Beijoca

13 de outubro de 2008 às 20:28  
Blogger Eduardo Goldenberg disse...

Favela: grande texto, malandro. Comovente - como tem sido freqüente (jamais abandonarei o trema) por aqui. Eu, que também tenho agudo orgulho de meu velho pai, bem sei do que falas.

Beijo grande.

ps: respondendo ao Szegeri, devo dizer que assim como jamais abandonarei o trema, jamais deixarei de lado o hífen. Outro dia perguntei ao Berinjela sobre a reforma ortográfica e ele me respondeu, sisudo e grave:

- A Tijuca não assinou o acordo ortográfico ao qual você se refere. Portanto, com "ph", phoda-se a abolição do hífen. Não dizem que aboliram a escravatura em 1888? Pois é.

Usemos, pois, tremas, hífens e mais-que-tais.

14 de outubro de 2008 às 06:37  
Anonymous Anônimo disse...

ahahah eu com 19 to pior que vc arthuca; e o chapéu com a bola no chão é sua marca registrada...
eu sim estou na 'vala', 19 anos não aguento mais correr direito...mais to ai, e to voltando a ler o blog hein arthuca..
abração

14 de outubro de 2008 às 13:03  
Anonymous Anônimo disse...

Favela

Quando aplicar o chapéu, faça como o rei e pare a bola no meio de campo e peça substituição. Será épico.

Abração

14 de outubro de 2008 às 19:19  
Blogger Arthur Tirone disse...

Pessoal, obrigado aí pelo apoio.

Piruca, gostei da tua idéia, mas acho que seria brincar com coisa séria fazer um troço desses. Acho que vou parar sem alarde.

Edu: Eu também jamais abandonarei o trema, o hifen e mais-que-tais. Grande Berinjela! Beijo, velho.

Szegeri: Quem sabe um dia, num quintal novo, a gente disputa um "dibre a gol", hã?

20 de outubro de 2008 às 12:54  
Anonymous Walkyria disse...

PARABÉNS meu querido Arthur, vc conseguiu me deixar emocionada a ponto de cair algumas lagrimas, fico imaginando a sua carinha agarrado ao alambrado, por mais que o tempo passe sua imagem na minha mente jamais se apagara. Se vc não conseguiu superar o Mi dentro de campo com certeza vai superar o seu vô nas noitadas. bjão.
Walkyria

5 de fevereiro de 2012 às 10:22  
Anonymous Anônimo disse...

Grande Arthur!

Concordo com a tia Walkyria...só complemento o comentário dizendo que vc tem o "plus" de ser um grande escritor... faz a gente ir das lágrimas ao riso; grande sensibilidade e humor. Fazia tempo que não entrava aqui. Cadê o livro de crônicas? Bjos e vários PARABÉNS! Cheila

5 de fevereiro de 2012 às 20:32  

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