Os trilhos e a divisão de um bairro
Invariavelmente escrevo sobre o México, a parte da Barra Funda dita “de baixo”. Uma pequena extensão que abrange não mais que seis, sete ruas de assim e de assado. Da Avenida Rudge até o Viaduto Pacaembu e do Rio Tietê até a linha férrea – taí o México. Estes antigos trilhos impuseram uma divisão do bairro em duas partes e definiram, para sempre, a maneira de se viver e se relacionar na Barra Funda.
Em 1875 foi inaugurada a Estação Barra Funda da Estrada de Ferro Sorocabana, que servia para o transporte do café e como armazém, alavancando consideravelmente o número de moradores na região. Depois, em 1892 foi criada a São Paulo Railway, que passou a transportar passageiros a partir de 1920. Estava, a partir de então, dividida de fato a Barra Funda.
As convivências foram ficando restritas à legendária “porteira” – um grande portão de madeira no final da Rua Anhangüera que dava acesso além-trilhos. Na porteira fiscais da estação burocratizavam as passagens dos carroções de burro de dia, e à noite “negros arruaceiros”, então começando a se alocar no bairro, marcavam ponto ali. Aos poucos, as senhoras de cima deixaram de comprar o feijão no armazém da Rua do Bosque; os senhores de baixo deixaram de lacear o sapato na sapataria da Rua Brigadeiro Galvão e por aí vai, o que acabou contribuindo para o progresso geral.
A partir de então, tudo o que tinha do lado de lá tinha que ter do lado de cá; nasceram feiras livres, comércios e serviços de todos os tipos e cada vez mais confinados a seus respectivos lados da linha férrea, os moradores e comerciantes desenvolveram uma grande rivalidade dentro da Barra Funda.
A parte de baixo, situada na várzea do rio, se destacou no futebol - vários times fizeram história como o Carlos Gomes, o Grajaú, o XV de Novembro e o Anhangüera – e nos bailes populares. Já a parte de cima, mais encostada ao nobre bairro de Campos Elísios, embora também tivesse ótimos times, passou a ser um grande centro da arte na cidade. O Theatro São Pedro – que foi palco de artistas do porte de Grande Otello - é, até hoje, orgulho do bairro. Teve ainda o Circo Yolanda, os bailes de gala no Royal e tinha também, morando na Lopes de Oliveira, o brasileiro Mario de Andrade.
A rivalidade tomou conta do lugar, principalmente entre os jovens que jogavam futebol e dançavam nos bailes do bairro. Havia um tipo de conduta a ser seguido, um deles era a permissão, por escrito, para ir ao baile de algum clube ou para jogar em algum time pra lá da fronteira. A partir da década de 40, a Turma dos Cabeleira fiscalizava a porteira. Se passasse algum homem, sem autorização expressa de alguém da parte baixa, tomava congesta. Era bom tomar cuidado e ter um bom motivo pra atravessar os trilhos. Se o balão que soltavam caísse pro lado de lá, esquece. Ninguém ia buscar balão nenhum sob a pena de tomar um cacete; era o domínio do terrítório imposto, e os limites eram respeitados.
O pitoresco da divisão, no entanto, é o fato de a Barra Funda de baixo passar a se chamar México, o que nunca abordei até hoje e que, aliás, pouquíssima gente ainda sabe. Tenho insistido no apelido porque hoje, saindo pelo bairro e perguntando “onde é o México?”, serão raras as respostas corretas. Noventa e nove porcento dirá que é um país que faz fronteira com os americanos. E convenhamos que essa resposta, em plena Rua Salta-Salta, de frente para a antiga porteira (hoje tem uma passarela ali), é um atentado, uma afronta à Geografia e à História.
O apelido México se deu por causa do grande sucesso do cinema americano na década de quarenta, com os filmes que retratavam guerras entre americanos e mexicanos. A Barra Funda de baixo, com bandoleiros do naipe de Galinha e Francês, além de brucutus como Sacarrão, já tinha fama de “terra sem lei” pela pouca vontade da justa nas bandas.
Numa quermesse na Rua Solimões, porém, ficou eternizado o apelido México ao correr pela cidade a notícia do que os bebuns aprontaram. A farra comia solta e já passava das onze da noite. Dois guardas a cavalo, que passavam por ali, ouviram barulhos de garrafa quebrando. Era o começo de uma briga entre dois italianinhos por causa de uma moça. Os policiais resolveram descer; sua função era manter a ordem. A intenção dos “hômi” de debandar todo mundo dali foi clara. Sem pestanejar, um deles deu um tiro pra cima e gritou pra que todos fossem embora.
No auge do furdunço, com apostas rolando e mais de três barris de vinho a consumir ainda, os "panchos" da Barra Funda, além de esbofetearem os guardas, ainda os deixaram pendurados nos postes de luz até de manhã, como faziam os mexicanos nos filmes...
Em 1875 foi inaugurada a Estação Barra Funda da Estrada de Ferro Sorocabana, que servia para o transporte do café e como armazém, alavancando consideravelmente o número de moradores na região. Depois, em 1892 foi criada a São Paulo Railway, que passou a transportar passageiros a partir de 1920. Estava, a partir de então, dividida de fato a Barra Funda.
As convivências foram ficando restritas à legendária “porteira” – um grande portão de madeira no final da Rua Anhangüera que dava acesso além-trilhos. Na porteira fiscais da estação burocratizavam as passagens dos carroções de burro de dia, e à noite “negros arruaceiros”, então começando a se alocar no bairro, marcavam ponto ali. Aos poucos, as senhoras de cima deixaram de comprar o feijão no armazém da Rua do Bosque; os senhores de baixo deixaram de lacear o sapato na sapataria da Rua Brigadeiro Galvão e por aí vai, o que acabou contribuindo para o progresso geral.
A partir de então, tudo o que tinha do lado de lá tinha que ter do lado de cá; nasceram feiras livres, comércios e serviços de todos os tipos e cada vez mais confinados a seus respectivos lados da linha férrea, os moradores e comerciantes desenvolveram uma grande rivalidade dentro da Barra Funda.
A parte de baixo, situada na várzea do rio, se destacou no futebol - vários times fizeram história como o Carlos Gomes, o Grajaú, o XV de Novembro e o Anhangüera – e nos bailes populares. Já a parte de cima, mais encostada ao nobre bairro de Campos Elísios, embora também tivesse ótimos times, passou a ser um grande centro da arte na cidade. O Theatro São Pedro – que foi palco de artistas do porte de Grande Otello - é, até hoje, orgulho do bairro. Teve ainda o Circo Yolanda, os bailes de gala no Royal e tinha também, morando na Lopes de Oliveira, o brasileiro Mario de Andrade.
A rivalidade tomou conta do lugar, principalmente entre os jovens que jogavam futebol e dançavam nos bailes do bairro. Havia um tipo de conduta a ser seguido, um deles era a permissão, por escrito, para ir ao baile de algum clube ou para jogar em algum time pra lá da fronteira. A partir da década de 40, a Turma dos Cabeleira fiscalizava a porteira. Se passasse algum homem, sem autorização expressa de alguém da parte baixa, tomava congesta. Era bom tomar cuidado e ter um bom motivo pra atravessar os trilhos. Se o balão que soltavam caísse pro lado de lá, esquece. Ninguém ia buscar balão nenhum sob a pena de tomar um cacete; era o domínio do terrítório imposto, e os limites eram respeitados.
O pitoresco da divisão, no entanto, é o fato de a Barra Funda de baixo passar a se chamar México, o que nunca abordei até hoje e que, aliás, pouquíssima gente ainda sabe. Tenho insistido no apelido porque hoje, saindo pelo bairro e perguntando “onde é o México?”, serão raras as respostas corretas. Noventa e nove porcento dirá que é um país que faz fronteira com os americanos. E convenhamos que essa resposta, em plena Rua Salta-Salta, de frente para a antiga porteira (hoje tem uma passarela ali), é um atentado, uma afronta à Geografia e à História.
O apelido México se deu por causa do grande sucesso do cinema americano na década de quarenta, com os filmes que retratavam guerras entre americanos e mexicanos. A Barra Funda de baixo, com bandoleiros do naipe de Galinha e Francês, além de brucutus como Sacarrão, já tinha fama de “terra sem lei” pela pouca vontade da justa nas bandas.
Numa quermesse na Rua Solimões, porém, ficou eternizado o apelido México ao correr pela cidade a notícia do que os bebuns aprontaram. A farra comia solta e já passava das onze da noite. Dois guardas a cavalo, que passavam por ali, ouviram barulhos de garrafa quebrando. Era o começo de uma briga entre dois italianinhos por causa de uma moça. Os policiais resolveram descer; sua função era manter a ordem. A intenção dos “hômi” de debandar todo mundo dali foi clara. Sem pestanejar, um deles deu um tiro pra cima e gritou pra que todos fossem embora.
No auge do furdunço, com apostas rolando e mais de três barris de vinho a consumir ainda, os "panchos" da Barra Funda, além de esbofetearem os guardas, ainda os deixaram pendurados nos postes de luz até de manhã, como faziam os mexicanos nos filmes...
6 Comentários:
Querido, você está se tornando um legítimo acervo ambulante da história do cotidiano da Barra Funda, daquela contada, vivida e transformada pelas pessoas comuns. Quase dá pra sentir o cheiro... Lindo demais isso!
Eu que me sinto um pouco barrafundense, por ter estudado da primeira à quarta série na Alameda Eduardo Prado, quase esquina com Adolfo Gordo (Barra Funda de cima, portanto), vou dar um pitaco de leve, mais a fim de instigar os brios investigativos do nosso bom Favela. Apesar da supremacia mexicana no quesito "salões" advir do brilho inconteste do São Paulo Chic, a Barra Funda de cima era também pródiga nos seus "rastapés", inclusive os que se davam nos porões dos casarões das ruas Brigadeiro Galvão, Lavradio, Lopes Chaves etc., onde o criouléu era obrigado a dançar "abaixadinho", por força da pouca altura do pé-direito. Tou falando mentira?
Mi: ainda faremos - sacou, não? - muito mais!
Szegeri, é vero!. Quando me referi aos bailes populares, era mais sobre as festas clubísticas, que pululavam pela cidade. A parte de cima do bairro, aliás, batia o México no quesito "porões" e "salões da raça".
Grande cronista da cidade esse meu amigo Favela!!
Aê Favela, aqui é o Bruno, um dos 54 internautas que te acessaram da Alemanha. Pois é, estou morando em Berlin... tava por aqui, morrendo de saudade, morrendo de frio, fuçando na internet pra matar a saudade do samba e da rapaziada, e acabi topando com seu blog... Legal pra caralho, lindo de morrer!
Vai mandando brasa aí que quando eu voltar dou um pulo no Anhangüera...
E desce mais um dedal (de Schnaps, porque aqui não tem cachaça)!
Quando eu crescer, quero ser igual ao favela.Tá malandro!
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