25 de fev. de 2009

Anhangüera dá Samba XX

Começamos os trabalhos do ano com tudo; eu diria “com o pé direito”. Iracema Monteiro, com a força da sua presença e do seu canto, proporcionou o que muitos afirmaram ter sido a melhor roda de samba dos últimos anos, pelo menos no Anhangüera. Nos quesitos repertório principalmente; uma pancada atrás da outra! Após uma chuva incólume, que inundou e parou a cidade, veio a trégua junto com a chegada da mulher. E pareceu que o tempo parou. O céu clareou e a noite ficou daquelas boas para beber, conversar, dançar e cantar. Festejar, enfim.

A presença de alguns amigos, como Edu Batata, Maurinho de Jesus e Marcelo Arcanjo engrandeceu a festa e o samba, assim como a do querido casal Gilda e Nézio Simões, diretamente do Rio, junto com a Iracema. Uma noite histórica! Vejam o vídeo.



Essa sexta – a última do mês – tem mais, e a convidada especial é a grande cantora Carmen Queiroz. Quem faz a apresentação é a Railidia:

Encerrando as festividades de Momo, o projeto Anhanguera Dá Samba, realizado pelo grupo Inimigos do Batente, não poderia ter melhor atração no dia 27 de fevereiro no Clube Anhanguera, no Bom Retiro. A presença da cantora Carmen Queiroz, que integrou o grupo Bando da Rua, divulgador de marchas de carnaval, encerra fevereiro com clássicos do samba, repertório marcante na carreira da cantora.

Carmen Queiroz é considerada uma das mais belas vozes da música brasileira, herdeira da linhagem das cantoras da era de ouro da rádio Nacional como Dalva de Oliveira e as irmãs Linda e Dircinha Batista. Iniciou sua carreira nas noites paulistanas apresentando músicas regionais, choro e se firmando no samba, gênero predominante no seu trabalho. A discografia de Carmen é constituída de três trabalhos: "Flor da Paz" (1991), "Leite Preto" (2000) e "Do meu jeito" (2004), seu mais recente CD. Os discos trazem em comum a opção por composições clássicas combinadas a um repertório de novos compositores.


Deixo um áudio da Carmen Queiroz cantando Sala de Recepção, de Cartola.

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Até Sexta!

17 de fev. de 2009

O guardião da Bocha

As origens do jogo de bocha são controversas. Alguns dizem que é um dos jogos mais antigos do mundo, tendo indícios no Egito e Grécia antiga. Mas a que mais tem valia é a de que os italianos são os pais da criança. Nasceu lá a primeira federação e o primeiro campeonato.

No Brasil, a bocha chega justamente com os imigrantes italianos; por isso a forte presença nas regiões sul, São Paulo e sul de Minas. No começo do século passado, era praticada apenas em festas religiosas dos imigrantes, mas com a institucionalização do esporte na Argentina na década de 30, a bocha passou a ser o segundo esporte no Rio Grande do Sul e se alastrou ainda mais.

As regras oficiais são simples. O negócio, o gol da bocha, é lançar a boccia (são quatro bolas de resina sintética, com mais ou menos um quilo, para cada equipe) de modo que se aproxime o máximo possível do bolim – ou balim -, a bolinha pequena. O time que se aproximar mais ganha o ponto – pode-se também jogar individualmente, um contra um.

Até a década de 50, no entanto, jogava-se no Brasil o uma variação do esporte, o “ponto-e-bota”; uma bocha, digamos, mais rústica. Enquanto na bocha há uma certa delicadeza no arremessar, inclusive nos tiros para retirar a bola adversária de perto do bolim, no ponto-e-bota o a bola não rola, ela estanca. Pudera, a boccia era um melão de madeira de quatro quilos. O ponto consiste em arremessar a bola para que ela estanque perto do bolim. A bota é que era o fino; essa jogada consiste em jogar a pesada bola de madeira de modo que ela caia sobre a outra – dir-se-ia “na orelha” da outra -, tirando a bola inimiga do lugar, onde fica, ela, estancada. Uma jogada para poucos!

Em São Paulo, o ponto-e-bota foi febre até os anos cinqüenta. Depois disso acabou se dissolvendo com a implementação dos campeonatos oficiais de bocha. Jogava-se adoidado nos clubes grandes, pequenos, nos quintais das casas e em outros terrenos improvisados. Há relatos que na Rua Cruzeiro chegaram a invadir o grande galinheiro da casa do Seu Nilo para jogar. Resultado do embate: três galinhas espatifadas.

Apesar de os campeonatos manterem-se firmes e fortes, a febre pela bocha foi diminuindo ao longo do tempo e, há anos, é considerado um esporte geriátrico, para velhos caquéticos. Falo, logicamente, sob a perspectiva de quem vê não num longo alcance geométrico, estatístico ou mesmo oficial, mas com a profundidade de quem vive o cotidiano do bairro e dos clubes do bairro. A cancha de bocha era presente em quase todos os clubes varzeanos. Hoje, aqui na região, temos a do Anhangüera e a do Paulista da Casa Verde, nesses redutos brejeiros, desligados das oficialidades e dos calendários bocheiros. Onde aqueles que viveram o auge do esporte mantêm o costume.

No Anhangüera tivemos grandes jogadores, capitaneados pelo Durão. Nas décadas de 70 e 80, nossa cancha lotava aos sábados e domingos; de jogadores e de assistência e nossa equipe (na foto abaixo) levantava canecos à rodo, fazia excursões e dava shows de deixar os Globetrotters no chinelo. Hoje, após uma década com poucos gatos pingados e raros velhinhos que sobreviveram e apareciam de vez em quando, quando as restrições do tempo lhes davam uma trégua ou outra, estamos vivendo uma fase nova, com novos campeonatos regionais e a recuperação do gosto pela bocha. E graças a uma pessoa, em especial.



Em 1986, na cancha do Anhangüera.

Excursão em 1983 para Santos.



Outro dia, num samba no Anhangüera sob a batuta dos Inimigos do Batente, coloquei sobre a mesa no meio da roda o último troféu que o Anhangüera logrou; um troféu de bocha, trazido pelas mãos de Roberto Scaranello, o Beto, um homem que vem sendo, nos últimos anos, o elo que nos liga aos velhinhos da foto aí de cima, que tanto honraram nossas cores. Um incansável não somente no que se refere à bocha, mas às relações amistosas e fraternas que o esporte sempre proporcionou. Um homem que conhece o valor de uma tradição. Um homem de paz.


Ano passado na cancha do Anhangüera. Beto é o de vermelho.

10 de fev. de 2009

Os trilhos e a divisão de um bairro

Invariavelmente escrevo sobre o México, a parte da Barra Funda dita “de baixo”. Uma pequena extensão que abrange não mais que seis, sete ruas de assim e de assado. Da Avenida Rudge até o Viaduto Pacaembu e do Rio Tietê até a linha férrea – taí o México. Estes antigos trilhos impuseram uma divisão do bairro em duas partes e definiram, para sempre, a maneira de se viver e se relacionar na Barra Funda.

Em 1875 foi inaugurada a Estação Barra Funda da Estrada de Ferro Sorocabana, que servia para o transporte do café e como armazém, alavancando consideravelmente o número de moradores na região. Depois, em 1892 foi criada a São Paulo Railway, que passou a transportar passageiros a partir de 1920. Estava, a partir de então, dividida de fato a Barra Funda.

As convivências foram ficando restritas à legendária “porteira” – um grande portão de madeira no final da Rua Anhangüera que dava acesso além-trilhos. Na porteira fiscais da estação burocratizavam as passagens dos carroções de burro de dia, e à noite “negros arruaceiros”, então começando a se alocar no bairro, marcavam ponto ali. Aos poucos, as senhoras de cima deixaram de comprar o feijão no armazém da Rua do Bosque; os senhores de baixo deixaram de lacear o sapato na sapataria da Rua Brigadeiro Galvão e por aí vai, o que acabou contribuindo para o progresso geral.

A partir de então, tudo o que tinha do lado de lá tinha que ter do lado de cá; nasceram feiras livres, comércios e serviços de todos os tipos e cada vez mais confinados a seus respectivos lados da linha férrea, os moradores e comerciantes desenvolveram uma grande rivalidade dentro da Barra Funda.

A parte de baixo, situada na várzea do rio, se destacou no futebol - vários times fizeram história como o Carlos Gomes, o Grajaú, o XV de Novembro e o Anhangüera – e nos bailes populares. Já a parte de cima, mais encostada ao nobre bairro de Campos Elísios, embora também tivesse ótimos times, passou a ser um grande centro da arte na cidade. O Theatro São Pedro – que foi palco de artistas do porte de Grande Otello - é, até hoje, orgulho do bairro. Teve ainda o Circo Yolanda, os bailes de gala no Royal e tinha também, morando na Lopes de Oliveira, o brasileiro Mario de Andrade.

A rivalidade tomou conta do lugar, principalmente entre os jovens que jogavam futebol e dançavam nos bailes do bairro. Havia um tipo de conduta a ser seguido, um deles era a permissão, por escrito, para ir ao baile de algum clube ou para jogar em algum time pra lá da fronteira. A partir da década de 40, a Turma dos Cabeleira fiscalizava a porteira. Se passasse algum homem, sem autorização expressa de alguém da parte baixa, tomava congesta. Era bom tomar cuidado e ter um bom motivo pra atravessar os trilhos. Se o balão que soltavam caísse pro lado de lá, esquece. Ninguém ia buscar balão nenhum sob a pena de tomar um cacete; era o domínio do terrítório imposto, e os limites eram respeitados.

O pitoresco da divisão, no entanto, é o fato de a Barra Funda de baixo passar a se chamar México, o que nunca abordei até hoje e que, aliás, pouquíssima gente ainda sabe. Tenho insistido no apelido porque hoje, saindo pelo bairro e perguntando “onde é o México?”, serão raras as respostas corretas. Noventa e nove porcento dirá que é um país que faz fronteira com os americanos. E convenhamos que essa resposta, em plena Rua Salta-Salta, de frente para a antiga porteira (hoje tem uma passarela ali), é um atentado, uma afronta à Geografia e à História.

O apelido México se deu por causa do grande sucesso do cinema americano na década de quarenta, com os filmes que retratavam guerras entre americanos e mexicanos. A Barra Funda de baixo, com bandoleiros do naipe de Galinha e Francês, além de brucutus como Sacarrão, já tinha fama de “terra sem lei” pela pouca vontade da justa nas bandas.

Numa quermesse na Rua Solimões, porém, ficou eternizado o apelido México ao correr pela cidade a notícia do que os bebuns aprontaram. A farra comia solta e já passava das onze da noite. Dois guardas a cavalo, que passavam por ali, ouviram barulhos de garrafa quebrando. Era o começo de uma briga entre dois italianinhos por causa de uma moça. Os policiais resolveram descer; sua função era manter a ordem. A intenção dos “hômi” de debandar todo mundo dali foi clara. Sem pestanejar, um deles deu um tiro pra cima e gritou pra que todos fossem embora.

No auge do furdunço, com apostas rolando e mais de três barris de vinho a consumir ainda, os "panchos" da Barra Funda, além de esbofetearem os guardas, ainda os deixaram pendurados nos postes de luz até de manhã, como faziam os mexicanos nos filmes...
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