3 de jun. de 2008

Caldeirão do Inferno

Até a década de 40, aquele baldio servia para abrigar animais, mais propriamente burros. Os carroções de burro, naquele tempo, eram tantos muitos... Não pra menos; o comércio e as fábricas pela cidade dependiam deles. A farinha, o vinho, os tecidos e tudo o mais era carregado no “carro” de madeira amarrado no lombo dos animais. Já transcorri sobre este que não é objeto do atual. Este sim abarcará – por infeliz sorte minimamente (espero que por enquanto), devido à falta de mais informantes; só tenho o velho Souzinha - um lugar, entre os anos de 1942 a 1955, tal qual uma trincheira; uma resistência na Barra Funda, ainda que não exaltada dessa maneira pela população local, que julgava aquele terreno como maldito.

A população local, é preciso dizer, era basicamente composta pelos imigrantes italianos e seus descendentes, mais alguns espanhas e portugas. Isso, graças à então recente “expulsão” dos negros para as zonas periféricas, na vigente “italianização” da cidade. O tal terreno localizava-se à Rua Anhanguera, entre a Rua do Bosque e a Ribeiro de Almeida; bem em frente de onde hoje fica o Bar do Sinval.

A famosa Cocheira, onde os burros eram guardados e noturnamente vigiados em troca de esmolas por um negro forte, o Sinésio, sofreu ocupação da chamada “gentalha”, o que causou, durante soturnos 20 dias, confrontos entre os “invasores” e os carroceiros, sem conseqüências maiores que discussões e alguns empurrões. A mulherada ocupante, dizem, conversava com os carcamanos – era como chamavam os carroceiros – com pau de macarrão em punho. Outra importância que é preciso abordar relaciona-se ao período histórico; bombardeava pelo mundo a Segunda Guerra Mundial. A alemoada, os ítalos e japas sofriam terríveis perseguições nessas bandas. Em verdade, pouco a guerra afetou o almoço e a janta daqueles todos trabalhadores; seja qual fosse sua cor ou nação, quem tinha dificuldades já as tinha há muito. Os advindos do Eixo, porém, filhos de Hitlers e Mussolinis, passaram a ser vistos como possíveis – e prováveis – inimigos dos brasileiros de longos tempos. Não por nada! Os alemães haviam afundado – o que depois virou polêmica - nossos navios mercantes e o Brasil, naquele momento (1942), vivia um forte sentimento de revanche; daí a hora certa para os negros, os brancos desvalidos e a “gente desendeusada”, como feiticeiros e mães de santo, botarem banca pra cima dos italianos. A primeira providência foi arrancar todas as placas da Rua dos Italianos (onde hoje fica a sede do Anhanguera) e substituí-las por placas de “Rua dos Brasileiros”. As segundas e terceiras providências não foram tão amigáveis – às vezes chegavam às vias de fato com os imigrantes -, mas também não há registros de tragédias nem das mínimas.

Quando da posse da cocheira – com a liderança do negro Sinésio -, derrubaram as poucas baias que abrigavam os raros animais “raçudos”, arrancaram todos os cochos de madeira que depois usaram para o concreto que subiria suas paredes e botaram os burros e os raçudos todos amarrados na rua; nenhum bicho foi maltratado, roubado ou solto. Na manhã seguinte os carcamanos, renitentes, levaram seus animais para outro lugar. Um mês depois, o cortiço com vinte casas, varal de fora a fora na área comunitária e uma imagem de São Jorge sustentada numa pequena tábua pregada logo acima do portão do cortiço, pro lado de dentro, já era um entra e sai.

O cortiço era nada mais que um amontoado de casas com gente pobre, mas bem mais pobre que os pobres do lugar que, apesar de não terem lá muitos confortos (meu pai, por exemplo, dormiu num sofá-cama com molas pulando pra todos os lados até os 15 anos), manjavam salames, queijos e vinhos dos bons em largas escalas. A italianada comia bem. Havia um mundo lá dentro que só quem viveu é que sabe; ao contrário dos maus boatos que, à boca pequena, transformaram o beco numa espécie de celeiro dos endiabrados. Uma das razões às quais eu, particularmente, atribuo a tal cisma é o fato de “aqueles sujos” terem se apoderado da Cocheira; a outra razão é nada mais que preconceito racial e religioso. Muito embora houvesse diferenças, as pessoas vizinhas, após pouco tempo passaram a conviver respeitosamente com o pessoal do cortiço e até sentiam pena quando a polícia chegava ameaçando sentar a madeira ao menor som de batuque. Mas o batuque forte mesmo comeu ali anos antes na casa da Tia Olímpia, a “dona do samba”, na mesma Rua Anhanguera, casa que era colada à linha do trem e reunia nêgo de todo canto, inclusive os bambas da Glete.

Num dos primeiros dias de posse, um barraco – olha o trocadilho! – entre duas mulheres, a traída e a traidora, que acabou com as duas se atracando no meio da rua com direito a bofetes, unhadas, beliscões e puxão de cabelo em quem se metesse na “conversa”, decretou o apelido com que ficou conhecido o cortiço: Caldeirão do Inferno. Outros relatos apontam tal alcunha para os batuques em louvor a deuses assombrosos advindos da casa no fundo da vila; uma senhora negra, a velhinha D. Zilda, por exemplo, quando ia portão adentro, fazia um tremendo esforço pra olhar o impávido São Jorge em cima de seu cavalo branco. Erguia os braços em direção à imagem e gritava “Ogum Iê”, assustando a gente que passava na rua. Quando topavam a senhora proferindo aquela estranha saudação, apertavam o passo; as crianças chegavam a sair correndo de medo da “velha corcunda”, que era a avó de Zuleica, a recém-casada traída que pegou seu marido Eneu de safadeza com a Firmina, recém-viúva vizinha de parede. D. Zilda já brigava com Eneu todo dia porque o malandro, ao passar pelo portão do cortiço, também fazia sua saudação a São Jorge, mas a seu modo: “Dá-lhe, Corinthians!”, o que causava arrepios na velha; dizia aquilo ser um grande desrespeito. Depois da fornicação com a Firmina então, o caldo entornou de vez pro lado do Eneu e era um qüiproquó todo dia entre o triângulo mais a velha.

O Caldeirão do Inferno, que era morado por várias outras figuras pitorescas, figuras mais-que-interessantes que ainda – se me for dada essa benção - destrincharei, foi um templo de resistência no que diz respeito à luta por um espaço até então sem dono, servido aos burros em detrimento da gente sofrida; a uma forma de convívio d´outrora com portas e casas abertas entre açúcares e farinhas voando dentro de xícaras de casa em casa em mãos varadas por papos vespertinos com café e bolo; às relações cordiais e emergenciais entre quem precisa de ajuda, seja pra um mutirão de construção ou de mudança ou pra cuidar de um ente doente; à fé inquebrantável “num mundo justo na paz de Oxalá, que assim seja”, como terminava a reza que os moradores do cortiço faziam todas as segundas feiras...

6 Comentários:

Blogger Unknown disse...

Olha o kid!! desmistificando a verdadeira barra funda...
mas tenho q dizer que o Vai Corinthians foi o melhor!!
hahahahahahaha

3 de junho de 2008 às 18:31  
Anonymous Anônimo disse...

Mano, que belo texto!

Abraço.

3 de junho de 2008 às 18:38  
Anonymous Anônimo disse...

Amei Arthuuca.
Muito bom ...

E volto a enfatizar como de lei, mensalmente: PARABÉNS por mais um evento repleto de energias !!
Anhanguera dá samba - 1 ano.

e que dê 50 !! hehehe
BEIJÃO.

3 de junho de 2008 às 22:15  
Blogger Szegeri disse...

O Caldeirão durou até quando, velho? Hoje é uma fábrica, né?

6 de junho de 2008 às 18:30  
Blogger Arthur Tirone disse...

Szegeri: Desculpe a demora na resposta. Seguinte: O Caldeirão, como escrevi no texto, até 55 foi o Caldeirão do Inferno. Depois disso ainda continuou vivo, mas já sem a pecha, devido à saída dos protagonistas dos maiores furdunços. O cortiço durou até 68 ou 69 (não consegui o ano preciso) e depois acabou virando uma fábrica de tecido. Hoje o lugar está fechado; nada acontece ali, assim como a antiga sede do Anhanguera, que virou pizzaria (Michelon) e está há uns 12 anos inativa...

13 de junho de 2008 às 13:04  
Anonymous Anônimo disse...

como sempre, destruindo nas palavras hein senhor Arthuca!!

e esperemos 2a!!
só quero ver ...


abraços.

13 de junho de 2008 às 18:13  

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