29 de jan. de 2009

Anhangüera dá Samba XIX

Amanhã, sexta feira, abrem-se – com cachaça! – os trabalhos para a temporada 2009 do Anhangüera dá Samba!. É lá, na beira do campo, no chão de cimento , que uma vez por mês os Inimigos do Batente recebem um convidado especial. Mês de Dezembro, por exemplo, Dona Inah foi quem comandou a roda. Esteve, pra variar, iluminada. Cantou, em meio a seu respeitável repertório, as músicas do Gudin que gravou recentemente, para deleite dos fãs. D. Inah, com uma simpatia e generosidade tremendas, arrasta gente!


Começamos o ano convidando uma das maiores intérpretes do samba na atualidade, Iracema Monteiro. Fernando Szegeri escreveu na agenda do samba e choro: “Quem conhece a beleza de sua voz e o poder que tem frente a uma roda de samba sabe do que estamos falando. Iracema integrou por uma década o comando da maior roda de samba do Brasil, no legendário Candongueiro, e continua sempre à frente dos mais competentes pagodes da Cidade Maravilhosa”.

Falei ontem com Iracema e a mulher está animadíssima. Será um estrondo a roda de samba de amanhã, não tenho dúvidas. Deixo então, como quase sempre – ultimamente tenho andado relapso com os registros, é verdade -, não o áudio, mas o endereço do myspace da Iracema (clique aqui). Recomendo que ouçam a terceira música, Espelho da Vida, uma belezura de música de ninguém menos que Dona Ivone Lara.

Até amanhã!

27 de jan. de 2009

Gabriel de Medeiros


Clique, após a leitura do texto, para ler o comunicado.


Na esteira do último texto, sobre o nosso novo presidente, venho participá-los de um comunicado de mesma ordem, datado de setenta anos atrás. O autor é Gabriel de Medeiros, uma lenda da Barra Funda. Sr. Medeiros era um comerciante simples e residia na Rua Baixa (hoje Ribeiro de Almeida). Muito embora não tenha sido um dos fundadores do rubro-negro, foi presidente da agremiação em inacreditáveis cinco mandatos, numa época em que os estatutos do clube não permitiam a reeleição; sendo assim, Gabriel presidiu praticamente ano sim, ano não durante anos.

Havia, sempre houve, nomes de respeito na diretoria. Os Sabatini, por exemplo, detinham inúmeros imóveis e comércios na Barra Funda de baixo e o patriarca, o poderoso Sr. Matheus, era um rubro negro ferrenho. Ele, em pessoa, comparecia às Assembléias Gerais e dispunha sempre de quantias generosas para o bem do clube. Os irmãos Vignola, Miguel e Antonio, que foram os primeiros presidentes e os homens de maior influência no clube, eram apontados na rua como “os donos do Anhangüera”. Jeronymo Caetano Ferro, Orlando Dias, Miguel Satriano, João Cidro, Saverio Russo e Bartholomeu Maggi formavam o restante da nata.

Eis que começa a freqüentar o clube Gabriel de Medeiros. Em pouco tempo, fazia parte da diretoria e, mais um pouco, comandava tudo. Medeiros era um líder. Com ele, a diretoria do clube passou a ser, em pouco tempo, a representação do bairro junto à prefeitura. Havia, desde antes, uma comissão distrital, na qual juntavam-se alguns membros das várias agremiações varzeanas para discutir solicitações, principalmente esportivas, aos prefeitos. Naquele tempo uma aura brilhante cobria os clubes sociais; o Anhangüera já era freqüentado por gente de toda a região central; seus bailes e matinées eram gloriosos.

Mas Gabriel de Medeiros, um comerciante sagaz, um homem inflamado e bom, reivindicava mais. A partir de sua gestão, as reuniões de diretoria se dividiam em duas: a primeira, pelo Anhangüera; a segunda, pelo bairro. Solicitava instauração de praças, alargamento de vias, novas linhas de ônibus, instalação de postes de luz, e por aí vai. Gabriel sabia da força do clube e angariou junto à prefeitura, além de várias melhorias para clube e bairro, um moral até então inimaginável.

Em 1.939 Gabriel de Medeiros cumpriu um mandato de se tirar o chapéu. Tão glorioso que houve Assembléia Geral com mais de cem pessoas do bairro para discutir a hipótese de reeleição, algo jamais pensado. Porém os estatutos venceram e Gabriel passou a bola para Salvador Mastrângelo, ficando como presidente do Conselho Fiscal. O comunicado, datado de 21 de Dezembro de 1939, apenas deixa claro que Gabriel de Medeiros não era um homem das letras. Mas, pra quem conviveu ou ouviu falar, sabe-se que foi um dos maiores que a Barra Funda já viu.

22 de jan. de 2009

O novo presidente

Eleições sempre despertam um tremendo falatório. De lá e de cá, as propostas têm de ser as que mais conjuminem com os desejos e necessidades da comunidade interessada. No final de janeiro teremos nova eleição; esta, no entanto, não desfralda falação nenhuma, não permite embates nem debates. Porque, no Anhangüera, a chapa é única. Desde 1997, cada biênio vem sendo representado pelo mesmo grupo, alternando-se apenas a posição das moscas na vitrine. É, de fato, uma diretoria heróica, honrada e corajosa. Tão corajosa que não há alguém que a ouse desafiar, alguém que ameace botá-la abaixo.

Sempre que chega o final de um ano par – ano de eleição -, os boatos tomam de assalto as ruas do bairro. Particularmente, considero meu bairro o melhor de todos, mas há que se dizer: não conheço bairro mais fofoqueiro que a Barra Funda. “Bairro fofoqueiro”, na verdade, acaba sendo pesado e, mesmo, injusto de minha parte. O que acontece é que tem três ou quatro figuras – carimbadíssimas, aliás -, que falam demais, chegando a inventar sobre a vida alheia. Aqui não se faz nada impunemente. Você não sabe, mas saiba que estão na rua dizendo que você deve pra fulano, que brigou com a mulher, que brochou com aquela vagabunda ou que está escondendo (ou empunhando demais) a dinheirama que anda ganhando, provavelmente provinda de algum trambique.

Nas últimas eleições diziam que Braga, opositor confesso e orgulhoso da diretoria, encabeçaria uma chapa em que resgataria das profundezas gente da pior estirpe extirpada do clube há anos. Na relação, constavam nomes como o de um antigo craque do rubro negro que, após uma tentativa frustrada de surrupiar fogos de artifício em uma festividade, foi sumariamente expulso. Outro nome era o do Dedé, que fora exumado quando, num dia de loucura, agrediu nosso roupeiro, o glorioso Quito.

Mesmo sabendo que se Braga cometesse tal heresia seria barbada, todo mundo ficou com um pé atrás. Isso porque diziam estar em sua lista um nome honrado, o de Fábio Matarazzo. Fabião, goleiro e sócio do clube há quarenta anos, é uma espécie de Durão dos novos tempos. Tem, antes de mais nada, um amor incomensurável pela agremiação; conhece, como poucos hoje em dia, a história dos campos de várzea, dos bailes e salões mais disputados, e sabe o que deve ser feito para que o Anhangüera volte a ser o gigante que era na área social.

Com um nome desse na chapa, Braga ganhou o apoio de uns e outros, mas desistiu da candidatura quando Fábio negou, surpreso, que o apoiaria. Era mais uma fofoca plantada. Daí Sidnei “Nariz” Caran assumiu e governou como ninguém nos últimos anos. Foi um mandato de recuperação das finanças de uma agremiação endividada; e da coroação de oitenta anos de história. A noite comemorativa do ano passado alçou-nos, eu diria, aos áureos bailes, desde a parte solene até a exposição em vídeo da nossa história. Nariz e Mimi, que perderam várias noites de sono, passam agora a bola redonda para ele mesmo, Fabião, o Durão dos nossos dias. São as voltas que o mundo dá! A próxima dupla será, não tenho dúvidas, histórica. O vice-presidente será o grande Wilson, outro que, como eu já disse, conhece do riscado.

Já imagino que tenha gente dizendo que Fabião é enérgico, controlador e até ditador. Balela! Eu, por mim, até prefiro que seja mesmo, porque assim estarão barrados os que não enxergam o valor que temos enquanto várzea, e até que ponto poderíamos ir, mas não vamos por vontade própria. Estarão de mãos atadas os que sonharam com a grama sintética e os que vergam nossa camisa por interesses particulares. O próximo presidente será o elo que nos levará - arrombando a nefanda crença em “um tempo que passou e não volta mais” - de volta aos grandes festejos. Porque Fábio “Durão” é social; é baile, é bingo, é futebol, é gente!

11 de jan. de 2009

Uma luta de boxe

O futebol move mundos porque, além da plástica e da técnica, depende da raça, do suor, da luta. Necessita, sobretudo, de heroísmo. Não à toa entraram para a história jogos em que neguinho quase morreu em campo, ou botou a cara na frente do pé do outro pra salvar um gol. Visto assim, como uma batalha, acaba despertando em nós o que temos de mais primitivo, de modo que qualquer refugo, qualquer “pipocada” ou qualquer pé-mole é rechaçado impunemente. O jogador tem por obrigação se matar em campo, o que faz do esporte um esporte viril, rude e, muitas vezes, sangrento.

Há jogos de futebol que são verdadeiras pancadarias travestidas de um esporte que se toca a bola pra cá e pra lá, assim como a capoeira se fingia de dança. Pelé, o maior de todos, o Deus do futebol, quebrou a perna de três ou quatro e dava cotovelada aos montes. No futebol não basta o tico-tico, o joguinho de lado. O jogador tem que botar a cara pra chutarem, tem que se esfacelar, morrer em campo, se preciso for.

Um esporte mais antigo ainda, e muito popular, e tão violento quanto, é o boxe. No boxe, porém, o drible da vaca é um cruzado; o chapéu é um upper no queixo, a caneta é um direto, a chaleira é um gancho e um mero tiro de meta é um jab. O gol, a vitória, é um nocaute.

Num dos grandes festejos da Associação Atlética Anhangüera, no começo da década de 50, houve uma luta de boxe na sede da Rua do Bosque – a única da história -, com ringue profissional, juiz federado e uma luta que fizera, na época, toda a população da região comparecer. O dinheiro arrecadado com as apostas foi o suficiente para a reforma da sede do clube e para a compra de quatro novos fardamentos. Antes da luta haveria a exibição de um menino ali do Peruche chamado Éder Jofre, que diziam ser bom – tal exibição acabou não acontecendo. Depois seria a luta que, desde já, era considerada na área a maior de todos os tempos: Ítalo Batagliolli, o legendário Pé-de-Pato, versus Tirone.

Vários foram os motivos que fizeram da luta um espetáculo aguardado com ansiedade. O primeiro é que o boxe estava em alta; Rocky Marciano, um filho de italianos – assim como a maioria dos moradores da Barra Funda e Bom Retiro -, então campeão do mundo, vivia estampado em notícias de jornais, dava um grande ibope.

Outro fator: o currículo dos lutadores. Pé-de-Pato era um boxeur amador, com um currículo respeitável: trinta lutas, trinta vitórias. Todo mundo conhecia sua técnica fina, seu jogo de pernas estonteante, sua destreza nos jabs e, principalmente, seu braço esquerdo. O direto de canhota era um canhão, um aniquilador de narizes. Tirone, no entanto, já era o afamado Tirone, o maior valente da região, o homem que ceifou sozinho a turma dos Cabeleira, o homem que era briga pra dez.

Terceiro fator: a disposição com que jogavam bola. Eram, os dois, desses jogadores de bater a cabeça na trave, de molhar a camisa, de dar a vida pelo rubro negro. E essa disposição no futebol, sendo transferida para o ringue, é o que faria a luta ser épica.

E o quarto fator, que botou pimenta e justificou o confronto: os dois eram amigos, amigos de infância, mas estavam brigados! Tirone acusara Pé-de-Pato de caloteiro; e Pé-de-Pato estava ofendido em sua honra. E tal desentendimento seria resolvido no ringue. Tudo isso, logicamente, incluindo o dinheiro devido, era simulação deles e da diretoria do clube, para angariar público e receita. A luta seria, na verdade, a maior briga de comadres de todos os tempos, o que certamente causaria chiadeira na assistência.

Chega o dia e a sede ficou tomada. O que ia dar? As apostas rolaram soltas, tudo podia acontecer. Cada um no seu corner, e começa a apresentação menos emocionante e caprichada que já se viu, pelo eterno diretor de patrimônio Durão: “No corner direito, Tirone; no corner esquerdo, Pé-de-Pato”. E começou.

O que se viu, já no primeiro assalto, foi um assalto. Pé-de-Pato dançando seu jogo de pernas, de lá pra cá, enquanto Tirone o cercava. Um jab de vez em quando, um soquinho aqui, outro ali, até o terceiro round. A enganação foi sendo percebida pela platéia e começou a vaia. Junto das vaias, gritos de “safados”, “maricas” e outros adjetivos inglórios mexeram com a veia agressiva do meu velho avô, um homem com um controle emocional de criança. Pé-de-Pato era um iceberg; continuava pulando e trocando de pé como um dançarino de tango, até o grito que mudou o rumo da luta, programada para seis rounds: “Ê Tirone, tá com medo, bundão?”.

Tirone então fez o que não estava no script e acertou um direto que levantou a platéia. Dizia, depois de muitos anos, que foi um soco para não deixar que o público fosse embora ou pedisse de volta o dinheiro. Acontece que o Pé-de-Pato, um cordial e diplomático, um homem dos acordos, das cartilhas e regulamentos, se viu traído, sendo vítima, sem aviso prévio, de seu golpe mais temido – seu nariz sangrava. Acabou o quarto assalto e o público começou a vibrar e torcer, incentivar, clamar sangue e imitar os ganchos do Rocky.

Pé-de-Pato voltou, mas voltou como o boxeur que era, como o invicto. Jabeou uma, duas, três. Tirone deixou que os revides lhe batessem à cara. Apesar da grande quantidade de socos que tomava, sabia que seu direto valera por vinte jabs daqueles que estava tomando. Mas o Pé não parava; transformou, sem piedade, a cara do Tirone num bumbo que batia num compasso definido, jogando com as pernas, fazendo o público delirar.

A torcida queria era ver o circo pegar fogo. Se no começo a torcida era pro Tirone, depois de ser vítima dos mil jabs do Pé-de-Pato o abandonou, e comemorava cada vez que a luva do Pé tocava sua cara, já meio detonada. Tomado pela raiva, partiu, como um leão, pra briga de fato, sem técnica, sem jogo de pernas, só porrada. A partir daí, a sede do Anhangüera quase veio abaixo. A assistência babava e gritava. Era uma briga de verdade. Estavam mesmo tirando a desforra, fazendo valer a honra e o nome.

Mas um brigão não tem técnica e todas as patadas que Tirone soltava pegavam nas luvas do Pé-de-Pato, que se defendia e continuava desferindo os jabs, e estes pequenos golpes, insistentes, iam desfigurando a face de Tirone, castigando-o. Vendo que não ia conseguir acertá-lo, Tirone não titubeou. Saiu do ringue, empurrou um jurado, pegou a cadeira e subiu pra quebrá-la na cabeça de seu oponente. O Pé-de-Pato, que não era bobo, correu. Seis homens seguraram o Tirone e acabou o show. O povo foi pra casa deleitado, saciado, tendo presenciado uma grande luta.

Na mesma noite, os dois se conciliaram e beberam juntos no Fecha Nunca. A notícia que correu é que Pé-de-Pato pagou a Tirone ali, no balcão mesmo, o que estava devendo.
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