10 de fev. de 2009

Os trilhos e a divisão de um bairro

Invariavelmente escrevo sobre o México, a parte da Barra Funda dita “de baixo”. Uma pequena extensão que abrange não mais que seis, sete ruas de assim e de assado. Da Avenida Rudge até o Viaduto Pacaembu e do Rio Tietê até a linha férrea – taí o México. Estes antigos trilhos impuseram uma divisão do bairro em duas partes e definiram, para sempre, a maneira de se viver e se relacionar na Barra Funda.

Em 1875 foi inaugurada a Estação Barra Funda da Estrada de Ferro Sorocabana, que servia para o transporte do café e como armazém, alavancando consideravelmente o número de moradores na região. Depois, em 1892 foi criada a São Paulo Railway, que passou a transportar passageiros a partir de 1920. Estava, a partir de então, dividida de fato a Barra Funda.

As convivências foram ficando restritas à legendária “porteira” – um grande portão de madeira no final da Rua Anhangüera que dava acesso além-trilhos. Na porteira fiscais da estação burocratizavam as passagens dos carroções de burro de dia, e à noite “negros arruaceiros”, então começando a se alocar no bairro, marcavam ponto ali. Aos poucos, as senhoras de cima deixaram de comprar o feijão no armazém da Rua do Bosque; os senhores de baixo deixaram de lacear o sapato na sapataria da Rua Brigadeiro Galvão e por aí vai, o que acabou contribuindo para o progresso geral.

A partir de então, tudo o que tinha do lado de lá tinha que ter do lado de cá; nasceram feiras livres, comércios e serviços de todos os tipos e cada vez mais confinados a seus respectivos lados da linha férrea, os moradores e comerciantes desenvolveram uma grande rivalidade dentro da Barra Funda.

A parte de baixo, situada na várzea do rio, se destacou no futebol - vários times fizeram história como o Carlos Gomes, o Grajaú, o XV de Novembro e o Anhangüera – e nos bailes populares. Já a parte de cima, mais encostada ao nobre bairro de Campos Elísios, embora também tivesse ótimos times, passou a ser um grande centro da arte na cidade. O Theatro São Pedro – que foi palco de artistas do porte de Grande Otello - é, até hoje, orgulho do bairro. Teve ainda o Circo Yolanda, os bailes de gala no Royal e tinha também, morando na Lopes de Oliveira, o brasileiro Mario de Andrade.

A rivalidade tomou conta do lugar, principalmente entre os jovens que jogavam futebol e dançavam nos bailes do bairro. Havia um tipo de conduta a ser seguido, um deles era a permissão, por escrito, para ir ao baile de algum clube ou para jogar em algum time pra lá da fronteira. A partir da década de 40, a Turma dos Cabeleira fiscalizava a porteira. Se passasse algum homem, sem autorização expressa de alguém da parte baixa, tomava congesta. Era bom tomar cuidado e ter um bom motivo pra atravessar os trilhos. Se o balão que soltavam caísse pro lado de lá, esquece. Ninguém ia buscar balão nenhum sob a pena de tomar um cacete; era o domínio do terrítório imposto, e os limites eram respeitados.

O pitoresco da divisão, no entanto, é o fato de a Barra Funda de baixo passar a se chamar México, o que nunca abordei até hoje e que, aliás, pouquíssima gente ainda sabe. Tenho insistido no apelido porque hoje, saindo pelo bairro e perguntando “onde é o México?”, serão raras as respostas corretas. Noventa e nove porcento dirá que é um país que faz fronteira com os americanos. E convenhamos que essa resposta, em plena Rua Salta-Salta, de frente para a antiga porteira (hoje tem uma passarela ali), é um atentado, uma afronta à Geografia e à História.

O apelido México se deu por causa do grande sucesso do cinema americano na década de quarenta, com os filmes que retratavam guerras entre americanos e mexicanos. A Barra Funda de baixo, com bandoleiros do naipe de Galinha e Francês, além de brucutus como Sacarrão, já tinha fama de “terra sem lei” pela pouca vontade da justa nas bandas.

Numa quermesse na Rua Solimões, porém, ficou eternizado o apelido México ao correr pela cidade a notícia do que os bebuns aprontaram. A farra comia solta e já passava das onze da noite. Dois guardas a cavalo, que passavam por ali, ouviram barulhos de garrafa quebrando. Era o começo de uma briga entre dois italianinhos por causa de uma moça. Os policiais resolveram descer; sua função era manter a ordem. A intenção dos “hômi” de debandar todo mundo dali foi clara. Sem pestanejar, um deles deu um tiro pra cima e gritou pra que todos fossem embora.

No auge do furdunço, com apostas rolando e mais de três barris de vinho a consumir ainda, os "panchos" da Barra Funda, além de esbofetearem os guardas, ainda os deixaram pendurados nos postes de luz até de manhã, como faziam os mexicanos nos filmes...

6 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Querido, você está se tornando um legítimo acervo ambulante da história do cotidiano da Barra Funda, daquela contada, vivida e transformada pelas pessoas comuns. Quase dá pra sentir o cheiro... Lindo demais isso!

11 de fevereiro de 2009 às 15:13  
Blogger Szegeri disse...

Eu que me sinto um pouco barrafundense, por ter estudado da primeira à quarta série na Alameda Eduardo Prado, quase esquina com Adolfo Gordo (Barra Funda de cima, portanto), vou dar um pitaco de leve, mais a fim de instigar os brios investigativos do nosso bom Favela. Apesar da supremacia mexicana no quesito "salões" advir do brilho inconteste do São Paulo Chic, a Barra Funda de cima era também pródiga nos seus "rastapés", inclusive os que se davam nos porões dos casarões das ruas Brigadeiro Galvão, Lavradio, Lopes Chaves etc., onde o criouléu era obrigado a dançar "abaixadinho", por força da pouca altura do pé-direito. Tou falando mentira?

11 de fevereiro de 2009 às 19:04  
Blogger Arthur Tirone disse...

Mi: ainda faremos - sacou, não? - muito mais!

Szegeri, é vero!. Quando me referi aos bailes populares, era mais sobre as festas clubísticas, que pululavam pela cidade. A parte de cima do bairro, aliás, batia o México no quesito "porões" e "salões da raça".

12 de fevereiro de 2009 às 14:57  
Anonymous Anônimo disse...

Grande cronista da cidade esse meu amigo Favela!!

13 de fevereiro de 2009 às 09:24  
Anonymous Anônimo disse...

Aê Favela, aqui é o Bruno, um dos 54 internautas que te acessaram da Alemanha. Pois é, estou morando em Berlin... tava por aqui, morrendo de saudade, morrendo de frio, fuçando na internet pra matar a saudade do samba e da rapaziada, e acabi topando com seu blog... Legal pra caralho, lindo de morrer!
Vai mandando brasa aí que quando eu voltar dou um pulo no Anhangüera...
E desce mais um dedal (de Schnaps, porque aqui não tem cachaça)!

14 de fevereiro de 2009 às 19:10  
Blogger Unknown disse...

Quando eu crescer, quero ser igual ao favela.Tá malandro!

15 de fevereiro de 2009 às 10:36  

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