31 de dez. de 2008

São Silvestre

Estive, de manhã, no trabalho, mas é bom deixar claro que "estar no trabalho" e "estar trabalhando" são coisas completamente distintas. Cocei, desde às oito da matina até o meio dia, o saco. Sendo assim, após acessar todos os sites imagináveis e digitar mil nomes de conhecidos, amigos e parentes no Google, resolvi escrever meu último texto do ano.

Mudei de emprego há vinte dias atrás. Voltei a trabalhar na Avenida Paulista, que será palco hoje à noite da virada paulistana, com shows esdrúxulos e a queima de fogos mais esquisita do Brasil. O pobre mortal que se desloca de vários cantos da cidade, coitado, deve sair daqui desiludido; quem, meu Deus, consegue ver os fogos com tantos prédios em volta? É, disparado, o pior programa para o ano novo. Eu, que não sou bobo, estarei bem longe daqui à zero hora.

Mas antes da meia noite, porém, mais precisamente a partir das três da tarde, tem a tradicionalíssima Corrida de São Silvestre. E é sobre ela, a corrida, que vai correr este texto. Não vou me ater à história da prova, nem ao seu idealizador, o jornalista Cásper Líbero, que essas coisas estão todas na rede, pra quem quiser saber. De minha parte, falarei do papel desempenhado pela Barra Funda na São Silvestre.

Não. Nunca nenhum representante do bairro cruzou a linha em primeiro; meu avô e seus amigos corriam, na década de 40, mas só pela participação. A Barra Funda, todos bem sabem, é um bairro central, de modo que faz parte do percurso da prova. Atentemos para um detalhe: o "México" (Barra Funda de baixo) é o palco. A Barra Funda além linha férrea, não. Esta parte do percurso, que passa pelo México, é exatamente a metade da corrida. Ali, ao descerem do Elevado, os atletas pegam a Norma Giannotti e atravessam as portentosas ruas Cruzeiro e Anhangüera para depois entrarem na Rudge e seguirem para o centro da cidade. Estão, via de regra, ainda inteiros – pelo menos o pelotão de frente.

Dentro de cada evento, no entanto, há sempre um motivo que preocupa sobremaneira os organizadores. No caso da São Silvestre, o assombro, o horror, a paúra da organização, da polícia, da televisão, é justamente a esquina da Giannotti com a Cruzeiro. Ali, ano após ano, concentra-se a assistência mais imprestável do percurso de 15 quilômetros. Mané Catapano, por exemplo, é um espécime dessa horda. São incontáveis bêbados, das piores matizes, juntos. Ano a ano, a segurança naquela esquina aumenta. A famosa fita amarela e preta não servia de nada; depois botaram três cordas (nas alturas do joelho, cintura e peito de um adulto), o que também não resolveu; depois a polícia apelou para uma pequena base montada ali, mas dois policiais não dão conta de uma matilha; até que, nos últimos dois anos, a esquina foi isolada e ficou sem assistência.

Nada que intimidasse os vagabundos, mesmo com todo ano um ou dois passando a noite de reveillón no xadrez; e justiça se lhes faça: o motivo dos transtornos, da bagunça e da revolta da turma da Barra Funda é um só: são grandes patriotas. Há também uma outra razão para a baderna que eles promovem: a torcida pelo Deley, o único barrafundense a correr a São Silvestre. Wanderley, o último remanescente da família dos tapeceiros, com sua tapeçaria na Rua Anhangüera, é um atleta; corre todos os dias, anda de bicicleta, joga futebol aos domingos, e trabalha duro, um incansável. Mas perto de um Paul Tergat, de um Simon Chemwoyo, de um Marílson dos Santos, é uma tartaruga, um aleijado. Sua melhor colocação foi um ducentésimo quarto lugar, há seis anos.

A torcida pelo Deley, como eu dizia, é um motivo secudário, de menor força. Os arruaceiros são é brasileiros, não admitem a vitória de um gringo, abrindo uma exceção altamente nobre: mexicanos. Arturo Barrios, por exemplo, bicampeão, em 90/91. Um brasileiro já não ganhava a prova desde 85, com José João da Silva, e um pigmeu chamado Rolando Vera, equatoriano, era o atual tetra campeão. Não tinha pra ninguém, o baixote Vera corria à vera, deixando os pobres brasileiros comendo poeira e a assistência da Barra Funda pê-da-vida. Eis que, em 90, surge Arturo Barrios e liqüida a fatura. A vitória do mexicano, para que todos saibam, foi definida onde? Justamente na Barra Funda, no "México"! Quando os rudes, na esquina da Cruzeiro, viram o Barrios, deram gritos de incentivo, tapinha no bumbum e água (não era água em copinho, mas jato de mangueira). Era o representante do México e, sendo assim, da Barra Funda, na liderança. Com a brasileirada em farrapos, Arturo Barrios virou herói no bairro.

Depois dessa fase, vieram os quenianos. Daí em diante, amigos, só deu eles. Nos últimos dezesseis anos, apenas cinco canarinhos e um etíope ergueram a taça; de resto, só Quênia, Quênia e Quênia. Imagino que, para um brasileiro, ver um queniano se aquecendo antes da corrida seja o mesmo que foi pra mim, na primeira prova de vestibular que prestei, atentar para um japonês cabeçudo ao meu lado apontando um lápis. Naquele momento, antes de pensar no Pitágoras, eu bombei.

No ultimo dia do ano, não há maior inimigo da Barra Funda que um queniano. Paul Tergat, por exemplo, quando dobrava a Giannotti, ouvia xingamentos de todos os tipos; em português, italiano e inglês. Mas isso era pouco. Chegaram a arremessar tomate no homem. Na torcida tinha um e outro que enganava os atletas. Tinha um que botava cachaça no copinho de água pra dar pros gringos, isso antes de inventarem os "postos de hidratação". Um dia deu o copo pra um neguinho que vinha bem na corrida, achando que o crioulo era queniano. Foi o neguinho jogar a "água" na cara e lamber o beiço para, ainda correndo, virar o pescoço em direção à esquina, onde se amontoavam os vikings, e mandar um: "Vão se foder, seus filhos da puta!". A estratégia da pinga foi abolida.

Com o passar dos anos, muita gente deixou de ir pra Rua Cruzeiro ver a corrida, já que só dava os quenianos. Para tranquilidade da organização, dos atletas gringos, da polícia, a turma que se juntava ali se desfez; hoje restam quatro ou cinco. Mas há uma pessoa que sente a falta da horda e, sem ela, sabe que não terá chance alguma de levantar a São Silvestre para o Brasil e, mais, para a Barra Funda: Deley. Será, hoje – ele me confidenciou – sua última corrida. Sem torcida, não haverá motivação. Inclusive não completará a prova. Vai correr apenas até a gloriosa esquina.

E se não der um brasileiro na cabeça hoje, amigos, que seja um mexicano.

6 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Favela, já que virei freguês da " casa " devo atestar. Mano, a caneta
tá nervosa.Parabéns, adicona meu humilde blog, no seu prá ver se eu pego um pouco dessa pena. abs

João Barboza

2 de janeiro de 2009 às 20:41  
Anonymous Anônimo disse...

Hahahaha!

Mais um ótimo e cômico texto, Arthur!

Espero que o seu reveillon tenha sido bom, e aproveito a oportunidade para desejar tudo de bom em 2009 para você e toda a sua família!

Grande abraço!

4 de janeiro de 2009 às 19:52  
Blogger Craudio disse...

Descoberto, então, o motivo do fiasco verdamarelo nessa edição 2008!

Bom 2009 pra você, mano véio. E agora, com a nova localização, é Bar do Bigode sempre.

Abraço!

5 de janeiro de 2009 às 10:04  
Blogger Unknown disse...

EI TU, É CÁSPER LÍBERO E NÀO CÁPER, EU TENHO CERTEZA QUE FOI UM ERRO DE DIGITAÇÃO, ABRAÇO FELIZ 2009 , SEU BOCA DE LITRO, ALIAS COMPREI PINGA DE ALAMBIQUE E VC NÃO APARECEU NO SÍTIO.

5 de janeiro de 2009 às 11:57  
Blogger Arthur Tirone disse...

João, vou dar uma passada lá no teu balcão virtual. Abração e obrigado!

, valeu! Um ótimo ano pra você e para os seus também! Abraço.

Craudio, bom ano pra você também. Beberemos mais neste 2009!

Chefe, não deu pra ir, mas guarde a "iaiá-me-segura" pra mim, tá?

8 de janeiro de 2009 às 19:10  
Blogger Szegeri disse...

Só você...

3 de fevereiro de 2009 às 18:36  

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