28 de abr. de 2008

O Tirone e os Cabeleira - Parte III

A cena das garrafadas foi espreitada pelo Souzinha, um negrinho de 7 anos, que residia a uns cem metros dali. Do vão de um tijolo deslocado no muro do “Caldeirão do Inferno”, o cortiço em que morava, viu toda a grotesca covardia impingida a Tirone. Talvez a única testemunha viva da fatídica noite desde a morte do Seu Augusto e de poucos outros, Souzinha relatou-me, com ares de suspense, alguns detalhes há poucos dias no Bar do Sinval.

Naquela noite Augusto não deixou Tirone ir pra casa. Enquanto o sangue não esfriasse, enquanto a adrenalina não baixasse, não seria nada prudente deixá-lo ir. Faria, com certeza, alguma merda, tal qual os Cabeleira haviam feito para o pobre Teixeira. Os cortes dos estilhaços, nas costas e pernas, eram bem pequenos e, sem que houvesse a necessidade de agulha e linha pra dar ponto, Augusto resolveu a questão à moda que Tirone, já bem mais velho, ensinou a mim e aos meus irmãos em casos de corte, arranhão, ralada, pancada, bolha aberta, micose, olho-de-peixe e unha solta: metendo álcool. “O álcool limpa e não deixa inflamar”, ensinava o velho.

A notícia voou. No domingo de manhã o bairro inteiro comentava. Foi uma balbúrdia que só. Ninguém queria saber a manchete do dia gritada nas ruas pelos meninos jornaleiros. “Os Cabeleira pegaram o Tirone”, “Os Cabeleira mataram o Tirone”, “Tirone tomou tanta garrafada que está irreconhecivelmente estrepado”; só este assunto deu ibope naqueles longínquos dias. Um incauto foi reconhecer seu corpo no necrotério e uma multidão, após o jogo do Anhanguera, fez fila para vê-lo em casa; claro que ninguém entrou. O sensível Tirone mandou todo mundo “pra puta que os pariu! Vão cuidar das suas vidas!”. Quase todos os que voltariam para os respectivos úteros de suas mãeretrizes a mando do terno Tirone eram amigos, companheiros de futebol e de cabarés. A exceção era Alvinho, um dos Cabeleira que não participou das garrafas voadoras. Alvinho foi, por sua conta em risco, pedir para que Tirone botasse uma pedra, esquecesse a agressão. Ele sabia que, dessa vez, seus amigos de “cabelo” passaram da conta. Tirone não era o inofensivo Adolfinho... Antenor, que lá estava, mandou Alvinho ficar tranqüilo; ele mesmo falaria com Tirone para que não houvesse repique. Conversa fiada!

Mesmo para o maior e mais respeitado valente do bairro, não era jogo enfrentar os Cabeleira de uma vez. A fama de covarde da turma se confirmava quase que semanalmente; só brigavam juntos, em larga vantagem numérica. Na terça feira após as garrafadas, os Cabeleira, em seis, deram uma sonora surra em Acácio. A surra se deu porque Acácio começou a organizar apostas em torno de um possível revide de Tirone pra cima dos Cabeleira. Eram papéis com combinações de resultados, como de futebol, do tipo: Tirone versus Adolfo; Tirone versus Vovô; Tirone versus Noel; e por aí vai. Acácio tinha seu palpite pra cada “mano-a-mano”, e quem acertasse todas as combinações ganhava um prêmio em dinheiro. O jogo durou apenas esses dois dias. Quando os Cabeleira souberam, pegaram o Acácio no Sempre Aberto; a reboque, deram também um cacete num bêbado que apostou na vitória de Tirone em todos os confrontos.

Na quarta feira seguinte tudo tinha, aparentemente, voltado ao normal. Tirone já estava na lida, em seu carroção de burros. Naqueles dias amigos o rodeavam, temendo a possibilidade de um confronto direto mais acintoso. Era suicídio ir pra cima dos Cabeleira. Sem tocar no assunto durante os primeiros dias, Tirone deu uma de “João-sem-braço”, deixando o tempo passar até a poeira baixar. Muito certo, pois a gangue também estava atenta em seus movimentos.

Após duas semanas Tirone já tinha cruzado na rua três vezes com pequenos grupos dos Cabeleira; andavam cautelosamente em três ou quatro pela Barra Funda – não esqueçamos que eram torcedores fervorosos do Carlos Gomes. Depois de um mês os inimigos não tinham mais dúvidas de que Tirone encolhera o rabo no meio das pernas e se contentara em mostrar sua valentia dentro de campo; correu à boca pequena pelo Bom Retiro que Tirone se garantia por estar ao lado de Barraca – em verdade, segundo o Souzinha, “Barraca nem chegava perto da competência e da força do Tirone em brigas”, opinião corroborada unanimemente no bairro. Para toda a assistência da “novela”, não era possível um intrépido daquele quilate deixar por isso mesmo; ou então não era tão braçudo assim.

Frio, Tirone aguardou o cenário propício; não descansaria enquanto não os pegasse. Mal conseguia dormir. Os Cabeleira já haviam, até certo ponto, relaxado; não imaginavam um revide a essa altura do campeonato. Num começo de noite de meio de semana, após guardar os animais, Tirone avistou entrando no Fecha Nunca, seu bar preferido, o Adolfo. Foi atrás. Estava lá, de costas e sozinho, encostado no balcão, o mais forte dos Cabeleira. Grande momento; a sorte reservava o que definiria, dali em diante, o desfecho da história. “Deitar” primeiro o mais forte da horda era a estratégia, ainda que não planejada, perfeita.

Tranquilamente, Tirone encostou no balcão ao lado de Adolfo – que só então o viu - e pediu uma garrafa de cerveja...

(Continua)

23 de abr. de 2008

O Tirone e os Cabeleira - Parte II

Dizem os antigos que no Carlos Gomes tinha tudo o que não presta. Tirando o fator “dentro de campo”, sempre bem representado, o resto era só devassidão; vagabundos imprestáveis, maloqueiros imundos, estelionatários, drogados (havia os maconheiros) e ladrões. Era essa a reputação do clube. De fato muitos maus elementos freqüentavam os jogos, mas nem todos eram assim. Alguns anos mais tarde, pouco antes de sua extinção, na década de 70, havia um ritual bizarro para entrar pra “torcida”, chegando a envolver espancamento e picada na veia. Descarga de caminhão!

Na década de 40, os Cabeleira botavam o terror na área. Praticavam, para aquele tempo, uma violência exagerada, coisas terríveis. Bolinavam donzelas nos bondes, bebiam e quebravam bares e não pagavam, batiam em bêbados, se drogavam, falavam “indiscretices” para senhoras casadas, roubavam de tudo – chegaram a arrancar dois dentes de ouro da boca do Perseu, como faziam com defuntos, após o desmaiarem - e mataram o Teixeira na Rua Salta-Salta. Não se sabe até hoje qual era a bronca, mas meteram uma bala (uma só, após o lincharem, junto com o Adolfinho, que ficou vivo) no peito do coitado. A polícia estranhamente não os prendeu...

A Barra Funda de baixo, nessa época, já era conhecida como México e tinha requintes do melhor faroeste de Giuliano Gema e Lee Van Cleef. Esta história do assassinato do Teixeira pelos Cabeleira ter passado impunemente confirma a terra sem lei que era o pedaço. Não à toa moravam ali, na mesma época, Francês e Galinha, os dois maiores bandoleiros que a região já conheceu e que ainda serão tema por aqui.

A turma dos Cabeleira era composta por cerca de vinte homens, entre eles alguns adolescentes; todos do Bom Retiro. Se encontravam na Barra do Tibagi, na gloriosa esquina com a Visconde de Taunay, onde meio século depois bebi no bar do Zêpo. Todos os Cabeleira eram contraventores; nenhum trabalhava. Viviam de furtos. Só andavam em turma e adoravam espancar, sempre covardemente, incautos adversários.

No caso em questão, o adversário era o Anhanguera, personificado na figura de meu avô, o Tirone. Naquele sábado de maio de 1947 houve o segundo e último duelo entre Carlos Gomes e Anhanguera; um festival no campo do XV de Novembro. Como já havia acontecido na primeira vez, a peleja nem chegou ao fim. O pau quebrou dentro de campo; ninguém entra e ninguém sai (sorte do Anhanguera, que tinha bem menos torcida). Depois os ânimos se acalmaram e cada um foi pra sua casa, uns machucados, outros nem tanto... No entanto, todos os envolvidos na briga se conheciam de longa data e as fofocas e notícias sobre uns e outros corriam pelo bairro. O México não é grande; o Bom Retiro também não. As rivalidades, durante a semana, pelas ruas, pelos bares, campos, jogatinas e zonas, chegava a dar uma trégua e abrir até concessões para educados “olás”. Não na noite deste sábado, em que os Cabeleira decidiram impor fim à banca do Tirone, dentro da sede do Anhanguera.

As 22h00 a maioria do pessoal do Anhanguera já tinha deixado a sede. Jogavam “patrão e solto”, apoiados no balcão, Tirone, Aragão e mais dois senhores, Nelson e Jacó. Todos alterados, menos o azarado Aragão, que era o “solto” e estava ainda com a goela seca. Súbito, ouviram gritos vindos da Rua do Bosque do tipo “Vamos quebrar essa sede de merda!”, “Viva o Carlos Gomes, morte ao Anhanguera!”. Aragão sacou de quem vinham os berros e gelou, correu pra fechar a porta, mas foi impedido pelo Tirone: “Deixa eles virem. Se fechar eles arrombam e é pior.” Naquela época, não tinha telefone na sede e polícia passava de vez em nunca. Aragão, sujeito polido, sugeriu que Tirone se escondesse; era ele que os Cabeleira queriam. Não foi atendido...

A turma entrou na sede fazendo barulho, metendo os pés na parede e empunhando garrafas de cerveja. Vieram bebendo no percurso de 1 quilômetro na reta BarradoTibagi-RuadoBosque. Estavam em oito. Os oito que gostavam de briga, que só brigavam em grupo. Um tal de Vovô era o líder da alcatéia. Ordenou para que todos saíssem e que ficasse apenas o Tirone. Aragão tomou a frente, tentando pôr panos quentes, enquanto Tirone interpelava: “Pra que isso, Niquinho? O jogo acabou. Adolfo, vai embora e leva tua turma”. Adolfo era o mais forte de todos, um armário. De nada adiantou a conversa. Em instantes, quebraram o braço do Aragão e foram pra cima do Tirone, que conseguiu pular a janela e correr pra rua, sendo logo adiante alcançado, não pelos oito, mas por estilhaços de vidro.

Incrivelmente, 116 anos depois, na Barra Funda, foi reeditada a Noite das Garrafadas, acontecida nos tempos de império, no Rio de Janeiro, evento que pode ser um dia abordado por outro Velho, o Simas. As garrafas voavam na altura do número 250 da Rua Anhanguera. Por segurança, Tirone escondeu-se atrás de um poste bem na frente da então residência de Augusto, um grande amigo, diretor do Anhanguera. Do outro lado da rua, a gangue se postou e arremessava as garrafas – há quem diga que foram atiradas mais de cinqüenta -, que explodiam no muro e transformavam-se em cacos que atingiam as costas de Tirone, que gritava socorro a Augusto. Depois de alguns intermináveis minutos, este percebeu que se tratava do amigo e abriu a porta. Tirone entrou aflito, com vários cortes e sangue escorrendo e pediu, enlouquecido, a arma para Augusto, que negou veementemente. Os Cabeleira, gargalhando, foram embora...

(Continua)

18 de abr. de 2008

Anhanguera dá Samba X

Dou uma pausa rápida no causo “O Tirone e os Cabeleira” para falar – já está chegando! - sobre o Anhanguera dá Samba!

É impressionante a maneira com que Sucena se comporta onde quer que seja. Proceder reto! Uma roda comandada pelo malandro tem um quê de seriedade e outros milhares “quês” de descontração. Wilson Sucena demonstra uma autenticidade única e certezas inabaláveis, que só a boemia ininterrupta por anos a fio concede. Outro dia, por exemplo, balbuciou: “Não entrem na besteira de dizer que Chico Buarque não é o maior compositor do Brasil.”. Entre sustentações polêmicas regadas com muita cerveja, é assim que, do alto dos seus “quase cinqüenta”, Sucena não se faz de rogado, no melhor estilo “foram me chamar? Eu estou aqui, o que é que há?”. Chega chegando e não faz questão de agradar ninguém! Como ele mesmo diz: Morô?


Sucena matou a pau. Repertório magistral; o mais variado até agora em todas as edições do Anhanguera dá Samba!, e uma grande generosidade. Após a participação de Tâmara, jovem cantora que apresentou ao público, Sucena agradeceu o convite e mais-que-tais e me chamou para tocar o cavaco. Toquei, cantei uma música, e o Sucena, esbanjando categoria: “Manda aí, Favela! Mais uma.”. Vaidade zero, malandragem nata. Pudera, além da experiência nas rodas, o cabra jogou durante anos na várzea. Em vários times, meia esquerda. Kico Nogueira relatou-me outro dia no Sabiá, ao pé do ouvido, para que o Sucena não escutasse: “Esse aí era um craque de bola!”. E, depois, o homem confessou: “Parei de jogar bola por causa do samba!”. Não é preciso dizer mais nada. Com vocês, Wilson Sucena, bom de bola e de samba:
Se Wilson Sucena é íntimo dos Inimigos do Batente, assim como o Chico Aguiar, que foi o convidado em Outubro do ano passado, o que dizer então do convocado desta próxima sexta, Edu Batata? Foi integrante da primeira formação do grupo e era o cavaco na saudosa época do samba do CUCA, no Raul Tabajara, em 2003 e 2004. Depois deu seqüência em um projeto seu, o Grupo Samba Rahro (com “h” mesmo) e agora se prepara para lançar um discaço solo. Na minha modesta opinião Edu é, de toda a nova geração, um dos sambistas mais completos. Ótimo cantor, dono de um timbre incomum, cavaco de primeira qualidade, compositor inspirado e versador dos bons. Sua presença numa roda é marcante e seu repertório é invejável. Edu, criado nos sambas de butecos periféricos – Salve Pirituba! -, no partido alto, nos terreiros e quadras de Escolas, a quem chamo de “irmão”, é nosso convidado para a próxima roda. A casa é sua, mano.

Para saber mais informações e ouvir algumas músicas de Edu Batata, entre: www.myspace.com/edubatata8

Ouça essa brasa de Edu Batata, Senhora da Doçura. Só clicar no play.


Até Sexta, dia 25!

16 de abr. de 2008

O Tirone e os Cabeleira - Parte I

Quem me conhece sabe que sou, na contramão de todos os homens da minha família, um sujeito pacífico. Sempre evitei as “vias de fato”, com a justa exceção de quando, no cu-de-boi, estão envolvidos pai, tios, irmãos ou alguns seletos amigos. Ou seja, mesmo não sendo adepto da resolução de qualquer intempérie na base do cascudo, já participei de algumas pancadarias. Vindo de uma família de broncos, seria impossível passar em branco, ainda mais quando um campo de várzea é a extensão da casa e referência de encontro da horda. Houve outro pacato; o falecido irmão mais velho de meu pai, o Wande. A única vez que agrediu alguém foi quando, numa confusão no meio de um jogo do Grajaú, entre xingamentos e ameaças, o cara que ele tentava acalmar chamou o Wagner, seu irmão, de filhodaputa.

De toda a família, meu avô foi disparado o mais ignorante. Seu currículo de pancadas é vasto. Foram inúmeras as histórias de sopapos que soubemos dele; a maioria pelas bocas do bairro. A primeira delas que eu soube – e essa contada orgulhosamente pelo próprio – foi quando, aos oito anos, o velho deu uma rasteira num inspetor da escola que batia nos alunos; pulou o muro e nunca mais pegou num livro. De todas as encrencas que participou, a esmagadora maioria se deu por causa do futebol. As intensas rivalidades entre os times de várzea dividiam bairros e ruas; definiam os freqüentadores de bares e bailes; despertavam ódio por desconhecidos que defendiam cores inimigas.

Na Barra Funda, a maior de todas as rivalidades do futebol varzeano foi entre Carlos Gomes e Anhanguera. O Carlos Gomes era um time mais antigo, com uma enorme torcida alcunhada – vejam só! – BBB: briguentos, bandidos e bêbados. O Anhanguera, fundado em 1928, é fruto de uma dissidência da diretoria do Carlos Gomes e teve como objetivo principal ser o maior organizador de eventos sociais da região como: bailes de todos os tipos, concursos de fantasia e de misses, campeonatos de várias modalidades de jogos como ping pong, sinuca e bocha, além do esporte bretão. Com essas realizações, os jogadores e simpatizantes passaram a freqüentar todas as noites o bar da sede, na esquina da Anhanguera com a Rua do Bosque, para jogos como patrão e solto, sueca e pôquer, tudo acompanhado de muita birita.

A citada dissidência levou apenas os sujeitos pacatos do Carlos Gomes; os arruaceiros continuaram por lá. Na fundação do Anhanguera meu avô tinha dez anos; começou a jogar aos quinze e aos dezesseis já era beque-capitão. O Anhanguera nunca foi famoso pela torcida (jamais foi um time de massa), nem por ser de briga. O time não era reconhecido como brigão, mas Tirone sim; e foi com ele que começou a fama de que o Anhanguera andava ganhando, como se diz no brejo, na bola e no pau, jogos contra esquadras repletas de valentões. Efetivamente, os únicos que aderiam ao pega-pra-capar junto com o velho nos jogos do Anhanguera eram Barraca e Antenor. Mais ninguém. E meu avô, dizem, era briga pra dez homens. Quando enervava, sai de baixo. Para entrar no meio de um perereco no Pacaembu, por exemplo, deixou meu pai, então com três anos, nos braços de um senhor desconhecido. Outra vez, no cinema, enfiou o braço num fulano que apenas sentou numa cadeira ao lado de minha avó e soltou algum muxoxo, interpretado como “sem-vergonhice” pelo Velho, que, com certeza, nem entendeu o que o sem-sorte disse.

Com a fama de arranca-toco devidamente lampejada no lugar, não lhe faltavam desafios. Era como deter o cinturão dos pesos-pesados. Pra ser temido, é preciso arriar o “campeão”, título imaginário envergado pelo Velho Tirone após três episódios: em 1937, o China, um caboclo grande e brabo, correu dele três voltas no campo; em outra situação, num baile no Anhanguera promovido pelo Guerino, seu irmão saxofonista, um negrão enorme que tocava surdão o estranhou quando recebeu dele a paga e acabou na lona; e na Copa do Mundo de 1938, quando caçou pelo bairro inteiro seu próprio irmão Antonio, que comemorara a vitória – roubada, urrava o Velho – da Itália em cima do Brasil. Sobre suas convicções ninguém tripudiava; ora, como um brasileiro, mesmo sendo filho de italianos, mesmo sendo seu irmão, podia torcer contra o Brasil? Voltariam a se falar após dois anos... Sua valentia era, de certa maneira, bem vista no Anhanguera. Pelo menos ninguém iria deitar e rolar, de graça, nos domínios do rubro-negro. No mínimo teria que enfrentar Tirone, e de quebra Barraca e Antenor.

Pois bem; tal fama acabou por despertar, após um jogo entre Carlos Gomes e Anhanguera (um dos dois únicos da história), a ira de uma turma pesada do Carlos Gomes, os temidos Cabeleira, e provocou o mais alardeado e memorável embate - uma verdadeira guerra pessoal - da história da Barra Funda, uma epopéia que duraria meses.

(Continua)

9 de abr. de 2008

A família de tapeceiros

Contou-me na semana passada o grande Julio Vellozo que estava assistindo a uma aula no curso de História que faz na USP e, concomitantemente, lendo o livro A Dança dos Deuses – Futebol, Sociedade e Cultura, de Hilário Franco Jr. O professor desfiava sobre coisas impossíveis de se escrever, desprovidas de qualquer registro, qualquer documento, quando avistou o tantas-folhas do Julio e sentenciou:

- Por exemplo: o futebol de várzea. É impossível escrevermos sua história completa, pois infelizmente não existem mais clubes que nasceram antes dos anos 40.

A rebatida veio como um cruzado de esquerda e, no ato, um sarcástico Julio levanta a mão desviando, ainda sem abrir a boca, todas as cinqüenta e três cabeças para sua direção, no fundo da sala:

- Existe sim!

O docente, certo que era blefe, desafiou, submergindo em sua ignorância varzeana:

- Qual clube, Sr. Vellozo?

- O Anhanguera. Faz oitenta anos neste 2.008.

- Fica aonde? Onde fica?

- Desde 1970 sediado à Rua dos Italianos, no Bom Retiro; é um clube da Barra Funda. – Arrematou o impiedoso Julio, chegando a sentir o sangue da pobre vítima escorrer por entre seus dedos, como se tivesse cravado uma peixeira no perplexo professor, que, resignado:

- Ah bom. Aí, sim... Se nasceu na Barra Funda...


Principiei com essa passagem que o Julio relatou-me para revelar aqui alguns dos milhares de documentos – mais precisamente fichas de matrícula – das décadas de 40 e 50, que alinharei a um causo. Documentos mais antigos virão mais pra frente.

O Anhanguera, assim como a esmagadora maioria dos outros times da Barra Funda, Bom Retiro, Brás, e dos bairros “italianizados” nas três primeiras décadas do século passado, foi fundado e era composto por brancos filhos dos imigrantes da bota; trabalhadores pobres que tinham na várzea um raro espaço de lazer; daí os grandiosos bailes, os concursos de miss e de várias modalidades esportivas, além, é claro, dos antológicos festivais e campeonatos futebolísticos. Foram os anos áureos da várzea – da década de 40 até o começo dos anos 70.

Junto com os registros abaixo, pesquisei com os mais velhos do bairro algumas informações sobre os Olivieri, que foram de longe a família com o maior número de indivíduos no Anhanguera. Pareciam formiga, os “tapeceiros”; eram chamados assim por dominarem tal ofício (até hoje representados pelos irmãos Walmir e Wanderlei na Rua Anhanguera). Dizem que, no ano de 1955, eram mais de cinqüenta os associados com tal sobrenome, o que começou a causar férteis imaginações nas cabeças do bairro inteiro. Teve um buchicho de que o clã estaria disposto a tomar o poder elegendo um membro em votação para a presidência, o que fez com que o então presidente proibisse qualquer novo Olivieri de se matricular, alegando que “devemos dar espaço para outras famílias”. O tema virou assunto no bairro. Nos butecos, na feira, nas fábricas e nas janelas das fofoqueiras ganhou força uma suposta rebelião esquematizada pela família em jantares no nº. 362 da Rua do Bosque... Nada disso viria a se concretizar.

Com tempo a família foi se dissipando do Anhanguera. Muitos mudaram-se para outros bairros, outros deixaram de ir quando perdemos a sede da Rua Anhanguera; outros, que só iam “dansar” (vide as fichas!) nos bailes pararam de freqüentar o salão após se casarem... Enfim, quarenta anos depois resta ainda um bravo. Wilson Olivieri detém hoje uma ficha de matrícula das mais antigas dos associados em ativa. E – espero - será eleito para o próximo mandato presidencial. Porque além de ser número baixo sabe o que deve ser feito - e principalmente o que não deve - para continuarmos resistindo enquanto time varzeano.

Alguns dos Olivieri:

2 de abr. de 2008

Dobrada às avessas

Perto de alguns distintos amigos, sou um joão-ninguém pra falar sobre o tema buteco. Se tenho, por um lado, uma considerável litragem percorrida, o mesmo não se pode dizer da variedade de ambientes em que já cravei meus cotovelos nos balcões. Nessa praia sou um caseiro, não um desbravador; gosto (mais) de beber onde me sinto em casa. E são pouquíssimos os bares que apresento e me orgulho. Chego, às vezes, a parecer o dono da birosca. Ora, a alguns clientes é dada a liberdade de expulsar otário do estabelecimento e pagar quando der. Num buteco decente há uma comunhão – assim como discussões - entre os freqüentadores, tal qual uma torcida pelo mesmo time; há a sensação de prazer e empatia pessoal e intransferível que cada bar proporciona, conseqüência das experiências bebidas, comidas, batucadas ou conversadas madrugadas adentro. Há, enfim, uma cortina invisível que se abre quando chega o primeiro cliente e se fecha na despedida do último bêbado. Porém, há perversidade em jogo; as voadoras que a tradição e a simplicidade tomam dos afetados marqueteiros comprometem tudo e aí o bar já era. Por isso é que estou, sempre, nos meus três bares. Mas prefiro, sempre à minha singela maneira, contar um belo causo de buteco(s).

São dois bares numa Rua da Casa Verde que agregam, do jeito mais autêntico possível, todas as qualidades indispensáveis para se afirmar que são grandes butecos. Até hoje não cheguei à conclusão se o que me fascina ali é a Rua ou se são os Bares. Porque a Rua, essa sim – e mais até que os bares -, tudo nela me comove; o movimento de veículos quase zero, se não fosse pelos freqüentadores dos dois pés-sujos; entre os sobrados, casas humildes sem nenhum acabamento, com tijolo à vista; criançada de pé no chão empinando pipa, jogando bola e soltando balão chinesinho; jovens batendo papo em volta de uma fogueira no meio da rua, inevitavelmente dividindo um garrafão de vinho vagabundo; e a morena mais linda de toda a zona norte. Tudo isso junto me causa - particular subjetivo - um súbito arrebate em que regresso pra não sei quando.

A Rua me enfeitiça, mas o motivo que me leva pra lá é o Bar. Quando cito o bar falo de dois, o portentoso bar do Mauro e o acolhedor bar do Tuca. Em determinados momentos os bares se confundem porque, por incrível que pareça, os clientes são os mesmos, o que faz com que se um bar está cheio uma coisa é certa; o outro está vazio. Estou exagerando. Não precisa nem o bar estar cheio. Basta ter dois ou três caboclos recostados no balcão do Mauro e a lei prevalece; Tuca vazio. Aí reside o que há de mais místico na Rua, embora haja – e tentarei explicar – uma base racional para tal efeito. O dois Bares ficam um de cada lado da Rua, que é pequena (uns 300 metros). No meio da Rua tem um canteiro que a divide e o único caminho pra se chegar é entrando primeiro do lado da Rua em que fica o bar do Tuca. Vantagem pra ele? Não. Um misterioso consenso é elaborado do único jeito possível para o bom funcionamento dos dois estabelecimentos; o bom senso. Entre os clientes é decidido qual o bar agraciado do dia e, conseqüente, da noite. O primeiro bêbado a chegar é quem decide. Porque o segundo vai beber com o primeiro e assim vai e pronto. O outro bar fica relegado às moscas, mas jamais fecha as portas, numa belíssima demonstração de altruísmo. Já teve dias em que o pessoal estava todo no Mauro e o Tuca faturou zero. Nadica de nada.

O que mais impressiona é que até os aniversários dos freqüentadores é comemorado - sempre aos Sábados - alternadamente. O faturamento sobe; por isso é cada aniversário num buteco, sem choro nem vela. Peninha cuida da costela no bafo, Zé Augusto puxa samba das suas azul e branco (Portela e Peruche), Galo conta piada pra delírio do Sardinha, Grapete, com seu gingado, tira a nega pra dançar (aos Sábados as mulheres vão), Cadina conta suas milhões de histórias, Dilnei organiza o jogo de tranca e Mané desafia na Sinuca. Tudo isso presidido moralmente pelo grande Basílio, o Pé-de-Anjo e efetivamente pelo grande Zulu, que tudo vê e pouco fala, como os bons malandros devem ser. A negrada do Cruz da Esperança marca presença e a merda tá feita. Coisa linda! Eu sou um dos três ou quatro menores de 50...

Tudo isso é muito bonito, mas quando algum evento interrompe o bom andamento das coisas, o caldo entorna. Principalmente quando o “evento” é o dono do moquifo. Aconteceu no Carnaval deste ano e provocou, assim como um El Niño, uma rápida alteração no clima e a modificação nos padrões naturais estabelecidos. Demorou um mês pro mar se acalmar e a maré baixar.

O Sábado de Carnaval amanheceu e o Mauro estava fechando as portas, assim como o Tuca. Não tinha jeito, dali a poucas horas teriam que reabrir. É certo que chegaria gente pra beber antes do meio dia. E não deu outra. Onze da manhã chega o Zulu e toca a campainha do Mauro (vejam que beleza: o Mauro mora em cima do próprio bar!). Depois de dez minutos, a esposa do Mauro bota a cabeça pra fora da janela. Zulu já estava acompanhado de dois ou três sedentos; “O Mauro já está descendo.” disse ela. Após quarenta minutos e a certeza de que Mauro não apareceria (nem abriu o bar naquele dia), não teve jeito; os já dez cachaças atravessaram a rua e espreitaram o bar do Tuca; ninguém lá dentro. Um deles entrou no carro e foi até a casa do homem, ali pertinho. Três toques na campainha e o Tuca aparece, todo inchado de sono e com uma puta cara de maracujá:

- Joga a chave do bar!

- Peraí... Toma! Olha, o bar tá todo sujo.

- A gente limpa.

- Tá certo. Vai marcando o que vocês beberem que eu chego daqui duas horas. Preciso dormir mais um pouco.


Resultado: Mauro serviu, durante um mês, as moscas!
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