O que os olhos vêem...
Nas ruas que surgem, em sua esmagadora maioria, as mais ricas e belas manifestações culturais de um povo e é nela também que as pessoas se igualam independentemente de quaisquer diferenças que alguns tentam impingir goela abaixo. A Rua é o sinônimo de comunicação e liberdade, palco de batalhas e conquistas, de festas e comemorações, lugar de moradia e comércio. Esta abrangente introdução dará os subsídios necessários ao ponto onde quero chegar, que nada mais é o de falar de um acontecimento – na verdade dois - particular do meu último Domingo, que me enlevou de emoção.
Rápido particular: Tenho um sentimento inenarrável pela rua desde moleque, quando jogava futebol e taco na Rua Boracéia e na vila da Ribeiro de Almeida. Principalmente à noite. Gosto de andar pelas ruas à noite, e prefiro as menos movimentadas, não sei por que. Ando devagar e olho minha sombra a aumentar e encolher à medida que me aproximo do próximo poste de luz, enquanto fumo um cigarro e sussurro um samba. Acho que todos têm alguma mania que remete a algum tempo em que não viveu. Eu ando pelas ruas do meu bairro e as imagino há quase um século atrás, quando o Velho Tirone, ainda menino de calças curtas, criou com outros moleques o Flor do Bosque, primeiro time de crianças da Barra Funda, o qual as camisas foram tecidas com pano de saco de farinha pelas mãos de Dona Ana, minha bisavó. Eles brincavam ali na rua onde meu pai brincou depois de 40 anos e onde eu brinquei depois de 70. Encantam-me as ruas estreitas de paralelepípedo, com postes de luz amarela. Mas, muito mais que isso, me encantam as surpresas que acontecem, como a de domingo.
Todos sabem, aos Domingos, para mim, o futebol no Anhanguera é sagrado. Neste último foi difícil me levantar devido ao embriagante Sábado no necessário Ó do Borogodó. Perdi a carona de meu pai e fui a pé. O clube fica a sete quadras de casa, coisa de dez, quinze minutos andando. Demorei meia hora para chegar e explico.
Após atravessar a Avenida Rudge, vi andando em minha direção o Didi. O Didi é um homem na faixa dos 60 anos, bem preto, careca e com uma grande barba branca e nenhum dente na boca. Estava com jornais por baixo da mesma roupa maltrapilha que usa há anos. Banho ele quase não toma. Cachaça sim, mistura essa que lhe confere um forte odor. Este sujeito faz parte do cotidiano da região. Há anos ele transita por ali e aos Domingos assiste ao jogo dos veteranos do Anhanguera e depois atravessa a ponte da Casa Verde para torcer pelo Cruz da Esperança. Na infância, antes de ser um errante solitário, foi amigo de muita gente ali. Tem família, mas sabe-se lá por qual motivo preferiu viver na rua, perambulando. Nunca pede dinheiro. Ganha a cachaça que consome, assim como o alimento.
Encontrei-o e de longe perguntei quanto havia sido o placar dos veteranos e, quando nos aproximamos, conversamos por uns 5 minutos, tempo suficiente para causar arrepios nos transeuntes. Ele, gesticulando muito e falando alto, me contava sobre um jogo de bicho que rachou com o Bonitão quando passaram a pé dois rapazes da minha idade olhando com olhos de quem não acredita no que está vendo (afinal, como é que pode um branquinho de banho tomado batendo papo com um maloqueiro preto e sujo daquele?). Passaram e, comentando um com o outro, riram, ainda não acreditando. Pouco depois percebi que uma moça que vinha com uma criança desistiu de atravessar a rua porque eu estava ao lado dele, que continuava, entusiasmado, me contando da águia que deu no terceiro prêmio. Dentro de um carro, notei um agito e pessoas apontando para nós. Uma senhora me olhou com olhos esbugalhados, provavelmente pensando “Será que esse menino está sendo assaltado ou está drogado?”. Quando me despedi dizendo que estava atrasado, disse-me ele: “Ô menino, valeu hein! Vai na fé. Obrigado!”, certamente agradecendo aqueles minutos de atenção e de olho no olho. Eu fui e ele ficou gritando pra mim, até eu sumir: “Joga na águia!! Joga na águia!”.
Mais a frente, na esquina da Sérgio Tomaz com a Neves de Carvalho, um grupo de moradores de rua - uns dez - sempre se reúne ali aos Domingos de manhã. E como o Bruno e eu quase sempre vamos a pé, talvez sejamos os únicos a andar pela calçada naqueles três, quatro metros que eles ocupam com garrafas de cachaça, panelas, esteiras e jornais velhos. O nosso simples “Bom dia, senhores!” é o suficiente para uma euforia tomar conta deles e entre as respostas de “Bom dia” vem uns: “Aí, faz um gol lá pra gente!” ou “Tem que ganhar hoje, hein!”. Eles presumem que vamos jogar vendo as chuteiras que carregamos.
Passei quase correndo, temendo me atrasar e ficar no banco, e mandei o rotineiro “Bom dia, senhores!”, e vem uma resposta em meio ao burburinho de “bons dias”:
- Hei! Peraí.
Parei e voltei. Era um rapaz novo, de uns 30. Disse que era o último Domingo dele por essas bandas, pois tinha conseguido dinheiro da passagem pra cidade dele no interior mineiro.
- Come um pedaço, aí. – Tinham numa pequena grelha alguns pedaços de carne que não davam nem pro cheiro pra um homem com fome.
- É, nós estamos comemorando a partida dele. Pega um pedaço e toma uma pinga. – Outro disse.
- Não, muito obrigado, eu preciso ir, senão vou esquentar o banco! – Repliquei ofegante.
- E teu irmão? Não vai jogar hoje?
- Ele já está lá.
- Então vai lá e faz um gol pra gente!
Parece coisa pouca e talvez eu nunca consiga expressar o que aquilo me tocou n´alma. A gentileza daqueles homens me comoveu. Ah, a arte de dividir...
Rápido particular: Tenho um sentimento inenarrável pela rua desde moleque, quando jogava futebol e taco na Rua Boracéia e na vila da Ribeiro de Almeida. Principalmente à noite. Gosto de andar pelas ruas à noite, e prefiro as menos movimentadas, não sei por que. Ando devagar e olho minha sombra a aumentar e encolher à medida que me aproximo do próximo poste de luz, enquanto fumo um cigarro e sussurro um samba. Acho que todos têm alguma mania que remete a algum tempo em que não viveu. Eu ando pelas ruas do meu bairro e as imagino há quase um século atrás, quando o Velho Tirone, ainda menino de calças curtas, criou com outros moleques o Flor do Bosque, primeiro time de crianças da Barra Funda, o qual as camisas foram tecidas com pano de saco de farinha pelas mãos de Dona Ana, minha bisavó. Eles brincavam ali na rua onde meu pai brincou depois de 40 anos e onde eu brinquei depois de 70. Encantam-me as ruas estreitas de paralelepípedo, com postes de luz amarela. Mas, muito mais que isso, me encantam as surpresas que acontecem, como a de domingo.
Todos sabem, aos Domingos, para mim, o futebol no Anhanguera é sagrado. Neste último foi difícil me levantar devido ao embriagante Sábado no necessário Ó do Borogodó. Perdi a carona de meu pai e fui a pé. O clube fica a sete quadras de casa, coisa de dez, quinze minutos andando. Demorei meia hora para chegar e explico.
Após atravessar a Avenida Rudge, vi andando em minha direção o Didi. O Didi é um homem na faixa dos 60 anos, bem preto, careca e com uma grande barba branca e nenhum dente na boca. Estava com jornais por baixo da mesma roupa maltrapilha que usa há anos. Banho ele quase não toma. Cachaça sim, mistura essa que lhe confere um forte odor. Este sujeito faz parte do cotidiano da região. Há anos ele transita por ali e aos Domingos assiste ao jogo dos veteranos do Anhanguera e depois atravessa a ponte da Casa Verde para torcer pelo Cruz da Esperança. Na infância, antes de ser um errante solitário, foi amigo de muita gente ali. Tem família, mas sabe-se lá por qual motivo preferiu viver na rua, perambulando. Nunca pede dinheiro. Ganha a cachaça que consome, assim como o alimento.
Encontrei-o e de longe perguntei quanto havia sido o placar dos veteranos e, quando nos aproximamos, conversamos por uns 5 minutos, tempo suficiente para causar arrepios nos transeuntes. Ele, gesticulando muito e falando alto, me contava sobre um jogo de bicho que rachou com o Bonitão quando passaram a pé dois rapazes da minha idade olhando com olhos de quem não acredita no que está vendo (afinal, como é que pode um branquinho de banho tomado batendo papo com um maloqueiro preto e sujo daquele?). Passaram e, comentando um com o outro, riram, ainda não acreditando. Pouco depois percebi que uma moça que vinha com uma criança desistiu de atravessar a rua porque eu estava ao lado dele, que continuava, entusiasmado, me contando da águia que deu no terceiro prêmio. Dentro de um carro, notei um agito e pessoas apontando para nós. Uma senhora me olhou com olhos esbugalhados, provavelmente pensando “Será que esse menino está sendo assaltado ou está drogado?”. Quando me despedi dizendo que estava atrasado, disse-me ele: “Ô menino, valeu hein! Vai na fé. Obrigado!”, certamente agradecendo aqueles minutos de atenção e de olho no olho. Eu fui e ele ficou gritando pra mim, até eu sumir: “Joga na águia!! Joga na águia!”.
Mais a frente, na esquina da Sérgio Tomaz com a Neves de Carvalho, um grupo de moradores de rua - uns dez - sempre se reúne ali aos Domingos de manhã. E como o Bruno e eu quase sempre vamos a pé, talvez sejamos os únicos a andar pela calçada naqueles três, quatro metros que eles ocupam com garrafas de cachaça, panelas, esteiras e jornais velhos. O nosso simples “Bom dia, senhores!” é o suficiente para uma euforia tomar conta deles e entre as respostas de “Bom dia” vem uns: “Aí, faz um gol lá pra gente!” ou “Tem que ganhar hoje, hein!”. Eles presumem que vamos jogar vendo as chuteiras que carregamos.
Passei quase correndo, temendo me atrasar e ficar no banco, e mandei o rotineiro “Bom dia, senhores!”, e vem uma resposta em meio ao burburinho de “bons dias”:
- Hei! Peraí.
Parei e voltei. Era um rapaz novo, de uns 30. Disse que era o último Domingo dele por essas bandas, pois tinha conseguido dinheiro da passagem pra cidade dele no interior mineiro.
- Come um pedaço, aí. – Tinham numa pequena grelha alguns pedaços de carne que não davam nem pro cheiro pra um homem com fome.
- É, nós estamos comemorando a partida dele. Pega um pedaço e toma uma pinga. – Outro disse.
- Não, muito obrigado, eu preciso ir, senão vou esquentar o banco! – Repliquei ofegante.
- E teu irmão? Não vai jogar hoje?
- Ele já está lá.
- Então vai lá e faz um gol pra gente!
Parece coisa pouca e talvez eu nunca consiga expressar o que aquilo me tocou n´alma. A gentileza daqueles homens me comoveu. Ah, a arte de dividir...
16 Comentários:
Querido, que saudade de vc.
Dizem que nos pequenos acontecimentos da vida que encontramos os maiores valores ...
No dia-a-dia me deparo com essas situações. Que coisa gostosa !!
E ainda mais, (espero que vc entenda): os meus melhores momentos, são aqueles que me encontro sozinha. Nada melhor do que descobrirmos quem somos, sozinhos.
Um beijo
é Kid ... em momentos como esses que percebemos que em certas horas é melhor dividir do que somar !!!
belo texto !!
abraços
É a regra, Favela... A regra... Quanto menos se tem, maior a consciência daquilo que faz falta.
Aliás, tem outra regra. Os que mais têm, só têm porque se prendem à "propriedade". Mas nada é nosso, a não ser a camaradagem.
E a rua é a rua. Os que olham assustados certamente não fazem idéia de como a rua é bom...
Abraços!
Que coisa linda!
Abraços
Arthur,
belo texto. E vem na hora certa quando uma pequena elite branca paulista invade as ruas de São Paulo com seu "agito" "Cansei!". Esse movimento empresarial cheio de dondocas enfadadas sabe, que na rua o povo toma as decisões pois, somos todos iguais, debaixo do mesmo sol. Você falou das pessoas achando estranho sua conversa com o morador de rua, já eu achei lindíssimo. parabéns!
Cris
Que coisa mais linda, porra! Que linda sua maneira de ver o mundo e o ser humano! Saudade de ti, irmão. Viva a rua! Laroiê!
Confesso que prefiro andar em ruas movimentadas, sem pessoas de ruas, com muita iluminação e acompanhada sempre!!!!!
Traumas de uma mulher sequestrada!!!
Que meeedo!!!!!
Oi Arthur,
Faz quase um mes que não leio seu textos por pura falta de tempo, em compensação hoje li todos eles (otimos por sinal como sempre, mas embora eu já soubesse da história do último texto não posso deixar de te enviar um comentário:
Voce é a segunda pessoa(a outra é o Dornel) mais despreendida e mais humana que eu conheço.
Te amo
Mami
Carol: A gente reconhece as pessoas por essas coisas. Apareça no AAA Sexta! Beijo.
Glauton: É isso! Valeu!
Craudio: Eu sei que é a regra, mas se isso acontecer comigo mil vezes, vou me emocionar mil vezes. E nada é nosso mesmo! Abraços!
Perla: Lindo mesmo foi a cena, que acredito não ter conseguido passar para o "papel" nem um décimo do que foi. Abraços!
Cris: Obrigado pelos elogios. Quanto aos canalhas do "Cansei!"... A hora deles vai chegar.
Bruno: É a nossa maneira. E são essas coisas que nos motivam. Saudade de ti também, irmão!
Melissa: Das duas, uma: Ou 1) você não entendeu o que eu quis dizer e comentou uma coisa que nada tem a ver com o que o texto aborda, o que causa uma tremenda confusão de interpretação ou 2) seu comentário é extremamente preconceituoso, desumano, repugnante e sórdido, o que me causa uma abjeta repulsa.
Mamãe: ... Eu também. Demais da conta.
Conseguiu sim, querido! Acredite!
Abraço
Isso não estava aqui ontem
ontem era um dia pobre, metade,
mendigando ouro
à mísera eternidade
Hoje é um dia rico
um mundo cheio de luz e lágrima
força flor milagre e risco
o dia de hoje se olha no espelho e só parece ontem
a mesma brisa a bruma idêntica e essa neblina intensa
que nos obriga a fechar os olhos
e ler nas entrelinhas
os abismos de nós mesmos
hoje, sim, é maravilha,
hoje, finalmente, eu não sei...
Tive que emprestar do Leminski umas palavrinhas, para dizer o que é indisível sem poesia.
Tô achando uma delícia me surpreender com vc.
Beijo
Milena
É... você é digno de uma homenagem.
Penso da mesma maneira que você... e você sabe.
Estou aprendendo muito com você irmão.
Continue sempre assim...
Tenho orgulho de tê-lo como um amigo.
Bjos.
Smerret's
Eu entendi sim seu texto Artur
E não acredito que meu comentário seja desumano
O dia que passar pelo que passei, vc conseguirá entender!!!!
Talvez não devesse comentar isso aqui!!!! Mas tem certas coisas que me lembram esse dia!!!!
Infelizmente!!!!
Cabra, boa noite
Realmente muito bom esse texto....porém não sabia desse nome dele..eu só o conheço como Gandalf, o cinzento...ótima pessoa ! No sábado que fui jogar contra o SADE da Casa Verde pela Roche..quem estava lá...Gandalf, e quando me viu não tardou em dizer: Ô menino...e o Mimi ? hahahahahah. Toda vez que ele me vê, pergunta isso. Mimi e Zulú são os caras que ele mais aprecia. Passei uns 30 min conversando com ele, ouvindo suas histórias de quando criança não podia entrar nos bailes.
Às vezes temos dó dessas pessoas por viverem sozinhas..mas essas pessoas são mais felizes que muitos de nós, que vivemos bem. Lógico que isso não é vida...viver na rua é bom.......quando se tem uma casa com um cobertor pra poder voltar e dormir sussegado !
Abs,
Angelo
Bonito causo, Mestre!
Muito bom relê-lo depois de tanto tempo.
Saudade de você, brother!!!
Beijos
Meu garoto!
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