28 de ago. de 2009

Anhangüera dá samba XXVI

A previsão do tempo mais uma vez dava conta de chuva e frio na última sexta do mês passado. Comprei uma quantidade de cerveja e cachaça razoável para uma noite gelada. Mas a convidada especial era Dorina, o salão lotou e eu tive que sair duas vezes na madrugada pra comprar mais bebidas e gelo. A novidade é que, além da Dorina, outro artista chamou atenção naquela noite: João da Tóta, nosso churrasqueiro.

João é uma figura pitoresca da Barra Funda. Pra começar é irmão do Bonitão. Quando fizemos a primeira roda de samba no Anhangüera, com Wilson Moreira, a idéia era conseguir alguém que fosse lá e fizesse um churrasquinho honesto pra matar a fome do povo. Percorri toda a região atrás de ambulantes com seus carrinhos de trabalho. Primeiro os de churrasso; mas nada. Depois fui pra cima dos de pipoca, tapioca, salgadinhos e até de churros. Nenhum ambulante se interessou, mesmo não precisando pagar nada pra vender suas mercadorias. À meia noite, quando cheguei ao salão levando o Wilson Moreira, já tinha um monte de gente reclamando a falta de um rango.

Na segunda edição o Tentente pegou a cozinha. Fazia uns caldos saborosos e espetinhos bacanas, mas após dois meses empatando desistiu, não sem antes me indicar o Black, que fazia até umas porções boas, mas chegava no clube com duas horas de atraso; ficou apenas duas rodas. Aí falei com a Sônia, cunhada do Moisés. Tive certeza que daria pé, já que a nêga cozinha divinamente. Ela empatou no dinheiro duas vezes e na terceira emburacou em cem pratas, que nós cobrimos. Eu refugava em cuidar deste departamento, mas terceirizar o serviço só deu merda. A solução seria comprar as carnes e pagar um cabra que cuidasse dos espetos. Aí entra o João da Tóta.

Não há ninguém que faça mais bicos que o João. Serviços como carpintaria e marcenaria ele conhece bem. Hidráulica e elétrica é com ele mesmo. Fazer mudança, carregar chumbo pesado, fazer compras para velhinhas; o João é um faz-tudo. Foi logo nele que pensei. Como o único contato que eu tinha com ele não passava de um "oba", um "fala, João!", conversei com o Bonitão pra que ele fizesse o convite.

O pouco contato que eu desempenhei com o João, antes de convidá-lo para churraqueiro, é o mesmo que todo o bairro tem com ele. Mesmo assim é uma figura carimbada na área. Além dos bicos, João ficou popular por estar sempre a pedalar sua magrela levando seu filho, o Danilo. Era comum vê-lo na velha bicicleta com o pequeno Danilo sentado de lado, na barra. Mas o Danilo cresceu, ficou maior que o pai e continua na barra. João, todo desengonçado, fazendo tremendo esforço com o enorme Danilo na barra, raspando os pés no chão.

O João não fala, ele arrulha. Não se entende absolutamente nenhuma palavra proferida pelo homem. É, de longe, a pior dicção do Brasil. E foi isso que causou uma confusão geral em torno da churrasqueira na noite em que a Dorina cantou no Anhangüera. Umas três mulheres reclamavam contundentes e xingavam o João, que falava pelos cotovelos sem que ninguém decifrasse nada. Fato é que o faz-tudo não é um bom churrasqueiro. Com a placidez de uma Monalisa, João deixa dez, onze espetos queimando, enquanto a fila vai crescendo. Detalhe: ele prepara só carne. Depois, só frango. Quando acaba o frango ele faz a lingüiça.

Quando vi a baderna cheguei perto. As mulheres reclamavam: "-Pô, esse grosso serve todo mundo menos a gente! Estamos aqui há meia hora.". Joguei uns seis pacotes na grelha e depois de algum tempo estava resolvida a situação, isso antes de sair pra comprar mais cerveja.

Pouco - quase nada - vi a Dorina cantando. Mas pelo clima e pelo que todos testemunharam, a mulher estava inspirada e comandou um baita axé. Deixo, portanto, um filme - de incontestável qualidade, feito pelo Daniel - da Dorina:



Hoje, última sexta do mês, tem mais. Palavras de Fernando Szegeri, publicadas na Agenda do Samba e Choro:

Neste mês os sambistas da Paulicéia recebem os bambas da cidade de Santos - terra onde a árvore do samba há muito deitou fortes e profundas raízes - para uma grande celebração do samba que se faz na Baixada, com uma especialíssima homenagem ao querido compositor Renato Borgomoni, recentemente falecido. Estarão presentes na roda Luiz Cláudio Santos, diretor musical do Cd Cavalo de Praia Canta Renato Borgomoni e a cantora e compositora Elenira Ribeiro. Além de interpretar sambas de Seu Renato, a dupla vai mostrar músicas próprias e de outros músicos da Baixada.

Quem quiser conferir, clique no My Space para ouvir as músicas e assistir a vídeos deles.

Até mais tarde!

21 de ago. de 2009

Reverência ou revés

Credito a Angelo, meu irmão gêmeo, o homem que nasceu abraçado comigo, o título de “o maior Anhangüerista” da atualidade. Nem mesmo um Walter Gordo, o último remanescente dos tempos dourados, filho do lendário Antenor e ex-presidente, é páreo para o “pesquisador”. Angelo trabalha arduamente pela recuperação da história do clube. E recuperando tal história ele escancara – mesmo não tendo essa pretensão – a história de um pedaço da cidade e de seus costumes num tempo passado. Mas isso não tem nenhuma valia, não?

Infelizmente pouca gente se interessa por este trabalho. Há quem ignore redondamente a investida. Aliás, a maioria ignora; fato que comprova a importância que as coisas têm. Quem não dá valor ao que passou, aos que plantaram, jamais entenderá o que lhe vem às mãos.

Digo isso porque observo. Há, hoje, muita gente querendo “trabalhar pelo clube”. Nenhum desses sabe, por exemplo, que na década de 50 se apresentou na gloriosa sede da Rua do Bosque com a Anhangüera um compositor do porte de Kazinho; e que mês retrasado contamos com a presença de um Wilson Moreira... Mas quem são esses fulanos, não? Não imaginam que nosso clube se notabilizou durante décadas, na cidade, pelos bailes de Carnaval e – acreditem! - de samba. E nem numa revelação divina em sonho veriam, como vejo, a velha sede revivida agora, às últimas sextas do mês. Não vêem porque não conhecem, nem nunca conhecerão, a história do Anhangüera. Acham, inclusive, festa de gentalha.

Um clube que congregava nossos ancestrais. Taí uma coisa em comum, a única. Meu avô e teus pais – porque sois mais velhos que eu e meu irmão – bebiam no mesmo garrafão de vinho as mesmas dificuldades; as necessidades eram idênticas. Pobres imigrantes pais de emergentes!

Não sabem, vocês – mas meu irmão sabe, tolos -, que firmamos parceria com o notável e querido Cordão da Verde e Branco da minha Barra Funda – que rejeitas asquerosamente - e que assinávamos seus livros de ouro e aplaudíamos seus desfiles. Não gostam do samba; preferem a Jovem Guarda e seus iêiêiês cantados pela gente “bonita”. Meu irmão e eu gostamos de samba, saibam. E gostamos de imaginar que os que nos legaram estejam bem representados no que diz à preservação sem cair na babaquice de "viver no passado". Porque o mundo gira, nós sabemos disso.

Tua boa intenção não me diz nada e não me agrada. Aliás, acho de tremendo mau gosto tuas preferências e tuas escolhas. Mais que mau gosto, vão de encontro ao que lhe compete. Porque não sabes o que deve fazer; nunca te interessou a nossa história. Te interessa a tua gente bonita e teus iêiêiês, cousa que aqui – devias saber, como sabe meu amado irmão – não pega! Continue tentando.

Tua praticidade, “visão empreendedora” e dinamismo me enojam porque excluem a relação humana; porque passam por cima, inclusive, de qualquer relação como a do garrafão de vinho dividido. Vocês que gostam de dizer que querem melhorar nossa agremiação, que implantarão metodologias inquebrantáveis, que firmarão os alicerces... Vocês só vêem o que vai ao alcance dos olhos. Não há Taj Mahal que vocês construam dentro do Anhangüera que lhes credite reverência no futuro. Porque vocês – que não passam de três, quatro – não reverenciam, como faz meu irmão!
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