26 de jun. de 2008

Uma mulher de fé

Quando se casou com um homem 20 anos mais velho, a menina Rivalina Alcântara, então com 19 anos, sabia que ele tinha sete filhas de um primeiro casamento. Se a união se deu por amor ou por resignação não se sabe, mas acabou por dar à luz a mais sete de Eduardo da Silva e os criou praticamente sozinha. Nascida na pequena Santa Rita do Passa Quatro em 1910, viveu uma paupérrima e errante infância naquelas cidadelas, vilas e pequenos povoados da divisa SP/MG. Numa festa de São João na praça central de São Simão foi que conheceu Eduardo. Elegante e eloqüente, além de homem de negócios, à primeira vista não havia como negar ser um bom partido. Foi-se embora com ele. Instalaram-se em Guaxupé, cidade nova onde morava sua querida irmã mais velha, a Orfila, que seria sua amiga e companheira de solidão na velhice.

A extrema devoção de Rivalina para com Nossa Senhora Aparecida, crença inflexível que a acompanharia até o dia de sua morte, fez com que, ainda jovem, se ajoelhasse em promessa – uma das milhares que fez e cumpriu – de que, se todos os seus filhos nascessem com saúde, as moças seriam Maria. A primeira a rebentar foi Maria do Carmo, e depois seguindo em escadinha vieram Maria José, Maria do Rosário, Maria Valdete, Maria Imaculada e os únicos dois machos da linhagem dos catorze de Eduardo: Eduardinho e Severo Ângelo. Nenhuma das cinco meninas jamais foi chamada, após a proliferação de seus descendentes, pelo nome de Maria; eram Do Carmo, Zezé, Rosária, Dete e Lada. A mãe era a única que as tratava pelos nomes completos e o pai, que confundia os nomes, inventava apelidos pra cada uma.

No começo Eduardo levava a jovem Rivalina à reboque de cidade em cidade, e em cada uma ficavam pouco tempo, o que fez com que cada Maria nascesse em diferentes lugares. O homem era um negociante; tinha projetos mirabolantes e vendia tudo o que caísse no seu colo. Fazia negócios com agricultores e mercadores de todos os tipos; tecia com destreza convincentes argumentos que brilhavam os olhos dos seus parceiros de escambo. Em verdade nunca foi cogitada a hipótese de ser estelionatário porque Eduardo, um entusiasta, estava sempre duro. Dizem – principalmente os filhos – que não houvera outra inteligência igual à dele. O caçula Severo, anos depois, contou-me que no jogo de xadrez fazia-se um alvoroço toda vez que Eduardo entrava no “clube” das cidades do pedaço e as apostas rodavam os quatro cantos e que jamais perdeu um jogo. Na matemática então fazia contas de cabeça com números quebrados de dois além da vírgula; um computador!

Eduardo nunca voltou com bom dinheiro das “geniais” empreitadas. Rivalina, que ficou em Guaxupé após parir a Lada, já há anos apenas “servia” o marido quando regressava das decepcionantes investidas; para ela era um sonhador irresponsável. Tinha ainda a certeza secreta de que Eduardo ganhava muito, mas torrava na mundaria todo o ganho antes de voltar pra casa, muitas vezes de sapatos e paletós novos em folha. Com sorte, Rivalina ganhava pormenores como panelas e enfeites de barro e um dinheiro que segurava miseravelmente a sobrevivência da família até que o próximo empreendimento do pensante Eduardo os tirasse daquela “maré passageira” e os elevasse a um status de digna nobreza.

Em meio às viagens do pai as crianças foram crescendo. Do Carmo e Zezé revezavam entre os serviços domésticos junto à mãe e a responsabilidade pelas irmãs menores. Nessa época que a Zezé pegou gosto pela costura, fazendo bordados em panos de prato pra vender; gosto este que depois se transformaria em ganha pão e trabalho árduo de sol a sol em sua curta e sofrida vida. As meninas desenvolveram entre si relações além das naturais de irmãos. Isso porque quando nasceu a quarta filha, a Dete, Rivalina a entregou para Do Carmo amadrinhar; e assim continuou o processo: Zezé foi madrinha da Lada; Rosária batizou Eduardinho e Dete mergulhou a cabeça do caçula Severo na água benta, de modo que era um tal de “madrinha pra cá, madrinha pra lá” que durante um bom tempo a confusão era geral. Bastava a pequena Lada estar no colo da Do Carmo, a irmã mais velha que sempre impôs um respeito natural de mãe, para a Zezé se ferver de ciúmes e arrancar dos braços da irmã a sua afilhada: “Vá cuidar da Dete, que é a tua!”. No fundo, Rivalina (que já era chamada de D. Riva) sentia-se aliviada com a preocupação e o cuidado entre as crianças. A estratégia de entregar os filhos entre eles a tranqüilizava afinal a madrinha, na falta da mãe, é mãe. Do Carmo, Zezé e Rosaria estavam mocinhas, mas uma pulga atrás da orelha de Riva às vezes cochichava que as meninas, no fundo, brincavam de casinha com os irmãos pequenos, que serviam como bonecas bem mais interessantes que as de pano, velhas e carcomidas.

Depois de algum tempo Eduardo desistiu das idas e vindas e estabeleceu-se na casa de vez; estava com aspecto bem mais velho, como se tivesse cansado da elegância que nunca lhe reverteu fortuna. Foi bom pai nos momentos em que se fazia presente; era divertido e não chamava a atenção das crianças, missão que ficava a cargo de Riva, que sentava o cacete nas meninas sem pensar duas vezes diante de qualquer atitude zombeteira, irresponsável ou imprópria para moças, como na vez em que pegou a Lada jogando bola com os meninos na rua e a arrastou para casa pela orelha. Sem uma autoridade paterna que fazia necessitar o pulso firme da mãe, a bondade do pai e o carinho pelo mesmo foram elevados a grandes potências pelas crianças; adoravam ouvir a milhares de aventuras do velho herói. Numa dessas, Eduardo contava que transportara por mais de mil léguas, até o Ceará, um caminhão abarrotado de ouro em barras e que durante o percurso sofreu com bandoleiros de todas as laias; noutra dizia que havia enfrentado uma chuva de granizo em Santa Catarina que o havia deixado encoberto durante seis horas e que, já inconscientemente envolto em gelo, travou um trato de vida com o Cão. A religiosa D. Riva queria morrer com as blasfêmias do marido e, a fim de pagar os pecados por ele também, rezava uma hora a mais ajoelhada em frente as inúmeras imagens que ficavam sobre sua penteadeira que, anos mais tarde, virou uma pequena estrutura sagrada em mogno.

Assim fez Rivalina durante toda a vida. Dedicando sua vida à fé católica, enfrentou as pragas, a fome, os azares e perdas dolorosas que lhes foram de impostas com um senso humor inexpugnável. Pagou penitência pelos seus, orou pelo o povo da rua, para os bêbados, enfermos, solitários, cativos e loucos. Uma mulher que foi capaz de agregar, até o último suspiro, sua linhagem que chegou a mais de 60 pessoas de todas as idades à sua volta, bebendo de uma sabedoria e uma generosidade que, quem viu, jura jamais ter visto tamanha em outrem. Voltarei a contar histórias engraçadas, tristes, notáveis e cotidianas desta criança que parece ter vivido 200 anos; e se tenho minha maneira de enxergar a vida, o apreço brutal pelos meus de sangue e a consciência do giro que o mundo dá, é porque a velhinha ensinou uma lição que passou de geração em geração, entendendo sua concepção na plenitude – e a sua descendência testemunha -, de que “tudo se repete”.

24 de jun. de 2008

Anhangüera dá Samba XII

Completamos um ano de Anhanguera dá Samba! assim, do jeito que tem e que há de ser. Simples, como o samba e a gente gosta. Porque quanto mais se inventa, pior fica. No Anhanguera a iluminação, por exemplo, após várias tentativas, é de celofane nas poucas lâmpadas que ficam acesas. Foi a melhor que encontramos após testarmos set lights fortíssimos que queimavam a cabeça dos músicos (ainda mais o Kico e o Tchubí, que são carecas) ou treliças complicadíssimas com várias lâmpadas e cores que davam cara de show a um ambiente tão descontraído. Aliás, aí reside o fato de termos migrado do salão social lá pra parte de fora, onde mora o Diabo Velho.

Após um ano posso afirmar que, se por qualquer motivo, o projeto acabasse hoje, eu já teria muita história pra contar e recordar, mas a coisa vem tomando um rumo que me faz bater o olho no calendário à espera do próximo samba; à espera de que, mais uma vez, os Inimigos do Batente e um convidado bamba façam a Barra Funda e o Bom Retiro estremecerem. Porque o intuito dessa empreitada é, além de se fazer e curtir um samba, o de acordar o espírito dorminhoco do lugar e o de proporcionar, ao menor custo possível - com muito custo -, a cultura, a diversão e a cachaça pra quem quiser chegar; desde que chegue devagar, devagarinho. E que assim seja, como “vencendo”...



Antes de falar sobre a última festa gostaria de agradecer as pessoas que fazem a coisa acontecer, o que nunca fiz até hoje: Railídia, que foi a primeira pessoa a abraçar a idéia, acreditar e passar pro papel, há 4 anos; Fernando Szegeri: graças a ele é que o projeto saiu do papel e por causa dele a gente curte esse monte de ilustres convidados. Foi esse monstro quem deu o nome ao projeto e, além de tudo, ainda divide comigo as buchas; os outros sete dos Inimigos do Batente: Cebola, Kico, Julio Vellozo, Marcelo Homero, Paulinho Timor, Tchubí e Cabelinho, que toparam a parada desde o início ganhando ou não um qualquer até engrenar; Mimi (meu pai) e Denize (mãe), que me dão uma força indizível e incansável pelo simples prazer de ver o samba castigando no terreiro. Bruno, Sherra e eventualmente o Rômolo, que abdicam da farra até as duas da manhã ficando na portaria; Daniel Frangiotti, meu parceirão que filma, tira fotos, ajuda a encher o freezer na véspera e faz todas as artes gráficas dos cartazes. Milena, que tem as mais simples e melhores idéias que se pode imaginar; Bira, Luizão, Janderson e Brasil, a melhor (e maior) equipe de segurança do mundo; Buga, Robson e João da Tóta, que dão conta das bebidas e do churrasco quando o bicho tá pegando; Didi, o zelador do Anhanguera, que deixa o ambiente brilhando antes e que depois limpa o lixo que deixamos; André Peruca, que sempre dá uma grande força na divulgação e ao Zulu, porque o Zulu é o Zulu.



Não há muito que firular sobre o Noca da Portela. Nunca vi o Anhanguera daquele jeito; todo mundo – e foi recorde de público - numa reverência terrível ao mestre; batendo continência mesmo. Noca destilou simpatia e fez 400 vozes se juntarem num ritual belíssimo em torno da roda. Foi uma brasa atrás da outra; música de sucesso, clássicos, lado B e mais que tais, tudo acompanhado pela massa, a ponto de afirmar, o malandro, estar pasmo. Noca representou e marcou a comemoração do nosso primeiro ano de uma maneira que ninguém poderia imaginar. Os fiéis de cada samba no Anhanguera não hesitam em confirmar o chute que o Samba, incorporado no Noca, deu na bunda do frio. Ao mestre nosso agradecimento, mais uma vez. Vejam o filme de sua entrada e a primeira “pedrada” entoada:



Nesta sexta tem mais, com Ivan Milanez, carioca de 62 anos, mestre jongueiro e batuqueiro do Império Serrano. Sujeito criado entre Silas de Oliveira, Mano Décio, Dona Ivone Lara, Campolino, Darci do Jongo, Mestre Fuleiro, Tio Hélio e Aniceto, viveu sua vida inteira na Serrinha. Foi músico de vários artistas como Roberto Ribeiro e Beth Carvalho e contribuiu muito para o ressurgimento da “Velha Lapa” boêmia. Hoje Ivan participa de vários shows e integra a Velha Guarda Imperiana. Estamos de braços abertos pra receber este baluarte que vai sacudir o Anhanguera. Ouçam a música Cada um com seu cada um, que Ivan Milanez divide com Zeca Pagodinho no disco do Zeca de 1993.



Até sexta!

14 de jun. de 2008

O melhor roupeiro do Brasil

Quito, o maior roupeiro de que se tem notícia, e que inclusive já foi tema meu logo no princípio destas linhas a que os submeto semanalmente, é vítima constante e incansável de brincadeiras sujas e desonestas das quais, obviamente, não participo. Talvez por esta circunstância eu seja uma das raras pessoas que se aproxima a menos de um metro sem que ele fique arisco; sou também um dos poucos a quem ele chama pelo nome e não por “cara-de-caralho”, “cheio-de-bicho”, “cu-de-burro”, “sem-prega” e outros títulos inglórios. É possível que devido a seu vocabulário ser reduzido a palavrões, paulatinamente Quito passou a ser, dentro do Anhanguera, considerado um bichinho de estimação destituído da mais simples comunicação dialógica. Mais do que isso, é um cambono sem direito a ter um não como resposta; não que o obriguem a fazer favores como comprar cigarro, buscar cerveja e vigiar os carros na rua, além de seus afazeres obrigatórios de rouparia. Quito não sabe, há tempos – talvez desde 1935, quando nasceu -, negar. Foi criado para servir; reclama, xinga, fica puto, mas trabalha duro e assim será até cantar pra subir.

Se chegar aos 73 trabalhando não é mole, um funcionário que enche a cara de pinga durante o expediente dificilmente receberá nota 10 na avaliação de resultados, mas pra isso Quito está cagando e com razão. O time do Sucatão, por exemplo, começa a jogar as 8h00; para tanto, os uniformes devem estar disponíveis no vestiário às 7h30; Quito o faz, todos os domingos, muito bem feito, inclusive deixando sabonetes e toalhas para quando do término do jogo; tarefa padrão para todas as categorias (depois do Sucatão tem os Veteranos, depois o 2º e o 1º quadros). Porém, o vestiário ao fim do jogo do Sucatão, time com média de idade de 70 anos e panças descomunais, é um desfile de alambiques e tonéis. O Brasil inteiro é representado por suas cachaças naquele vestiário. Daí o Quito, que não tem a menor doutrina, às dez da manhã já está bêbado e a qualidade do serviço cai drasticamente fazendo com que ele se enrole. “Quito, enche a bola!”, “Quito, cadê o apito?”, “Quito, pega isso, cadê aquilo?” é o que mais se ouve. Administrar os uniformes, bolas, chuteiras comunitárias - das quais sou usuário, o que faz com que a unha do meu dedão esquerdo se renove a cada 6 meses graças a uma imortal micose - e das chaves dos vestiários torna-o a figura mais requisitada do clube aos domingos, o que o faz perder sua irrisória paciência e destilar palavrões a rodo.

O Nacional do Bom Retiro, clube mais antigo e grande rival, que fica na Rua Anhaia de frente para saída dos fundos do Anhanguera, é o refúgio do nosso roupeiro. Basta alguém dar um bico na bola e a redonda ir parar na Anhaia – coisa que acontece três ou quatro vezes todo domingo -, que os gritos de “Quito! Bola na rua!” ressoam. E lá vai ele correndo buscar a bola; com efeito, cada vez que isso acontece, o malandro não perde a viagem ao Nacional e volta mais empilecado (tem fiado lá, o filhodaputa!). É aí que começam as brincadeiras. Entre suas atividades, incluindo aí a pingaiada, Quito passa o dia a amassar latinhas para vender; e basta encher uma sacola que vem alguém por trás e dá um bico e latas voam pra todo lado. Isso quando um batalhão não arremessa um monte delas, as latas, na sua cabeça. Quem começou os maus tratos para com o Quito foi Waldir, o Diabo; estranhamente tal relação, reciprocamente, é carinhosa, mas caracterizada por essa conversão do aperto de mão em uma tapa na nuca; do abraço em puro prazer que o Waldir tem de deixar o Quito exasperado, de modo que o Quito chega a ficar amuado quando o Diabo não lhe incomoda; vai entender! O fato é que aí muita gente acha que tem tal intimidade e pode “brincar” com ele também...

Pela primeira vez após 15 meses do texto em que lhes falei do Quito, essa figura histórica, mostro-o novamente, mas dessa vez num filme que o Angelo, meu gêmeo, registrou no último sábado na gloriosa e altiva festa de 80 anos do Anhanguera – uma comemoração que não deixou pedra sobre pedra -, sobre a qual discorrerei muito em breve. No vídeo abaixo, Quito se desvencilha dos braços de um Waldir chapado que tentava “roubar-lhe” a prenda que daria a uma suposta amante (no filme, se refere à tal como “minha chapa”) e Angelo corre atrás com a câmera em punho; eu também vou e faço um pedido final. A resposta sintetiza tudo o que escrevi; do vocabulário à personalidade desta celebridade da Barra Funda. Tirem as crianças da sala!

3 de jun. de 2008

Caldeirão do Inferno

Até a década de 40, aquele baldio servia para abrigar animais, mais propriamente burros. Os carroções de burro, naquele tempo, eram tantos muitos... Não pra menos; o comércio e as fábricas pela cidade dependiam deles. A farinha, o vinho, os tecidos e tudo o mais era carregado no “carro” de madeira amarrado no lombo dos animais. Já transcorri sobre este que não é objeto do atual. Este sim abarcará – por infeliz sorte minimamente (espero que por enquanto), devido à falta de mais informantes; só tenho o velho Souzinha - um lugar, entre os anos de 1942 a 1955, tal qual uma trincheira; uma resistência na Barra Funda, ainda que não exaltada dessa maneira pela população local, que julgava aquele terreno como maldito.

A população local, é preciso dizer, era basicamente composta pelos imigrantes italianos e seus descendentes, mais alguns espanhas e portugas. Isso, graças à então recente “expulsão” dos negros para as zonas periféricas, na vigente “italianização” da cidade. O tal terreno localizava-se à Rua Anhanguera, entre a Rua do Bosque e a Ribeiro de Almeida; bem em frente de onde hoje fica o Bar do Sinval.

A famosa Cocheira, onde os burros eram guardados e noturnamente vigiados em troca de esmolas por um negro forte, o Sinésio, sofreu ocupação da chamada “gentalha”, o que causou, durante soturnos 20 dias, confrontos entre os “invasores” e os carroceiros, sem conseqüências maiores que discussões e alguns empurrões. A mulherada ocupante, dizem, conversava com os carcamanos – era como chamavam os carroceiros – com pau de macarrão em punho. Outra importância que é preciso abordar relaciona-se ao período histórico; bombardeava pelo mundo a Segunda Guerra Mundial. A alemoada, os ítalos e japas sofriam terríveis perseguições nessas bandas. Em verdade, pouco a guerra afetou o almoço e a janta daqueles todos trabalhadores; seja qual fosse sua cor ou nação, quem tinha dificuldades já as tinha há muito. Os advindos do Eixo, porém, filhos de Hitlers e Mussolinis, passaram a ser vistos como possíveis – e prováveis – inimigos dos brasileiros de longos tempos. Não por nada! Os alemães haviam afundado – o que depois virou polêmica - nossos navios mercantes e o Brasil, naquele momento (1942), vivia um forte sentimento de revanche; daí a hora certa para os negros, os brancos desvalidos e a “gente desendeusada”, como feiticeiros e mães de santo, botarem banca pra cima dos italianos. A primeira providência foi arrancar todas as placas da Rua dos Italianos (onde hoje fica a sede do Anhanguera) e substituí-las por placas de “Rua dos Brasileiros”. As segundas e terceiras providências não foram tão amigáveis – às vezes chegavam às vias de fato com os imigrantes -, mas também não há registros de tragédias nem das mínimas.

Quando da posse da cocheira – com a liderança do negro Sinésio -, derrubaram as poucas baias que abrigavam os raros animais “raçudos”, arrancaram todos os cochos de madeira que depois usaram para o concreto que subiria suas paredes e botaram os burros e os raçudos todos amarrados na rua; nenhum bicho foi maltratado, roubado ou solto. Na manhã seguinte os carcamanos, renitentes, levaram seus animais para outro lugar. Um mês depois, o cortiço com vinte casas, varal de fora a fora na área comunitária e uma imagem de São Jorge sustentada numa pequena tábua pregada logo acima do portão do cortiço, pro lado de dentro, já era um entra e sai.

O cortiço era nada mais que um amontoado de casas com gente pobre, mas bem mais pobre que os pobres do lugar que, apesar de não terem lá muitos confortos (meu pai, por exemplo, dormiu num sofá-cama com molas pulando pra todos os lados até os 15 anos), manjavam salames, queijos e vinhos dos bons em largas escalas. A italianada comia bem. Havia um mundo lá dentro que só quem viveu é que sabe; ao contrário dos maus boatos que, à boca pequena, transformaram o beco numa espécie de celeiro dos endiabrados. Uma das razões às quais eu, particularmente, atribuo a tal cisma é o fato de “aqueles sujos” terem se apoderado da Cocheira; a outra razão é nada mais que preconceito racial e religioso. Muito embora houvesse diferenças, as pessoas vizinhas, após pouco tempo passaram a conviver respeitosamente com o pessoal do cortiço e até sentiam pena quando a polícia chegava ameaçando sentar a madeira ao menor som de batuque. Mas o batuque forte mesmo comeu ali anos antes na casa da Tia Olímpia, a “dona do samba”, na mesma Rua Anhanguera, casa que era colada à linha do trem e reunia nêgo de todo canto, inclusive os bambas da Glete.

Num dos primeiros dias de posse, um barraco – olha o trocadilho! – entre duas mulheres, a traída e a traidora, que acabou com as duas se atracando no meio da rua com direito a bofetes, unhadas, beliscões e puxão de cabelo em quem se metesse na “conversa”, decretou o apelido com que ficou conhecido o cortiço: Caldeirão do Inferno. Outros relatos apontam tal alcunha para os batuques em louvor a deuses assombrosos advindos da casa no fundo da vila; uma senhora negra, a velhinha D. Zilda, por exemplo, quando ia portão adentro, fazia um tremendo esforço pra olhar o impávido São Jorge em cima de seu cavalo branco. Erguia os braços em direção à imagem e gritava “Ogum Iê”, assustando a gente que passava na rua. Quando topavam a senhora proferindo aquela estranha saudação, apertavam o passo; as crianças chegavam a sair correndo de medo da “velha corcunda”, que era a avó de Zuleica, a recém-casada traída que pegou seu marido Eneu de safadeza com a Firmina, recém-viúva vizinha de parede. D. Zilda já brigava com Eneu todo dia porque o malandro, ao passar pelo portão do cortiço, também fazia sua saudação a São Jorge, mas a seu modo: “Dá-lhe, Corinthians!”, o que causava arrepios na velha; dizia aquilo ser um grande desrespeito. Depois da fornicação com a Firmina então, o caldo entornou de vez pro lado do Eneu e era um qüiproquó todo dia entre o triângulo mais a velha.

O Caldeirão do Inferno, que era morado por várias outras figuras pitorescas, figuras mais-que-interessantes que ainda – se me for dada essa benção - destrincharei, foi um templo de resistência no que diz respeito à luta por um espaço até então sem dono, servido aos burros em detrimento da gente sofrida; a uma forma de convívio d´outrora com portas e casas abertas entre açúcares e farinhas voando dentro de xícaras de casa em casa em mãos varadas por papos vespertinos com café e bolo; às relações cordiais e emergenciais entre quem precisa de ajuda, seja pra um mutirão de construção ou de mudança ou pra cuidar de um ente doente; à fé inquebrantável “num mundo justo na paz de Oxalá, que assim seja”, como terminava a reza que os moradores do cortiço faziam todas as segundas feiras...
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